Os sem-teto na Califórnia

Imagem: Tom Fisk
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Por GILBERTO LOPES*

O estado mais rico da nação mais rica tem mais de um quarto dos sem-teto do país

Rosto rijo e bigode cinzento. Teria 60, 65 anos? Talvez. Durante o dia trabalha num armazém, carregando e descarregando gêneros alimentícios. Às vezes, à noite. Outras vezes, de dia.

No momento, dirige pelas estradas de Los Angeles. Quando o horário no armazém é noturno, ele trabalha como motorista do aplicativo Uber durante o dia. E o contrário, quando o horário é diurno. Doze horas por dia é suficiente para uma vida modesta. Tem residência legal nos Estados Unidos. Pode viajar de vez em quando. Acaba de voltar do México. Sai de Los Angeles em seu carro e dirige até a fronteira com Tijuana: três horas e meia. Atravessa a fronteira a pé diretamente para o aeroporto de Tijuana, e pega o avião para Oaxaca. Ele é de lá.

Depois voltará a fazer o percurso. Entrará em seu carro e regressará a Los Angeles. Ele vive aqui há mais de 20 anos. Com sua mulher e filhos. Acho que seu pai também veio para os Estados Unidos. “Não querem trabalhar. O governo dá de tudo para eles, preferem viver assim”. Fala dos sem-teto que vimos no caminho. Não sei se está convencido disso, ou se está dizendo o que pensa que queremos ouvir. Ouço-o falar e fico na dúvida. Ele contrasta sua vida dura com a outra, que lhe parece mais confortável. Ou menos honesta.

Sentado, vendo o mundo passar

Não há congestionamentos na estrada, mas o tráfego é lento. O caminho está pontilhado por barracas dos sem-teto. Debaixo de um viaduto, num pequeno espaço à beira da estrada, próximo do centro da cidade, por aqui e por ali.

Num sofá escarlate, ao lado da pequena barraca, imóvel, sem pressa, provavelmente sem compromissos, sem reunião marcada para o dia, sentado, observa o turbilhão daqueles que passam, com mais ou menos pressa, numa torrente que se assemelha a um formigueiro. Em que estaria pensando? O homem com o cabelo meio grisalho, com excesso de peso, apenas observa, encostado em seu sofá à beira da estrada. Ele é um sem-teto.

Meio milhão de norte-americanos são classificados como “sem-teto”. Alguém é assim considerado desde que não tenha um local fixo, regular e adequado para passar a noite, de acordo com o Department of Housing and Urban Development (HUD). É o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano.

Em janeiro de 2018, 552.830 pessoas nos Estados Unidos eram consideradas homeless (sem-teto) pelo Departamento. Destas, cerca de 195.000 (35%) viviam nas ruas. Pouco mais de 358.000 (65%) tinham algum abrigo, em residências temporárias. Os sem-teto representavam então 0,2% da população dos Estados Unidos; 17 pessoas por 100.000 habitantes. Dois anos depois, em janeiro de 2020, 580.466 pessoas entraram nessa categoria, segundo a edição de 2021 do State of Homeless.

Na maioria (70%), são pessoas solteiras. O restante é formado por famílias com crianças. “Eles vivem em todos os estados e territórios e refletem a diversidade do nosso país”, diz o relatório. “Entre 2019 e 2020, os sem-teto aumentaram dois por cento em todo o país”. Este é o quarto maior aumento registado, revertendo uma tendência de baixa que durou oito ou nove anos. Isso foi antes da pandemia de Covid-19. “Este relatório”, lê-se no documento, “não reflete as mudanças que possam ter ocorrido em consequência das medidas adotadas para frear a Covid-19, nem o aumento da taxa de desemprego resultante da pandemia e da recessão”. O desemprego e o despejo generalizado dos que ficaram sem recursos para pagar o aluguel “podem ter reduzido ou eliminado completamente as conquistas daqueles que trabalham para acabar com os sem-teto”.

Eu não deveria estar vivo

Em 13 de julho, Jaime Lowe publicou uma longa reportagem sobre os sem-teto em Los Angeles na revista do The New York Times. O Dr. Coley King, um médico de 52 anos com bigode e cabelo comprido, é o personagem central da história.

Percorre as ruas da praia de Venice, cerca de quatro quilômetros ao sul de Santa Mônica, a uma hora do centro de Los Angeles. Ele para com sua van ao lado do acampamento da Terceira Avenida, “onde vivem cerca de 30 pessoas”. John Simpson entra numa barraca esfarrapada para duas pessoas. Ele tem 64 anos. Tem sido um homeless, um sem-teto, por toda vida. Sua família expulsou-o de casa pelo alcoolismo. “Eu não deveria estar vivo”, diz ele.

O Dr. King pergunta-lhe se precisa de cuidados médicos. Simpson diz a ele que estava bebendo por toda a manhã. “Isso está certo?”, perguntou ele. “Não me importa”, responde King. “Quer que eu examine você, quer inscrever-se como meu paciente?” Simpson hesita, mas aceita. E enquanto lhe tiram o sangue, ele lamenta por estar perdendo seu tempo. “Eu não deveria estar vivo”, diz ele.

O normal, para mim, é perder três pacientes por mês, diz o Dr. King. E cita três casos: um morreu de overdose de fentanil; outro morreu de câncer, agravado por sua dependência de drogas; um terceiro morreu devido ao alcoolismo e a uma doença pulmonar terminal. Um antigo paciente morreu de doença cardiovascular. Dr. King usa um broche com a imagem dele e uma legenda: “In loving memory”. Morreu aos 56 anos, “muito próximo da média de idade em que morrem os sem-teto permanentes”.

Os sem-teto formaram dezenas de acampamentos em Venice. Muitos deles, diz Lowe em sua reportagem, estão ao lado de casas que valem alguns milhões de dólares (sete ou oito dígitos, diz ele), muitas delas pertencentes a empregados de empresas no que é agora conhecido como Silicon Beach, um arremedo do conhecido Silicon Valley, a área na Baía de São Francisco que abriga algumas das grandes transnacionais de tecnologia e das redes sociais: Apple, Facebook ou Google. “Google, YouTube, Hulu e Snapchat possuem escritórios a cerca de oito quilômetros de Venice”, diz Lowe.

Uma vizinhança que se converteu numa questão essencial para definir como Los Angeles enfrentará o desafio dos homeless. “Alguns residentes querem realocar os acampamentos dos sem-teto para o sul do aeroporto de Los Angeles, a uns onze quilômetros de distância; outros insistem que a solução deve ser encontrada em Venice”.

Aqueles que querem expulsá-los citam, entre outras razões, a violência, fezes, roubo de bicicletas. Andam por aí com cartazes: “Venice Beach! Onde o cocô humano e as agulhas fazem parte da diversão”. “Não temos controle suficiente sobre os fatores mais importantes para a solução do problema dos sem-teto”, disse o então prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti (hoje nomeado embaixador dos Estados Unidos na Índia pelo presidente Joe Biden). Em Venice é “especialmente brutal ver a desumanidade da situação. Na cidade, e certamente na orla, a situação é absolutamente inaceitável”, disse ele. Nos últimos 12 anos, o orçamento dedicado ao problema passou de dez milhões de dólares para um bilhão.

Los Angeles, diz Lowe, enfrentará agora outra onda de desalojados, quando a moratória estatal que suspendeu as expulsões expirar em setembro. Um plano de 5,2 bilhões de dólares proposto pelo governador Gavin Newson para enfrentar o problema “servirá para alguma coisa”, disse Lowe, “mas pode não ser suficiente”. Muitos dos que se qualificam para tal ajuda poderiam ser despejados muito antes de receberem-na, “o que significaria um aumento significativo da população sem-teto”.

O fim da moratória também é motivo de preocupação em Massachusetts, onde o Boston Globe publicou editorial em 2 de agosto indicando que “aqueles que vivem no limite da pobreza, lutando e muitas vezes sem poder pagar o aluguel, enfrentam uma batalha desigual para manter um teto sobre suas cabeças”. A pandemia apenas exacerbou o problema. Milhares perderam seus empregos e podem perder também suas casas, acrescenta o jornal.

Após um recesso, os tribunais retomaram seus trabalhos, com a moratória sobre os despejos chegando ao fim. Os programas de ajuda para pagar o aluguel funcionam mal. Menos da metade dos requerentes (apenas 48%) tem suas demandas atendidas. É uma luta desigual. Nas mais de 20 mil ações de despejo apresentadas desde janeiro passado, cerca de 93% dos inquilinos não estavam representados por advogados, uma situação que afetou apenas 15% dos proprietários.

Saúde mental e vida nas ruas

Um dos debates sobre o tema diz respeito à relação entre saúde mental e vida nas ruas. Estudos mostram que uma em cada cinco pessoas que vivem na rua tem problemas de saúde mental. A proporção aumenta de 1 para 3 entre os homeless permanentes. Estresse, ansiedade, isolamento, dificuldade para dormir aumentam os problemas físicos e mentais. Em todo caso, não se deve esquecer que a maioria das pessoas afetadas por problemas mentais não vive nas ruas.

A relação entre os dois problemas tornou-se clara em 1963, quando o presidente John Kennedy assinou o Community Mental Health Act. A ideia era construir 1.500 instalações para o tratamento de pessoas com problemas mentais em suas próprias comunidades. Parecia uma boa ideia, mas muitos hospitais públicos fecharam e os pacientes foram forçados a deslocar-se para comunidades que não tinham os recursos, ou a capacidade, para atendê-los. Hoje, diz Heidi Schultheis, analista do Center for American Progress, num estudo sobre o assunto, o legado dessa política, denominada “desinstitucionalização”, é que os sem-teto e as pessoas com problemas mentais “são sobre-criminalizados e sobre-encarcerados, com as prisões servindo como os maiores prestadores de atenção psiquiátrica do país”.

Na opinião dele, a chave para acabar com essa situação para praticamente todas as populações afetadas é assegurar-lhes uma habitação permanente a um custo razoável. Cerca de cinco milhões de proprietários, incluindo quatro milhões de crianças, dependem de programas de assistência federal para ter uma casa e, apesar da demanda crescente, apenas uma em cada quatro pessoas necessitadas recebe ajuda.

Com o aumento dos aluguéis, o estancamento dos salários e uma redução da oferta pública de casas e de projetos subsidiados, tornou-se muito difícil encontrar habitação a um preço que possam pagar. Schultheis afirma que durante o governo do presidente Donald Trump e de seu secretário de habitação e desenvolvimento urbano, Ben Carson, apoiados por congressistas republicanos, deixou-se sem fundos os programas de assistência, revogou-se o Affordable Care Act (ACA) e cortou-se o financiamento do programa de atenção à saúde, Medicaid. Ao fazê-lo, acrescentou, “puseram em grande risco a saúde e o bem-estar das pessoas com problemas mentais, dos sem-teto e, principalmente, das pessoas que se encontravam em ambas as situações”.

O estado mais rico da nação mais rica

Mais de um quarto dos sem-teto nos Estados Unidos vivem na Califórnia. Em fevereiro do ano passado, o governador Newson dedicou todo seu discurso sobre a situação do estado à crise dos sem-teto. “É uma tragédia que o estado mais rico da nação mais rica – tão exitoso em muitos aspectos – seja incapaz de alojar adequadamente, curar e tratar humanamente tantos de seu próprio povo”, disse Newson.

Depois veio a pandemia e o governador anunciou um investimento de 12 bilhões de dólares – o maior entre todos os estados do país – para enfrentar o problema. E também não parece ser suficiente. Na realidade, o problema envolve causas estruturais que estão além da quantidade de recursos.

Aqueles que desprezam os homeless insistem que representam um risco para a saúde pública. No início de julho, o Los Angeles Times publicou um editorial contra uma decisão do conselho municipal de remover os acampamentos da cidade. A medida foi apresentada como um esforço para devolver aos cidadãos o acesso aos espaços públicos. Os opositores criticaram-na, dizendo que se destinava a criminalizar os sem-teto. Os tribunais de apelação disseram que não seria possível transformar o sono nas ruas em crime, caso não fosse garantido um local alternativo para passarem a noite.

 Newson enfrenta uma consulta de revogação de seu mandato, convocada para 14 de setembro, com o apoio de críticos de sua política de fechamento de escolas e empresas para lidar com a pandemia. Uma votação que será acompanhada de perto, pois servirá de barômetro para as eleições parlamentares do próximo ano. Com o apoio de Biden em queda, segundo várias sondagens divulgadas na semana passada, principalmente devido à sua gestão da pandemia, os democratas correm o risco de perder sua estreita maioria na Câmara dos Representantes.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

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