Por MARIAROSARIA FABRIS*
Considerações sobre o filme dos irmãos Taviani, dedicadas à memória de Vittorio (falecido em 2018) e Paolo, que nos deixou no último dia de fevereiro deste ano
Em cinema, quando falamos de som, tendemos, muitas vezes, a privilegiar os diálogos, esquecendo que a banda sonora é constituída também pelos ruídos e pela música e que é esse amálgama homogêneo que vai encadear-se com o elemento visual para formar o universo fílmico.
Essa simplificação de análise levou-me, alguns tempos atrás, a ver no filme Pai patrão, de Paolo e Vittorio Taviani, uma luta travada entre a linguagem do poder (a do pai) e a linguagem da revolta (a do filho), mas só em termos estritamente linguísticos, ou seja, entre o logudorês (um dos dialetos da Sardenha) e o italiano padrão, respectivamente. Equação muito mal resolvida do ponto de vista ideológico, uma vez que, na realidade linguística cotidiana da Itália, os dados se achavam invertidos: a língua padrão correspondia à linguagem do poder e as manifestações dialetais à linguagem, senão da revolta, da resistência, resistência de todo um patrimônio cultural, cujas formas linguísticas, porém, eram, na maioria das vezes, índice de “quanto de provinciano, de antiquado, de opressivo, de risível permanecia na sociedade italiana, formas, portanto, a serem superadas como modelos atuais de expressão, a serem consideradas como restos arqueológicos do passado”, nas palavras de Tullio De Mauro, reportadas em livro de minha autoria.
Instaurava-se dentro de mim certo mal-estar, não diante da obra dos Taviani, que se equilibrava dialeticamente entre tradição e transgressão, mas diante de minha irresoluta participação como espectadora. A re-visão do filme levou-me a uma revisão de leitura. Assim como Gavino (o personagem), fui acordada do meu embotamento pelos acordes da valsa de Strauss. E a partir da música descobri os ruídos, e a partir de ambos reavaliei os diálogos, ou antes, a ausência de diálogo e a conquista do direito de ter voz, a conquista da palavra.
É nesse sentido que vai orientar-se a presente análise, a qual, em princípio, deverá versar sobre a música como elemento privilegiado da banda sonora de Pai patrão, sem excluir, entretanto, os ruídos e as falas, pois o registro sonoro que se articula sobre o registro das imagens não pode prescindir da conjunção desses três elementos para que o filme produza o seu discurso.
A valsa de Strauss, que, de repente, se expande pelo ar e rompe o silêncio que envolvia Gavino e a natureza, abre o segundo bloco do filme sobre aquele que constitui um de seus pontos nodais, pois corresponde exatamente ao momento em que o protagonista começa a descobrir seu meio de comunicação.
Se atentarmos bem, o primeiro bloco – que vai desde o dia em que o pai foi buscar o filho na escola até o coito coral, passando pela dura aprendizagem do pequeno Gavino – caracteriza-se pela ausência de diálogos, pois a voz imperante é a de Efísio, uma voz, na maioria das vezes, ameaçadora, que não admite réplicas, uma voz escorada, quando não substituída, pelo som seco das batidas de seu cajado (ao tirar o filho da escola; na cena em que a mãe está preparando Gavino para o isolamento da coutada; nos vários castigos corporais aplicados ao menino). Nesse sentido é interessante observar que o plano final do prólogo nos mostra Gavino Ledda (o escritor) entregando a Omero Antonutti/Efísio um cajado e dizendo: “Meu pai usava isto também”.
Se, de um lado, esse gesto marca a passagem do espaço da realidade para o espaço da representação, do outro, é um expediente para chamar a atenção sobre o objeto em si, objeto que, como já salientei, é usado frequentemente em todo o bloco, símbolo da violência que caracteriza o discurso paterno.
O prólogo, aliás, é muito interessante também do ponto de vista musical, pois os dois registros sonoros que se alternam sobre os títulos de apresentação são um coro de crianças cantando o “bê-á-bá”, uma melodia de acordes fortes, que lembram marteladas, golpes, e de novo o “bê-á-bá”. Esse prelúdio musical acaba prenunciando e sintetizando o primeiro bloco, em que a educação escolar de Gavino é substituída pela violenta aprendizagem dispensada pelo pai.
Bloco da ausência de diálogos, como dizia, pois as tímidas intervenções da professora, os pensamentos em off dos coleguinhas de Gavino, reduzidos ao silêncio pelo anátema do pai e a conversa da mãe com o filho, que mais parece um solilóquio, vêm reforçar o poder da palavra paterna como instrumento que destrói a possibilidade de comunicação.
Se um diálogo se esboça nesse bloco é o bate-boca entre Gavino e a ovelha rebelde (em off, porque também pertence à esfera dos pensamentos), o que vem nos lembrar que o único código do qual o menino está autorizado a apropriar-se é o da natureza, presença marcante no filme por meio dos sons que povoam seu silêncio: os passos do burro de Efísio, o ramalhar do carvalho, o murmúrio do riacho, os passos do cavalo de Sebastião, os badalos e os balidos das ovelhas, o cacarejar das galinhas, os latidos do cachorro, o vento, o próprio canto sardo entoado pelo pai, uma espécie de balido, que, feito um coro, se expande pelo campo, e a respiração ofegante das crianças que se acasalam com os bichos, dos adultos que se acasalam entre si, de toda a aldeia no cio, que fecha essa primeira parte do filme.
Ao lado desse silêncio povoado pelas vozes da natureza, coexiste o silêncio interior, o que soa como o toque dos sinos a finados, o silêncio do mutismo a que Gavino parece condenado. É sobre esse silêncio, não apenas sobre aquele registrado pela banda sonora após a cópula coletiva, que se ergue a valsa de Johann Strauss. Gavino, agora já com vinte anos, descobre a música e, fascinado por ela, realiza o primeiro ato de desobediência ao pai: troca um velho acordeão por dois cordeiros.
O uso da valsa, não apenas nessa sequência mas em quase todo o segundo bloco, é magistral. A música parece descer do céu para a vala em que Gavino se encontra. Mesmo quando o rapaz espia para fora, ela parece vir do nada, pois a paisagem continua deserta. Uma panorâmica descobre dois músicos, um dos quais está tocando no acordeão o famoso leitmotiv da opereta O morcego (Die Fledermaus, 1874).
A melodia que ouvimos, entretanto, é tocada por uma orquestra, o que dá um sentido muito mais amplo à cena, uma vez que lembra uma cultura largamente difundida e da qual Gavino foi excluído, e impregna de novo o filme de um forte antinaturalismo, como já havia acontecido no bloco anterior, quando, diante do filho machucado, o pai expressava sua dor, a qual se agigantava num dramático coro coletivo. Naquela sequência, também, com uma leve panorâmica, a câmera havia-se deslocado do primeiro plano de Efísio para uma paisagem deserta, mas não despovoada, pois nela ecoava a dor de todas aquelas gerações condenadas à solidão do pastoreio.
A valsa de Strauss volta a explodir no rosto atônito do patriarca, que, ao perceber que está perdendo o controle sobre o filho, tenta roubar seus pensamentos mais secretos durante o sono, e prolonga-se na sequência seguinte, dessa vez tocada pelas mãos inexpertas de Gavino, que está aprendendo a comunicar-se com os outros. A seus penosos acordes responde a flauta de um pastor e, ao contracanto dos dois instrumentos, os soluços entrecortados de um menino que transporta leite num burro. A música passa a ter o valor das palavras, pois cada som é traduzido por uma legenda:
“Eu sou Gavino, filho do pastor Efísio, que é filho do pastor Lucas. O frio de ontem encheu o ovil de pulgas, sinto as mais gulosas debaixo das axilas” (acordeão);
“Eu sou Elígio, filho do pastor João, que era filho do carabineiro Henrique. Comi queijo demasiado fresco, se soprar com força minha língua arde” (flauta);
“Anjos do paraíso que tocais, eu sou Mateus e vos rogo: fazei aparecer uma bacia de água fervendo para os meus pés. Senão vou morrer. É uma súplica” (pranto).
As legendas aparecerão de novo nesse bloco, quando um grupo de rapazes, entre os quais Gavino, tenta emigrar para a Alemanha: sobre a imagem de um enorme carvalho, eleva-se uma música austera, quase religiosa, poeticamente interpretada pelos dizeres: “Sagrados carvalhos da Sardenha, adeus…”. O “contracanto” dos jovens no caminhão, entretanto, é dessacralizador: um faz um barulho desrespeitoso com a boca, outro dá uma banana, Gavino mija. Os valores tradicionais da mãe-terra, sagrados porém também cerceadores, precisam ser reavaliados: os usos e costumes atávicos (como as antigas vinganças que pesam sobre a cabeça de Sebastião); a água delimitadora (como o riacho na coutada de Baddevustrana), que faz da Sardenha uma ilha também de ignorância; os marcos circunscritivos do saber humano (os carvalhos), que parecem intransponíveis como outrora as colunas de Hércules.
Se Sebastião foi morto, se a água será transposta, o carvalho permanecerá como um baluarte até o filho ousar desafiar de vez a autoridade paterna e afirmar sua independência e sua individualidade. Para transpor os confins da própria condição, é necessário contestar a “ordem natural” dentro da qual ele, o pai e gerações de pastores estão encerrados: “Considerate la vostra semenza: / fatti non foste a viver come bruti, / ma per seguir virtute e canoscenza”.[1] Com essas palavras, Ulisses, no XXVI canto do Inferno dantesco, havia exortado os companheiros a alargarem o domínio de seus conhecimentos: palavras que se ajustam a Gavino, disposto a prosseguir em sua odisseia.
Voltemos, entretanto, ao segundo bloco. Com a música, rompe-se para Gavino o isolamento do silêncio: começa a comunicar-se com as pessoas, começa a conhecer a história dos outros pastores – tão parecida com a sua! –, mesmo não tendo ainda o domínio da palavra (daí o uso didascálico das legendas, para que nós, espectadores, detentores de um código outro, possamos entendê-lo).
De fato, na sequência da compra do olival, que sucede à da morte de Sebastião, o pai é o único que fala com a viúva para fechar o negócio; do resto da família só ouvimos a voz em off dos pensamentos, sobre os quais explode de novo a música, uma canção cantada por Mina, da qual captamos distintamente apenas duas palavras, “o sonho…”. Música que continua na sequência seguinte, em que toda a família está trabalhando freneticamente, cada um perseguindo sua quimera; música que Gavino tocará na casa do comerciante de azeitonas, instigado pelo pai.
Essa última sequência é muito significativa, pois é a primeira vez que Efísio permite ao filho expressar-se. Obrigado a calar-se diante da cultura do filho do comerciante de azeitonas, reconquista sua autoridade graças à habilidade de Gavino, e, se lhe havia vedado o ingresso ao mundo dos dominadores, castigando-o por ter respondido em seu lugar, reconhece-lhe, porém, a própria capacidade de expressão.
A importância dessa sequência acresce-se diante da seguinte, em que a narração de abertura é feita por Gavino Ledda em voz off. O trecho narrado é praticamente extraído do livro de sua autoria Padre padrone: l’educazione di un pastore (Pai patrão, 1975) e isso parece-me muito significativo, porque os Taviani passam a palavra para Gavino Ledda exatamente no momento em que no filme Gavino tem sua “voz” autorizada pelo pai. A narração passa da terceira para a primeira pessoa, há uma pausa realista dentro do filme, cria-se um novo efeito de distanciamento, pois é salientado o fato de que o discurso cinematográfico está criando uma realidade outra.
O antinaturalismo buscado pelos diretores volta a afirmar-se com toda a sua força naquela que talvez seja, do ponto de vista musical, a sequência mais marcante do filme: a da procissão. Ao Miserere sardo entoado pelos pais (o mesmo do primeiro bloco), alterna-se a conversa abafada dos jovens sob o andor, até que uma canção alemã de cervejaria se expande pelo ar: Trink, trink, Brüderlein trink, lass doch die Sorgen zu Haus…[2]. Os dois cantos rivalizam entre si, sem que se chegue a uma osmose. São dois mundos que se chocam e parece não haver possibilidade de reconciliação. É o momento em que os jovens pastores, servos de seus patrões ou dos pais, pensam em partir para a Alemanha, onde os aguarda uma vida também de servidão, mas na qual vislumbram a possibilidade de terem sua individualidade reconhecida:
“– Você vai continuar sob as ordens de um patrão.
– Mas, pelo menos, lá a gente tem um nome.
– Que nome?
– O próprio, aqui eu esqueci o seu. Para falar de você, a gente diz: o servo do seu Zé, o servo do seu Zé”
Ludibriado pelo pai, que o deixou ir embora, mas não assinou a autorização para emigrar, tapeado porque, se aprendeu a comunicar-se ainda não possui a palavra, Gavino vai servir no exército, seguindo a vontade de Efísio, que volta a fechá-lo num mundo isolado do presente (terceiro bloco). A música desapareceu do filme e só voltará quando ele reencontrar sua forma de expressão. Durante o serviço militar, cai de novo no silêncio, pois, vindo de uma outra civilização, de uma outra língua, não consegue integrar-se facilmente. A cultura sarda (mais ligada à terra) e a cultura italiana (expressão de uma classe burguesa) entram em choque.
O toque dos sinos a finados volta a ecoar na cabeça de Gavino, eliminando os outros sons. Estes, porém, prorrompem no filme no momento em que a amizade de Cesare consegue vencer a barreira do silêncio (na Praça dos Milagres de Pisa). O mundo mágico das palavras começa a abrir-se para o pastor semianalfabeto e essa descoberta culmina num outro grande momento do filme, quando Gavino, a partir de uma explicação sobre o significado da bandeira, alinha toda uma série de palavras que se encadeiam pelo sentido, pelo poder evocativo, pelo efeito fonético:
“Bandiera banderuola bando bandito bandita baritono bantù barocco basílico barone…
Stato stagnino staffile stadera stalagmite starnuto statuto…
Stazzo ragazzo pargolo infante putto bebé livido rattrappito screpolato rapace… rapace selvatico agreste. ..
Alpestre bucolico idillico arcadico pastorale pastorizia pastorizzazione deportazione separazione esclusione masturbazione libido turgore languido laido…
Padre patriarca padrino padrone padreterno patrono…”[3].
Outro grande momento de distanciamento, de reflexão sobre a própria condição, de dolorosa tomada de consciência, de domínio da expressão. A música de Strauss volta a explodir, sai volteando do aparelho construído para obter o diploma de técnico de rádio. Adquirida a palavra, Gavino desobedece de novo ao pai: inscreve-se na faculdade para tornar-se glotólogo, volta para a Sardenha. Seu encontro com Efísio é comentado por um coro em off e indistinto de diz-que-diz, sobrepujado pelos pensamentos deste, o qual, mais uma vez, nega a comida ao filho (como quando da primeira desobediência).
O trabalho intelectual se lhe afigura como um engodo: quem não ganhar o pão com o suor do próprio rosto não come. Procura confinar Gavino no ovil como outrora, mas o filho rebela-se, dedica-se aos estudos, volta para casa. Agora os sinos a finados tocam para Efísio privado da voz pelo filho, que o fez calar. Interrompe o trabalho na lavoura e dirige-se para casa, a fim de restabelecer sua autoridade. Sobre seus passos já se eleva a música de Wolfgang Amadeus Mozart que Gavino está escutando na cozinha.
Começa o enfrentamento decisivo de duas culturas: de um lado, o filho, que está afinando seus conhecimentos (e é significativo que da valsa de Strauss, recriação de danças populares, se passe para o concerto de Mozart, o grande compositor do século do Iluminismo); do outro, o pai, que continua a expressar-se autoritariamente: bate com a palma da mão na mesa para pedir o jantar, ordena ao rapaz apagar o rádio, tenta golpeá-lo com um pau e, diante de sua resistência, mergulha o aparelho na água da pia.
A música de Mozart, entretanto, continua, assobiada por Gavino. Ao ver que não conseguiu tirar-lhe as armas que conquistou para expressar-se, Efísio pede-lhe para renunciar à sua linguagem (musical, articulada), que ele não domina, e adotar a dele (a da violência). O desafio é aceito e começa a luta corporal, na qual o filho derrota o pai. Indiferente, a mãe canta uma canção sarda, debruçada no silêncio da noite. Confinada num mundo natural, tradicionalmente mudo, não “contaminado” pela razão (suas risadas e suas manifestações um pouco histéricas, seu instinto de preservação), a luta pela dominação, que se trava no universo masculino, ao qual sempre foi submetida e do qual sempre foi excluída, não lhe diz respeito.
Gavino derrota o pai falando exatamente sua mesma linguagem, a das pancadas, dos tapas, das sovas, a linguagem do dominador, a linguagem do poder, da qual não quer apropriar-se. E, no epílogo, Gavino Ledda confirma a interpretação que os irmãos Taviani deram à sua história, ao dizer que voltou para sua aldeia porque no continente exerceria o poder que a cultura lhe conferiu, no que estaria imitando seu pai, porque a sua terra, a sua gente lhe permitiram escrever o livro, no qual o filme se inspirou livremente.
Reaparece, então, a cena do início, quando o pai, após tê-lo tirado da escola, volta para fazer cessar os gritos de escárnio das outras crianças. Só que agora, sobre as imagens dos rostinhos assustados, não se ergue a voz em off de seus pensamentos, mas a valsa de Strauss, a mesma valsa que arrancou Gavino do analfabetismo, a qual logo se funde com o vento. E o vento sopra sobre a aldeia deserta e sobre Gavino Ledda, que, sentado no vale onde transcorreu a infância e a adolescência, começa a balançar-se como antigamente. Dessa vez, porém, os sinos não dobram. Sobre os letreiros que fecham o filme, ouvem-se o concerto de Mozart e o vento. A barreira do silêncio foi superada, mas a dor calou fundo.
Sem dúvida alguma, o elemento sonoro e o elemento visual combinam-se modo admirável nesta obra de Paolo e Vittorio Taviani. A música não serve simplesmente de contraponto à imagem, mas intervém de forma decisiva na trama do filme, da qual em momento algum aparece dissociada, pois a luta que se trava entre a “ordem natural” e a história se articula sobretudo no plano sonoro.
De fato, se quisesse caracterizar os blocos em que dividi Pai patrão, seria mais fácil fazê-lo a partir do som. O primeiro bloco é o dos ruídos, porque nele predominam os sons da natureza e a linguagem do pai, telúrica, atávica, estática. No segundo bloco, a música vem romper o silêncio suspenso sobre a “ordem natural”, ritmada pelo suceder-se das estações e das gerações, e começa a povoar o silêncio interior de Gavino, com suas evocações de um mundo outro, de uma cultura outra que não necessariamente aquela circunscrita e tradicional de sua ilha (ou de qualquer realidade regional isolada). O terceiro bloco, o da palavra, é marcado pela contestação à “ordem natural”, pela busca individual de expressão como garantia de integração numa ordem social mais dinâmica e dialética (história).
A matéria sonora, portanto, impregna a trama narrativa com ruídos, com palavras e com a música de Egisto Macchi,[4] o qual, a trechos de sua autoria, alterna o “bê-a-bá”, reelaboração de uma cantiga do folclore italiano, a canção cantada por Mina, uma intérprete da música popular italiana, o Miserere sardo, a canção alemã de cervejaria, o Concerto para clarineta e orquestra em Lá, K. 622 – 2º movimento: andante, de Mozart, a canção folclórica sarda, cantada pela mãe, e, sobretudo, a valsa, extraída da opereta de Strauss. A valsa, representante de uma cultura metropolitana em oposição aos ritmos ancestrais da Sardenha, a valsa, que, com seu compasso ternário fortemente marcado, acaba por determinar a estrutura do filme.
Este não persegue uma ordem linearmente cronológica, mas subdivide-se, como já vimos, em três blocos sintéticos e evolui dramaticamente por meio de repetições ternárias: a própria história foi escrita por Gavino Ledda, é narrada pelos Taviani, é contada a Cesare por Gavino, que se serve das palavras da Eneida, de Virgílio; a voz do autor do livro faz-se presente no prólogo, no meio do filme e no epílogo; atraído pela valsa, Gavino, por três vezes, coloca-se no caminho dos músicos; no segundo bloco, as legendas são usadas em três momentos distintos – quando Gavino faz vinte anos, quando o acordeão, a flauta e o pranto do menino ecoam na solidão do vale (e os instrumentos de comunicação são três), no adeus aos carvalhos; o corte do lábio com a faca, feito por Gavino quando troca os cordeiros pelo acordeão e, durante o serviço militar, quando evita ser testado pelo instrutor, é retomado por Efísio, após o enfrentamento final, para justificar sua derrota diante dos outros filhos; o movimento de embalo de Gavino começa no primeiro bloco (infância), repete-se prolongadamente no segundo (início do serviço militar), reaparece no prólogo (efetuado pelo próprio Gavino Ledda); o toque dos sinos a finados acompanha o primeiro e o segundo balançar-se de Gavino e volta a surgir quando Efísio percebe que sua voz já não tem autoridade.
Os exemplos citados nos repropõem também a questão da língua, que, se numa primeira leitura parece refletir o choque entre uma cultura hegemônica (a italiana) e uma cultura subalterna (a sarda), numa análise mais aprofundada se revela como o confronto entre os que detêm o poder e os que a ele estão subordinados. E isso constitui o grande fascínio de Pai patrão. A apropriação da cultura hegemônica não significa necessariamente a negação da cultura subalterna.
De fato, no filme, a cena em que Efísio ensina o filho a reconhecer os sons da natureza recebe um tratamento carinhosamente idílico; quando Gavino está aprendendo a tocar o acordeão, e a flauta e os soluços entrecortados do menino respondem-lhe, os Taviani traduzem para nós, espectadores letrados, os signos desse outro código que não possuímos; Gavino estuda cientificamente as expressões dialetais de sua terra; o cheiro das mimosas permite-lhe alcançar a edícula na Praça dos Milagres de Pisa, num belíssimo momento de integração das duas culturas.
A nova língua adquirida serve a Gavino-Gavino Ledda para refletir sobre a língua materna e sobre seu patrimônio cultural, transforma-se num instrumento de libertação (e não de transferência do esquema do poder para outra esfera), num instrumento de conquista da palavra, daquele som articulado que vence a barreira da incomunicabilidade, rasga o silêncio e resgata para a história os marginalizados.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “O cinema italiano contemporâneo”, que integra o volume Cinema mundial contemporâneo (Papirus).
Versão revista de “Acordando o silêncio – o som em Pai patrão”, publicado em Revista Comunicações e Artes, São Paulo, ano 13, n. 18, abr. 1988.
Referências
ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. Milão: Rizzoli, 1949.
“Il cinema, la musica, la prosa, la tv”. Bolognaincontri, Bolonha, ano 16, n. 4, abr. 1985.
COMUZIO, Ermanno. “Musica e suoni protagonisti nel cinema dei fratelli Taviani”. Bianco e nero, Roma, ano 38, n. 5-6, set.-dez. 1977.
FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura. São Paulo: Edusp-Fapesp, 1982.
HERZOG, Werner. “Von Ende des Analphabetismus”. Die Zeit, Hamburgo, 24 nov. 1978.
LEDDA, Gavino.Padre padrone: l’educazione di un pastore. Milão: Feltrinelli, 1977.
TAVIANI, Paolo e Vittorio. Padre padrone. Bolonha: Cappelli, 1977 [transcrição, a partir do filme, de Emma Ferrini].
TRESOLDI, Tiago. “ A introdução do Ulisses centrífugo: tradução e comentário do canto XXVI do ‘Inferno’ de Dante Alighieri. Translatio, Porto Alegre, n. 12, dez. 2016.
Notas
[1] Tradução de Tiago Tresoldi: “Considerais vossa procedência: / feitos não fostes para viver como brutos, / mas para seguir virtude e sapiência”.
[2] Esta sequência tem despertado o interesse de vários críticos. Entre os mais entusiasmados figura o cineasta alemão Werner Herzog, que a destaca (ao lado daquela do canto sardo coral) como um dos momentos em que a consonância entre música e imagem no filme se realiza plenamente.
[3] Tradução (e interpretação): Bandeira cata-vento convocação/desterro desterrado coutada (terra reservada para pasto) barítono (= música, voz) bantu (= africano, não-civilizado, sulista) barroco (pérola irregular, defeituosa) manjericão (= aroma) barão (= senhor feudal)… // Estado funileiro (que lida com o estanho, como o técnico de rádio) açoite balança (na qual pesar presente e passado) estalagmite (cuja forma lembra a cabana do ovil) espirro (= expulsão) estatuto… // Ovil rapaz criança infante menino bebê lívido encolhido gretado ave de rapina… ave de rapina selvagem agreste… // Alpestre bucólico idílico arcádico pastoril pastoreio pasteurização deportação separação exclusão masturbação libido turgidez lânguido torpe… // Pai patriarca padrinho patrão (dono) Deus-pai padroeiro…
[4] Egisto Macchi, compositor de vanguarda e discípulo de Hermann Scherchen, fez música para filmes desde os anos 1960. Entre as trilhas sonoras que compôs para vários documentários e longas metragens, destacam-se La canta delle marane (1961, roteiro de Pier Paolo Pasolini), de Cecilia Mangini; All’armi, siam fascisti! (1962), de Lino Del Fra, Cecilia Mangini e Lino Micchiché; Viaggio in Lucania (1965), de Luigi Di Gianni; La via del petrolio (1967), de Bernardo Bertolucci; O assassinato de Trotsky (The assassination of Trotsky, 1972) e Cidadão Klein (Mr. Klein, 1976), de Joseph Losey; Il delitto Matteotti (O delito Matteotti, 1973), de Florestano Vancini.
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