Por MARILIA AMORIM*
A atual forma de debate reafirma os vícios dos dispositivos de poder nada democráticos
Antes de tudo, uma advertência: não trataremos aqui da questão de saber ou de prever se os debates na tevê mudam os votos ao aumentar ou diminuir a possibilidade de cada candidato ser eleito no primeiro ou no segundo turno. Sabemos que a questão é controversa e preferimos aguardar os resultados das urnas.
Neste momento de importância histórica para o país em que sonhamos com a volta da plena democracia, parece-nos de importância crucial refletir sobre as formas tradicionais das campanhas eleitorais naquilo que elas trazem como modo de informação para que o eleitor exerça seu direito de voto em plena consciência e liberdade.
Uma dessas formas é o debate na tevê e para tratarmos dele tal como praticado no Brasil, tomaremos como referência o último debate presidencial do primeiro turno na Rede Globo. Pode-se dizer que o formato adotado pelo “padrão Globo de qualidade” constitui-se como paradigma de análise uma vez que expõe de forma pura a essência do dispositivo, sem os tropeços das demais redes onde, por exemplo, uma apresentadora pode errar o tom ao falar como se estivéssemos diante de um programa de entretenimento e não de um debate presidencial. É unanimidade que o tom e o “jeito Bonner de ser” são impecáveis para o gênero em questão.
Uma vez que se trata do “gênero debate”, estamos diante de um dispositivo discursivo em que os modos de distribuição da palavra no espaço e no tempo incidem naquilo que é dito e participam ativamente da produção de seu sentido. Temos aqui um caso exemplar do que o filósofo da linguagem Mikhaïl Bakhtin designa pelo conceito de cronotopo: a unidade espacio-temporal que escande e organiza as narrativas.[i]
Comecemos pelo tempo. Conceder apenas um ou dois minutos para um candidato argumentar é algo que impede o desenvolvimento de qualquer argumentação. Ainda mais se contarmos com o fator surpresa. Ele é surpreendido a cada vez por ser convocado, pelo tema da questão e pelo interlocutor que lhe é atribuído. Assim, ao não ter tempo de pensar, ele é incitado a lançar algumas ideias e frases preparadas de antemão que servem mais ou menos para toda situação o que, em si, já subtrai uma parte de autenticidade da sua fala e contribui para o caráter repetitivo de seus argumentos. É algo como uma prova oral de colégio com a diferença de se conceder um tempo mínimo ao aluno para expor sua decoreba.
A limitação temporal é agravada pelos cortes bruscos do microfone que obedecem algoritmamente aos segundos marcados. Estamos aí na figura discursiva do cogitus interruptus que tomamos a liberdade de nomear ao derivá-la da conhecida expressão, o coitus interruptus. O candidato volta ao seu lugar e se prepara talvez para concluir o raciocínio quando for novamente chamado e caso o tema permita. Nesse mesmo tempo, ele deve se preparar para as novas surpresas se é que isso não é uma contradição entre os termos.
Não se deve, entretanto, pensar que o cogitus interruptus é uma figura de discurso que apenas impede, reprime, subtrai. Ela é também facilitadora e incitadora de certo tipo de fala: aquela que, justamente, não é da ordem do raciocínio e da argumentação. A fala espasmódica de frases desconectadas e abruptas é perfeitamente compatível com o dispositivo temporal em questão. Ele favorece falas como, por exemplo, as de Jair Bolsonaro e as de padres fakes. Jorros de acusações e insultos não necessitam de tempo para serem elaborados.
Para prosseguir a reflexão, tomemos a fala do presidente Lula que é a antítese discursiva de Jair Bolsonaro. Ela tem as características daquilo que se convencionou chamar de discurso caudaloso. Como riacho que nasce de uma fonte, segue seu curso a se enriquecer de novas águas até se avolumar e desaguar em cachoeira imponente. É a já célebre potência discursiva de Lula que o dispositivo do debate televisivo impede. Ficamos assim privados da emoção que ela poderia nos causar e saímos dali com interpretações variadas acerca de um suposto cansaço do Lula, de uma suposta fragilidade de saúde, etc. Afinal, onde foi parar aquela força? Atribui-se então ao locutor um problema que não é dele, mas do dispositivo.
Passemos agora à questão do espaço tal como ela se configurou no paradigma aqui adotado, qual seja o debate da rede Globo. Vimos um grande espaço clean, despojado e esmerado a confirmar o estilo da emissora em suas produções. Os candidatos sentados ao longe, em relação ao apresentador, eram convocados a se levantar, vir até a tribuna e ao final, voltar a seus lugares. Vários aspectos merecem ser analisados. Em primeiro lugar, ao fazer o candidato se deslocar a cada vez, parece se querer marcar uma disciplina e uma ritualização que supostamente garantiriam a ordem e a obediência às regras durante o debate.
Quanto ao espaço da tribuna, ele contrasta com essa distância reguladora na medida em que coloca os candidatos face a face, em um espaço de pequena distância que os obriga a uma proximidade frontal. Como se a mensagem fosse: agora vocês vão falar com o olho no olho. Que esse posicionamento possa contribuir para o diálogo e a interlocução é algo discutível. Conhecemos outras cenas de debate em que os candidatos se falam perfeitamente a uma distância razoável um do outro. Ali, mais parecia um espaço de luta a evocar uma briga de galos em que se lançam os animais na arena, bem próximos um do outro, enquanto o público assiste e torce pela morte de um deles. O que não é apenas metáfora uma vez que assistimos a insultos descontrolados que, se não levaram às vias de fato, consumaram uma violência nunca vista em eleições passadas.
Nesse ponto, é necessário tratar do lugar do mediador, nesse caso, o William Bonner. Sua distância física dos candidatos denota o lugar de mediação, de autoridade responsável pelo bom desenrolar do debate. Se nada há a dizer sobre a conduta do apresentador em questão, muito se poderia refletir sobre a natureza da mediação que o dispositivo do debate de tevê instaura. Para resumir, a autoridade exercida por um apresentador não pode ir além daquela cujo poder se resume em fazer cumprir as regras. Ele é o representante autorizado do regulamento, mas não da lei uma vez que não lhe compete agir de modo a distinguir a verdade da mentira. Ao dirigir-se aos candidatos, ele pode mandar sentar, mandar levantar, mandar se calar.
A cena é quase escolar: Fulano, venha ao quadro! Volte para sua cadeira! Entretanto, é difícil pensar a autoridade do apresentador de tevê como um equivalente do professor em sala de aula. Mais uma vez, a distinção verdade/mentira é apanágio da ciência e do conhecimento e o professor deve ser capaz de fazê-la operar no seio dos discursos. Assim, se quisermos manter a analogia da cena do debate com a cena da sala de aula, o equivalente mais justo para o apresentador de tevê seria a figura do bedel.
Ao ter um poder que se resume ao regulamento, nada pode fazer quando os galos de briga tentam se destruir com a arma da mentira. Um candidato de última hora aparece vestido de padre e não se consegue saber se ele é ou não é aquilo que diz ser. Um candidato acusa o outro de ter roubado um milhão, seu interlocutor dobra a aposta e o acusa de ter roubado dois milhões e assim sucessivamente, sem que o espectador possa saber quem é o mentiroso, se um deles ou se os dois. Chegamos ao requinte no último debate quando um candidato acusa o outro do crime que foi cometido por ele próprio. Foi o caso de Jair Bolsonaro a acusar Lula de ter deixado morrer gente por falta de oxigênio.
Novamente, é preciso ter cuidado para não se deduzir do exposto uma simetria nos prejuízos causados aos diferentes candidatos. É a Jair Bolsonaro que a impossibilidade de distinguir entre mentira e verdade interessa. Ele pertence como Trump à classe dos tiranos bouffons como bem teorizou Christian Salmon.[ii] Esse tipo de tirano pós-moderno se alimenta e alimenta suas tropas da degradação do sistema e das instituições. Trabalham para ridicularizar, achincalhar e degradar a democracia. Para um bolsonarista, assim como para um trumpista, não importa que uma informação seja mentirosa. Na maior parte dos casos, ele sabe que é mentira. Porque a mentira agrega: vale pela força do golpe desferido contra o “inimigo”. Quanto mais caluniosa a informação, mais ela desarma o “inimigo” e seus seguidores.
A aparência de igualdade de condições para que ganhe o melhor, sublinhada pelo regulamento rígido, é só aparência já que a mentira, a farsa e o deboche não estão interditados. O dispositivo discursivo do debate de tevê, tal como posto em cena pela Globo, tem seu funcionamento perverso disfarçado pela imponência espacial e o rigor temporal. Espaço e tempo articulam-se nessa cena de estética futurista revisitada a lembrar o expressionismo de Fritz Lang no filme Metrópolis.
Na tomada de câmera em que o espectador vê o que Bonner vê, com os candidatos ao longe sentados comportadamente e prontos para serem chamados à arena, descortina-se o verdadeiro centro de poder. Invisível como lhe cabe, panóptico por tradição, é o poder da rede de tevê quem dá as cartas. A rede cria as regras, cria os dispositivos, cria os acontecimentos e sabemos que, ao longo da nossa história, ela pôde até criar candidatos então desconhecidos, fazer desaparecer candidatos favoritos que o mundo inteiro conhecia e decidir o resultado das eleições.
Quanto à questão de saber qual forma de debate romperia com os vícios do dispositivo atual de poder, ela demandaria uma reflexão mais ampla e assumida pelos coletivos que militam por novos tempos. Que a democracia volte a vigorar plenamente neste país e que se possam corrigir erros passados, muitas vezes fatais, notadamente aqueles relativos ao poder da mídia hegemônica e anti-democrática.
*Marilia Amorim é professora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Paris VIII. Autora, entre outros livros de Petit Traité de la Bêtise Contemporaine [Pequeno tratado da burrice contemporânea] (Ed. Érès) (https://amzn.to/48du8zg).
Notas
[i] BAKHTIN, M. Teoria do Romance II. As formas do tempo e do cronotopo, tradução de Paulo Bezerra, São Paulo, 2018, Ed. 34.
[ii] Salmon, C. La tyrannie des bouffons. Sur le pouvoir grotesque. Paris, 2020, Ed. LLL (Les Liens qui Libèrent).
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