Por TADEU ALENCAR ARRAIS*
É um equívoco imaginar que o sucesso de Marçal se localize, apenas, no domínio das dinâmicas das redes sociais
“Se me matarem, não encontrarão facilmente outro que, por ordem do deus, esteja tão ligado à cidade como (ainda que a comparação possa parecer ridícula) uma mosca a um cavalo grande, de boa raça, que precisa ser despertado pelas moscas, pois a gordura o deixa lerdo” (Platão. Apologia de Sócrates).
Ensina o historiador Gustave Glotz (1980), a partir de uma referência ao orador grego Demóstenes, que o idiota era aquele que se mantinha calado nas assembleias atenienses. Sabemos que os assuntos públicos, na polis, tinham proeminência sobre os assuntos privados. Os idiotas, nessa ótica, eram aqueles que se afastavam dos assuntos públicos. Quando pensamos na democracia e na participação popular nos assuntos de interesse coletivo, pelo menos na perspectiva Ocidental, a imagem da polis é muito frequente.
Difícil encontrar algum paralelo entre as cidades de São Paulo e Goiânia e aquela Atenas que julgou e condenou, a partir de uma assembleia na Ágora, o filósofo Sócrates. Nossas cidades, demograficamente, territorialmente, socialmente e administrativamente, são, em tudo, distintas daquelas cidades cujos sítios urbanos eram protegidos pela topografia continental e pelo Mar Egeu.
A distante semelhança, se é que podemos assim dizer, só pode situar-se na ambição democrática. A democracia, tanto lá quanto aqui, assumindo todos os anacronismos possíveis, também comparece nos discursos daqueles que pretendem administrar as cidades brasileiras. A referência não é gratuita. A gestão democrática, no próprio Estatuto das Cidades, Lei 10.257 de 2001 (Brasil, 200), é compreendida no contexto das políticas urbanas. Como consta no Art.2:
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Algo, para além da apatia, tem dificultado a participação das pessoas nos assuntos públicos. Trata-se de um fenômeno próprio da produção do espaço urbano contemporâneo. Um traço comum na história urbana reside no fato de que os incrementos demográficos foram sucedidos, em graus diferenciados, pela expansão espacial dos sítios urbanos. É claro que não se trata de uma regra mecânica, uma vez também devemos considerar a evolução dos sistemas técnicos, especialmente as redes de transporte, energia e comunicação.
A história dos subúrbios seria suficiente para comprovar essa linha de raciocínio. Mas ainda faltaria algo muito importante, especialmente quando relacionamos esses incrementos demográficos às determinações do capitalismo industrial. A leitura de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, é suficiente para comprovar a hipótese que o incremento demográfico daquela “infantaria ligeira do capital” (2015, p. 778) egressa do campo, para lembrar Marx (2015), mudaria definitivamente a forma de organização das cidades.
As respostas da burguesia aos recorrentes problemas urbanos, diante de cidades e dos operários ingovernáveis, oscilaram entre duas lógicas: afastar os pobres ou afastar-se dos pobres. A primeira motivou o conjunto de reformas dos centros urbanos, naquilo que Engels (1979, p.48) adjetivou de “método Haussmann”. A segunda motivou a construção dos subúrbios jardins, perspectiva romântica cujo projeto mais elaborado foi descrito, em detalhes, por Ebenezer Howard (2002), em seu conhecido livro Cidades-Jardins de amanhã.
O ponto que nos interessa, nas duas saídas, é nunca esquecer que a nova divisão social do trabalho demandou uma nova divisão espacial da cidade. A história urbana, desde então, é bem conhecida. É menos explorada, no entanto, a hipótese que essa forma de organização espacial, fragmentada espacial e funcionalmente, apresenta alguns desafios particulares, dentre os quais assinalamos:
(i) O desafio de compreender a produção da cidade a partir do fragmento. Vivemos a cidade a partir do nosso bairro e de uma dinâmica que envolve, grosso modo, deslocamentos cotidianos para trabalho e estudo que consomem uma fração considerável do dia. Isso dificulta o conhecimento da globalidade dos problemas urbanos. Uma fração significativa da população urbana desconhece a dinâmica dos sistemas de drenagem ou mesmo os locais de destinação dos resíduos urbanos.
(ii) O desafio de compreender, devido a complexidade social e econômica, as características que envolvem a administração pública das cidades. Uma parte considerável da população desconhece a existência de políticas de ordenamento do solo urbano, assim como a sistemática dos orçamentos municipais. Também desconhecem as atribuições, do ponto de vista dos serviços públicos, das gestões municipais, incluindo as formas de financiamento.
Figura 1. Síntese de informações sobre os municípios de Goiânia e São Paulo
Município | População 2022 | Densidade Demográfica | Área (Km2) | Receita Corrente 2023 | Distancia linear (km) aproximada entre os extremos Leste-Oeste |
Goiânia | 1.437.366 | 1970,9 | 729.296,00 | 8.230.766.441,00 | 30 |
São Paulo | 14.511.999 | 7.528.26 | 1.521.296,00 | 85.647.940.027,80 | 46 |
Os dois desafios são, em diferentes escalas, vivenciados pelas pessoas nos 5.570 municípios brasileiros. Aproximadamente 46 km separam os extremos Leste-Oeste do município de São Paulo e 30 km os extremos Leste-Oeste do município de Goiânia. O perfil social, econômico e ambiental que encontramos ao percorrer essa linha revela a complexidade das formas históricas de ocupação do espaço urbano.
Nesse mesmo perfil, encontramos bairros com renda domiciliar assustadoramente assimétricas. A assimetria na renda revela os padrões de moradia e conforto domiciliar. A análise da mesma linha demonstra a seletividade das ações dos governos municipais na oferta de serviços públicos de educação e saúde. Verificamos, seguindo a linha mais atentamente, as curvas da tributação, especialmente do recolhimento de impostos como IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) e ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza).
Não tenho dúvidas que os finados Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo e Iris Rezende, ex-prefeito de Goiânia, saberiam, a partir desse traço Leste-Oeste, descrever o conjunto de prioridades e comunica-las aos eleitores paulistanos e goianienses. Não há aqui nenhum tipo de nostalgia ao populismo. É apenas uma constatação de que, ao que tudo indica, o conhecimento da geografia dessas cidades parece cada vez mais irrelevantes nos debates sucessórios municipais.
O jovem goiano, Pablo Marçal, de 37 anos de idade, almeja administrar uma das cidades mais importantes do Planeta. Orgulha-se por desconhecer a história e a geografia da cidade de São Paulo. Talvez isso o aproxime, infelizmente, de uma fração considerável daqueles que vivem na cidade de São Paulo. Pablo Marçal acredita, e faz com que milhares de outros acreditem, que os complexos problemas da capital paulista serão resolvidos com estratégias motivacionais. Duas das poucas propostas presentes no Plano de Governo (Marçal, 2024), de 100 páginas, adjetivado de São Paulo 2028, são suficientes para comprovar a hipótese da substituição da política pelo espetáculo:
“39. Teleféricos Instalar sistemas de teleféricos em áreas de difícil acesso e regiões com alta densidade populacional, conectando essas áreas a pontos estratégicos da cidade e facilitando o deslocamento diário. Garantir que os teleféricos utilizem energia limpa e sustentável”.
“50. São Paulo como Capital Referência São Paulo é uma potência nacional, com o maior PIB do Brasil, e se destaca como um grande polo de negócios. Para fortalecer ainda mais sua posição como uma metrópole de destaque mundial, propomos, nos próximos quatro anos, posicionar São Paulo como um centro global de negócios e cultura. Para consolidar essa imagem, em parceria com o setor privado, planejamos a construção do maior prédio do mundo, com 1 km de altura. Este edifício será um marco arquitetônico e um símbolo de inovação e progresso. São Paulo será um modelo em termos de mentalidade, governança e inovação, servindo de exemplo para o restante do Brasil”.
Pablo Marçal aposta no espetáculo como método de substituição da política. Pouco interessa discutir os problemas objetivos que influenciam a reprodução da vida de milhões de paulistanos. Pablo Marçal deseja “Uma São Paulo das pessoas que sonham, que são autogovernantes” (Marçal, 2024). Marçal inaugura o anarcourbanismo. Há algo de novo em tudo isso. Não é mais ou, no mínimo, não apenas, o consenso do planejamento estratégico decifrado por Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato, em A cidade do pensamento único.
Não é apenas o modelo hegemônico da empresa fracionando e vendendo os pedaços da cidade. As cidades, de algum modo, falharam. Concentraram, e São Paulo é um exemplo sintomático, os excedentes socialmente produzidos nas mãos de herdeiros e rentistas. Restará, para a legião de pobres, o encarceramento ou a internação compulsória. Essa é, sem dúvida, a nova fronteira urbana neoliberal. Não é mais o lumpen ou qualquer outra categoria que regulava, como outrora, a oferta de mão de obra e, portanto, os salários. O neoliberalismo, ao contrário do que acredita o lúcido Luiz Carlos Bresser Pereira, não fracassou.
Enfim, a cidade neoliberal depende da produção ininterrupta de idiotas. Gente que não perde tempo com os assuntos públicos e que tem, portanto, pouco apreço pela democracia. Quanto menos tempo gastarem pensando nos problemas da cidade mais tempo terão para competir na cidade. A interrogação de filósofos como Platão e Aristóteles sobre quem estaria mais preparado para administrar a polis não faz, na atual quadra da história, nenhum sentido.
É Marçal, e não Boulos, Tabata, Nunes ou Datena, que vocaliza o legítimo desejo de prosperidade dos mais miseráveis. É um equívoco imaginar que o sucesso de Marçal se localize, apenas, no domínio das dinâmicas das redes sociais. Daqui, de Goiânia, entre a fuligem das queimadas, só tenho a agradecer aos paulistanos por acolher tão bem o goiano Pablo Marçal. Antes lá do que cá.
*Tadeu Alencar Arrais é professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Referências
Arantes, Otília, Vainer, Carlos & Maricato, Ermínia. A cidade do pensamento único. Petrópoles, Vozes, 2000.
Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2014.
Aristóteles. Política. Brasília, Editora da UNB, 1985.
Brasil. Estatuto das Cidades. In:https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/////LEIS/LEIS_2001/L10257.htm#:~:text=LEI%20No%2010.257%2C%20DE%2010%20DE%20JULHO%20DE%202001.&text=Regulamenta%20os%20arts.%20182%20e,urbana%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art.,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico. Acesso em 09/09/2024.
Engels, F. A questão da habitação. Belo Horizonte, Aldeia Global, 1979.
Engels, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Global, 1985.
Glotz, Gustave. A cidade Grega. Rio de Janeiro, Difel, 1980.
Howard, Ebenezer. Cidades-Jardins de amanhã. 2ª São Paulo, Hucitec, 2002.
IBGE. @ Cidades. In:https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em 09/09/2024.
Marçal. Plano de Governo. In: https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2024/SP/71072/619/candidatos/250001978066//pje-planodegovernopablomar%C3%A7al.pdf. Acesso em 06/09/2024.
Marx, Karl. O Capital. Livro I, volume II. 29ª . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015.
Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo, Martin Claret, 2009.
São Paulo. Portal da Transparência. In: http://transparencia.prefeitura.sp.gov.br/receitas-despesas/. Acesso em 09/09/2024.
TCM – Goiás. Portal do Cidadão. In:https://www.tcmgo.tc.br/pentaho/api/repos/cidadao/app/index.html?=undefined&bookmarkState=%7B%22impl%22%3A%22client%22%2C%22params%22%3A%7B%22paramMunicipio%22%3A%22Goi%C3%A2nia%22%7D%7D#. Acesso em 09/09/2024.
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