Obra autobiográfica

Jackson Pollock, Untitled, c. 1950
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Por ALFREDO BOSI*

Comentário sobre os livros de memórias de Celso Furtado

Dentre os muitos leitores de Celso Furtado talvez poucos saibam que o nosso maior economista escreveu, aos 25 anos, um livro de ficção. Os contos da vida expedicionária saíram em 1945 e só agora voltam a ser editados nesta Obra autobiográfica reunida aos cuidados de Rosa Freire d’Aguiar.

Para fazer literatura com experiências de guerra basta muitas vezes a pura memória. A situação existencial do soldado em terra estrangeira tem sempre um ar de insólito, ao menos o bastante para que as pessoas e as coisas vistas ganhem, quando evocadas, uma aparência de realidade imaginada, o que é uma boa definição de literatura. Mas leia-se o que o próprio narrador diz nesta nota que precede os seus textos juvenis:

“Os fatos narrados nestes contos são substancialmente verdadeiros. Mas, porque são traços gerais, não pertencem a ninguém. Muitos nós encontraremos aí; entretanto não nos faltará a certeza de que as experiências gerais couberam a todos nós”.

E qual a verdade da vida no front? Aí a sorte de cada um depende de combinações aleatórias, e o outro pode, de repente, ser o meu assassino ou o meu salvador. “Deus meu” – diz uma velha italiana aos pracinhas – “jurava que eram tedescos. Assim sérios, bebendo, não há diferença. Todos são altos. A farda é a mesma”…

É este sentimento do arbitrário que dá aos contos do ex-pracinha na Itália o seu tom peculiar. Alguma coisa de estranho sempre pode acontecer em uma terra ocupada por duas forças inimigas, e onde já se borraram os limites entre o citadino e o camponês, o partigiano ubíquo e solerte e o homem da rua espremido entre o invasor e o libertador, ambos perigosos.

Nesse meio flutuante o soldado reconstruído pelo autor é um jovem intelectualizado capaz de entrever naquela Itália caótica de fim de guerra a agonia de uma civilização para a qual a beleza foi, durante séculos, uma verdadeira religião. A Toscana destas histórias expedicionárias é ocasião de encontros indeléveis. A paisagem, a casa e sobretudo a mulher aqui se perfilam como imagens aureoladas por um olhar que trouxe do seu Nordeste patriarcal e letrado a paixão da cultura europeia e o desejo de sublimar aquela sua penosa contingência de artilheiro involuntário.

Por isso os contos do moço da farda verde-oliva são histórias de amor e admiração por um mundo que é de sonho mesmo quando mergulhado no pesadelo da violência. Esse é o espírito da quase-crônica “Um Intelectual em Florença”, tecido de reminiscências eruditas costurado com o fio de uma candura sem pregas. A pureza do homem do agreste se compraz nas linhas sóbrias da paisagem que inspirou a mais antiga das representações modernas da natureza.

O leitor, ainda surpreso de ter descoberto um veio lírico no respeitável estudioso de macroestruturas, deve prosseguir no conhecimento desta obra que se quer autobiográfica. Compreenderá então que tem sob os olhos um itinerário de meio século ao longo do qual a vida do homem Celso Furtado se confunde com o sentido radical da ciência de que ele é mestre: a economia tomada como ferramenta da política; ou, em outras palavras, a teoria e a prática do desenvolvimento.

Ciente de que “o mundo mudou”, mas que nesse mundo “globalizado” o Brasil continua sendo um país de carências e desequilíbrios fundos, Celso Furtado reconstrói o seu percurso de homem público e planejador incansável, agrupando seus momentos cruciais em torno do termo “fantasia”. A palavra é sugestiva, enquanto variante de “imaginação”; e um dos adversários teóricos de Celso Furtado, Eugênio Gudin, já lhe censurava nos anos 1950 o recurso à imaginação, “boa para o romancista, mas não para o economista”… Mas sabe-se que, para o ortodoxo Gudin, o mal do Brasil era o hiperemprego (sic) somado à herética pretensão de fazer do Estado o indutor do desenvolvimento e da justiça social.

De todo modo, a fantasia de Celso Furtado vem acompanhada, desde o início, do atributo “organizada”. A expressão, colhida em uma frase de Paul Valéry (“Ne sommes-nous pas une fantaisie organisée?”), me pareceu feliz quando a vi no título da primeira edição da obra, em 1985. Por trás do seu paradoxo, que alia desejo e ordem, sonho e razão, vigora uma concepção dialética de base. O indivíduo moderno, o sujeito emerso das Luzes, mas logo enredado nas malhas do capitalismo concorrencial, almeja ao mesmo tempo conservar o seu grau de liberdade, duramente conquistado por tantas gerações, e conviver em uma polis onde os direitos do homem não sejam privilégios de classe, mas o pão cotidiano de todos. Para realizar essa bela fantasia é preciso vencer o insulamento e a dispersão próprios da divisão do trabalho e da descontinuidade social. A fantasia deverá organizar-se em termos políticos. O nome prosaico desse processo é planejamento.

Celso Furtado aprende com Keynes e com a história brasileira e internacional dos anos 1930 que cabe ao Estado “prever para prover” – fórmula de Comte cara a quantos apostam na “engenharia social” – e, assim fazendo, corrigir as distorções do mercado dito livre. Mas a sua verdadeira escola foi a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e o seu mestre latino-americano, Raul Prebisch, “que nos guiou a todos”, como reconhece na dedicatória de A fantasia organizada. Não por acaso o seu pensamento, embora avance mediante novas análises de conjuntura, volta com insistência ao debate dos anos 1950 em torno do subdesenvolvimento, “fenômeno que acabava de ser descoberto e causava perplexidades”. A partir dessa década decisiva toda a sua biografia intelectual teria como eixo a compreensão das sociedades dependentes e o compromisso ético com o progresso do seu povo, em consonância com o de outros povos ex-coloniais que passaram a ver-se a si próprios como Terceiro Mundo.

A ideia da planificação lhe aparece não só como instrumento econômico e técnica social, mas, na esteira de Mannheim, como um problema político e cultural, consideradas as terríveis experiências do fascismo e do estalinismo que ele rejeita com firmeza. “Nunca pude compreender a existência de um problema ‘estritamente’ econômico.” O convívio de presença estatal e democracia, tal como se esboçou no segundo governo Vargas (1950-54) e nos tempos de Juscelino, foi um tento raro, um exemplo do muito que poderia fazer a vontade política em um contexto internacional tenso ou mesmo adverso.

Desejo e imaginação precisaram andar no mesmo passo que a análise racional das possibilidades de cada conjuntura, e foi essa combinação delicada que o nosso estruturalista cepalino procurou aplicar à construção da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) ao longo dos governos de Kubitschek, Jânio e Goulart. O sumo dessa empresa está contado em A fantasia desfeita, que é de 1988, e sai agora antecedido das Aventuras de um economista brasileiro, uma bela evocação dos anos de infância nordestina do autor. Aí se encontram o roteiro da sua formação e a síntese das ideias-força às quais ele adere com toda a sua convicção de homem e de intelectual:

“A primeira dessas ideias é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar o mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa; traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva”. Aceitando o teor relativo dos êxitos e dos insucessos, Furtado se reconhece como um pensador imerso na corrente da história, onde, como advertia Maquiavel, cabe à fortuna o que escapa à virtude.

Os três volumes que ora se compõem em uma só grande obra semelham uma longa sinfonia com as múltiplas variantes harmônicas (os contrapontos são as conjunturas diversas) de alguns temas melódicos, que soam cada vez mais intensa e dramaticamente até o advento do clímax para se interromperem de modo abrupto com as dissonâncias ferinas do golpe de março de 1964. O que permanece no ouvido do leitor atento é a melodia: a fantasia se desmanchou, mas o Brasil continua a exigir dos brasileiros decentes o projeto de refazê-la.

A pergunta retorna sem cessar: por que planejar? Porque quando não se prevê, as cabeças da hidra renascem nem bem cortadas. A iniquidade irrompe a qualquer momento nas relações internacionais alargando as distâncias entre centro e periferia, entre finança especulativa apátrida e investimentos produtivos orientados nacional ou setorialmente. A outra face do processo é a disparidade no âmbito de cada país e de cada região: aqui a concentração de renda e de poder impede que se edifique uma democracia social de fato. Em termos diacrônicos: à alta produtividade conquistada nos países ricos ao longo dos anos 1950 e 1960, tantas vezes por obra de um “protecionismo seletivo” (como já o percebera Prebisch desde 1949), correspondeu, em geral, a estagnação das economias que ensaiavam, naqueles mesmos anos, os primeiros passos para consolidar seus parques industriais tardios e o seu mercado interno.

Já no seu primeiro estágio chileno Celso Furtado concebia a dependência em um contexto móvel que deveria ser não tanto aceito com resignação (“o mundo é assim mesmo”, dizem os que já desistiram de transformá-lo), quanto enfrentado com ânimo viril. E nisto ele se diferencia até hoje dos burocratas da economia, camaleões conformados e concordes na inglória operação do ajuste à injustiça.

Imperando neste conjunto de textos a mais rigorosa discrição, são raros os momentos em que é dado ao leitor assistir a reações subjetivas do autor. Estas afloram nos episódios que falam de encontros ou em cenas dramáticas que o cidadão Celso Furtado presenciou. Lembro a visita a Getúlio, que apoiou a Cepal em uma fase crítica da instituição, e as conversas com Juscelino, com Jânio, com Goulart, com Santiago Dantas, com Arraes (cuja deposição ele testemunhou), com Kennedy, com Perón, com D. Helder, com Sartre, com Che Guevara…

Em todos os diálogos revela-se a inteligência equânime, aberta às diferenças, ciosa de compreendê-las antes de julgá-las e, ao mesmo tempo, o caráter inteiriço que põe no cumprimento de cada missão o cerne da sua identidade moral.

*Alfredo Bosi (1936-2021) foi professor Emérito da FFLCH-USP e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor, entre outros livros, de Entre a literatura e a história (Editora 34).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas / Folha de S. Paulo, no. 32, em 08/11/1997.

Referência


Celso Furtado. Obra autobiográfica: A fantasia organizada; A fantasia desfeita; Os contos da vida expedicionária; Aventuras de um economista brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 640 págs.

 

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