Por IGOR FELIPPE SANTOS*
O Brasil tem a oportunidade de cortar o fio da história que mantém a herança da ditadura e a tutela militar sobre a nossa democracia
1.
Existe um fio da história que perpassa a trajetória de Eunice e Rubens Paiva, que leva milhares aos cinemas para assistir Ainda estou aqui, e o plano para matar Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes e dar um golpe de Estado.
O processo de “transição lenta, gradual e segura” para a democracia, propalado pelo ideólogo da ditadura e general Golbery do Couto e Silva, obstruiu a implementação de medidas para superar a herança da ditadura militar (1964-1985) e romper com a tutela militar sobre a soberania popular.
Mais uma vez, estamos diante de uma intervenção para efetivar um golpe gestado por militares. Não há dúvidas de que as digitais das Forças Armadas estão marcadas no plano golpista em curso no Brasil. Essa operação não começou com o documento “Punhal Verde Amarelo”, com a planificação dos assassinatos com o uso de armamento pesado e a possibilidade de envenenamento das autoridades.
Teve seu prelúdio no golpe do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, passou pela composição do governo Michel Temer e a eleição de Bolsonaro. Manifestou-se de forma aberta no tweet do então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, contra a autonomia do STF (Supremo Tribunal Federal) para julgar um pedido de habeas corpus para Lula.
Os militares foram sócios do governo Bolsonaro, com generais exercendo o papel de ministro e conduzindo postos estratégicos. Mais de 6.000 militares ocuparam cargos e fizeram parte da administração, de acordo com levantamento do TCU (Tribunal de Contas da União). Muitos tiveram participação na empreitada golpista, inclusive membros do comando das Forças Armadas, desacreditando o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.
Um dos momentos mais marcantes foi o desfile na Esplanada dos Ministérios com 150 carros de combate, tanques, blindados, aeronaves e lançadores de mísseis e foguetes, em agosto de 2021. A demonstração militar aconteceu a pedido do então presidente Jair Bolsonaro, no mesmo dia da votação da PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados e em meio ao conflito político-institucional do governo com o STF.
Após o 2º. turno da eleição de 2022, grupos de bolsonaristas se concentraram em frente a unidades militares em todo o país para questionar a vitória de Lula. Em Brasília, foi montado um acampamento em frente ao Quartel-General do Exército. Foram organizadas caravanas de todo o Brasil para visitar o local. Nada foi feito pelos militares para obstruir a manifestação.
O Exército, inclusive, deixou que dezenas de caminhões ficassem em área militar com faixas em defesa do golpe com os dizeres “SOS Forças Armadas”. Militares caminhavam entre os manifestantes, observavam e interagiam. Maria Aparecida Villas Bôas, mulher do ex-comandante do Exército, general da reserva Eduardo Villas Bôas, passou de van no acampamento, sorrindo e aplaudindo ao apontar que o marido estava no automóvel.
No dia 8 de janeiro de 2023, o Exército fez uma barreira com uma linha de três tanques de guerra na entrada do setor militar[1] , obstruindo o acesso ao quartel-general do Exército. Assim, impediram que agentes da Polícia Militar entrassem no acampamento para fazer prisões dos bolsonaristas que atacaram as sedes dos Três Poderes. Em vez de defender a democracia, protegeram os golpistas.
2.
Agora, a Operação Contragolpe da Polícia Federal esquadrinhou com detalhes o plano para dar um golpe de Estado no Brasil. Foram presos cinco membros da organização criminosa e 37 indiciados pela participação na operação para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
O inquérito da Polícia Federal indiciou 25 militares, incluindo sete generais que fizeram parte do comando militar em sua trajetória. Dos cinco presos, que compunham o chamado “Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas”, quatro foram formados nas Forças Armadas, sendo um comandante e dois integrantes do Comando de Operações Especiais, os “kids pretos”, especializado em missões sigilosas de alto risco.
Os militares infestam de forma generalizada a democracia brasileira como uma espécie de cupim. Colônias formadas dentro do Estado perfuram toda a sua estrutura, consomem tudo por dentro e deixam somente uma fina camada externa. Cada uma delas tem uma estrutura bem definida, com uma hierarquia com generais, tenentes capitães e soldados.
O controle dos cupins exige métodos especializados, como o uso de iscas, barreiras químicas e inseticidas superficiais. No caso de infestações, requer um tratamento extensivo para fazer a eliminação dos ninhos e alcançar colônias ocultas.
A gravidade do plano dos militares para matar Lula, Alckmin e Moraes exige medidas estruturais que devem ser assumidas pelas forças democráticas da sociedade brasileira para defender o Estado de Direito e impedir que o país fique mais uma vez a um passo de mais um golpe de Estado.
A prisão dos envolvidos no plano golpista, derrotando a proposta de anistia defendida por Jair Bolsonaro e seus apoiadores, é um passo importante, mas não é suficiente. Não basta expurgar uma colônia de cupins, é necessário conter a infestação que corrói a democracia brasileira e acabar com o ninho que irradia uma doutrina golpista.
É preciso alterar o artigo 142 da Constituição Federal que abre margem para a interpretação de que os militares têm a prerrogativa para fazer uma intervenção para garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. Esse dispositivo é utilizado pelos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), inclusive pelos articuladores do golpe, como o general Mário Fernandes, para quem “o fuzil jamais pode se curvar diante da toga”.
Mais uma mudança urgente para combater a infestação é determinar o afastamento dos militares para o exercício de funções públicas e políticas, impondo o princípio da “quarentena” (intervalo entre as funções). Assim, aqueles que optarem por essas funções devem ir imediatamente para a reserva.
Para acabar com o processo de formação de golpistas na carreira militar, os currículos das escolas de oficiais devem ser alterados, eliminando valores antidemocráticos, como o saudosismo do Golpe de 1964 e ao regime militar que existe até os dias de hoje.
Para isso, devem ser implantadas as recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que fez um trabalho extraordinário durante dois anos para fazer o exame e esclarecimento das violações de direitos humanos durante a ditadura.
As Forças Armadas precisam passar por uma profunda reformulação, que garanta que cumpra de forma exclusiva o papel de dedicação à defesa nacional e a programas de integração territorial, com a extinção do sistema de Justiça Militar que alimenta o corporativismo e a impunidade.
O Brasil tem a oportunidade de cortar o fio da história que mantém a herança da ditadura e a tutela militar sobre a nossa democracia. Não existe soberania popular quando a decisão sobre respeitar ou não o resultado das urnas está submetida às Forças Armadas.
Tivemos neste ano a efeméride dos 60 anos do golpe militar de 1964. O presidente Lula declarou que a ditadura fazia parte do passado e que não valia remoer, mas que iria “tocar o País pra frente”. Quem sabe esse plano para assassinar o presidente e golpear novamente nossa democracia – que deixou Lula “estupefato”, segundo o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski – deixe o ensinamento de que é impossível deixar pra trás um passado que nunca foi plenamente enfrentado.
Eunice Paiva passou a vida inteira lutando por memória, justiça e verdade. Liderou a luta pela abertura dos arquivos da ditadura, algo central para o ajuste de contas com esse capítulo violento de nossa história. Os últimos anos de sua vida foram marcados por um estágio avançado de Alzheimer, e foi nesse momento que Eunice começou a proferir repetidas vezes a frase “ainda estou aqui”.
É preciso enfrentar esse problema que, longe de estar no passado, bate à nossa porta mais uma vez. Se a ameaça continua, é necessário cada vez mais encarar de frente. A força de Eunice Paiva deve nos servir como inspiração.
*Igor Felippe Santos é jornalista e ativista de movimentos sociais.
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