Por JORGE BRANCO*
Tólstoi conheceu generais diferentes dos generais brasileiros, ao menos dos generais brasileiros que frequentaram o poder na ditadura de 1964 e agora com Jair Bolsonaro na presidência
Leon Tólstoi teceu em ‘Guerra e paz’ uma fusão metodológica entre a interpretação crítica da história, objetiva e material, e a visão metafísica da escolha de um futuro superior, subjetivo e imaterial. Mergulhou ele em um emaranhado de símbolos econômicos, de classe social e de valores morais, para afirmar que apesar de todo o mal e horror que formam a história, a civilização vai deixando para trás, pouco a pouco, seu pior.
Guerra e Paz, para além de um romance literariamente sofisticado, é a própria procura do discernimento, com base na filosofia e na ética, que torne possível distinguir o bem e o mal. Esta ‘epistemologia” é a base da estrutura complexa dos principais personagens.
Todo conhecimento, sabemos nós, é produzido como acumulação de outros conhecimentos, portanto o conhecimento é dependente de suas circunstâncias, da realidade universal e da realidade particular que o cerca, em uma “fusão” dialética. Alguns analistas o compreendem melhor do que outros, alguns filósofos o projetam melhor que outros, no entanto. Poderíamos assim dizer, que Tólstoi foi grande porque grandiosas eram as circunstâncias e, também, grandiosas eram as pequenas pessoas que construíram a história que ele racionaliza em sua literatura.
Mas afinal, baseado em que tipo de sujeitos e em qual realidade, Tólstoi construiu personagens deslumbrantes, vividos na rudez dos campos e da morte, mas, no entanto, tão capazes de expressar a projeção fortemente ética de um futuro menos provido de ódio, tal como o General Kutúzov?
Certamente uma realidade distinta de nossa realidade brasileira. Para elaborar a dimensão histórica de Kutúzov e o transformar em seu personagem, certamente, Tólstoi conheceu generais diferentes dos generais brasileiros, ao menos dos generais brasileiros que frequentaram o poder na ditadura de 1964 e agora com Jair Bolsonaro na presidência.Se o General do romance de Tólstoi era voltado para o futuro, se movia por uma utopia sobre um mundo progressivamente menos pior, os generais de Bolsonaro são voltados ao ressentimento, se movem pelo ódio do passado, e a projeção só pode ser a de um mundo pior.
A construção simbólica de que os generais de Bolsonaro constituíram uma fração técnica e profissional do governo, ou mesmo a auto narrativa de que se constituíram como força moderadora entre as pressões do mal comunista e das forças golpistas, igualmente são desprovidas de comprovação política e material.
Esta missão moderadora não foi efetivada em nenhum dos aspectos interpretativos que se possa dar a ele, institucional ou político. Quanto ao aspecto institucional, o Supremo Tribunal Federal já consolidou a interpretação de que não há na Constituição Federal brasileira qualquer menção à atribuição institucional. As Forças Armadas não são um poder, tampouco moderador. Essa figura institucional de poder moderador não passa de um mito restaurador, tomado emprestado ao Império que eles próprios deram fim no século XIX.
Segundo, tampouco foram capazes de se constituírem como moderadores no aspecto político. Em entrevista ao Brasil de Fato, no dia 20 de abril de 2020 (https://www.brasildefato.com.br/2020/04/30/gosto-pelo-poder-mantem-militares-passivos-a-bolsonaro-avalia-cientista-politico), o cientista político João Roberto Martins Filho afirma que os generais se auto imputaram o objetivo de “(…) controlar, tutelar, racionalizar um pouco o governo Bolsonaro. Ajudar o Bolsonaro a ser uma pessoa diferente da que ele é. Mas eles não conseguiram”. Martins Filho vai adiante e afirma que fatores corporativos e ideológico-conservadores foram a tônica da presença dos generais no governo Bolsonaro.
Os fortes interesses corporativos, bem sucedidos através da consolidação de privilégios salariais e previdenciários, estabeleceram um vínculo subordinado ao governo Bolsonaro, implodindo qualquer possiblidade de um posicionamento autônomo que lhes permitisse uma posição de força dentro do governo ou na relação direta com Bolsonaro.
Se é verdade que a manutenção do governo Bolsonaro está muito relacionada ao apoio dos militares, além do apoio das grandes entidades empresariais locais, o inverso também é verdadeiro. Os militares, que se mostraram mais fracos do que se auto imaginavam, se viram dependentes do governo Bolsonaro para reingressar na esfera da política, afastados desde 1985. Tornaram-se reféns de uma ideia de restabelecimento de um status perdido com o fim da Ditadura de 1964 e com a Constituição Federal de 1988. Um política baseada muito mais no ressentimento do que em um projeto de país.
Não podemos concluir muito diferente da ideia de que o papel que os militares de alta patente das Forças Armadas, notadamente do Exército, cumprem no governo Bolsonaro não possui distinção contundente do papel cumprido por outras categorias da alta burocracia estatal, nos movimentos que permitiram a eleição de Bolsonaro.
Esta alta burocracia, ainda que se mova por interesses corporativos, objetivos com vantagens pecuniárias e subjetivos como prestígio político, demonstrou uma forte formação ideológica conservadora e à extrema direita, no aspecto político. Este último período marcou a restauração de certo sentido “bonapartista’ da alta burocracia estatal, tanto civil quanto militar, convergindo em uma retórica anticomunista, neoliberal, pró Estados unidos e anti China, moralista, religiosa e tradicionalista. Estes elementos foram a base dos movimentos políticos dos burocratas que lideraram a Operação Lava Jato e dos militares que foram fundamentais ao impeachment da Dilma, à prisão e inelegibilidade do Lula e à eleição de Bolsonaro.
Fatalmente, se Tólstoi vivesse no Brasil ou mesmo na Rússia, Polônia ou Ucrânia da atualidade, seu general cumpriria outro papel em seu romance. Enfim, além de um dos maiores escritores de todos os tempos, podemos considerar Leon Tólstoi também um sortudo.
*Jorge Branco é doutorando em Ciência Política pela UFRGS.