Por DANIEL PAVAN*
O engajamento do intelectual segundo Walter Benjamin
Como pode o intelectual se engajar socialmente quando solaparam as bases morais e objetivas de sua posição? Qual o papel do intelectual numa sociedade capitalista avançada, dominada pela a divisão do trabalho, pela racionalização técnica e pelo imperialismo? Como aliar uma origem privilegiada a um engajamento em prol da classe dominada que não caia na condescendência, na violência simbólica ou no dirigismo? Essas são algumas das questões ao redor das quais se produz um debate tão rico quanto acalorado. São, também, parte de uma problemática que foi objeto de reflexão de Walter Benjamin, importante filósofo alemão e expoente da corrente que recebe o nome de teoria crítica. Suas ideias, elaboradas há quase um século, continuam relevantes.
Em A Presente Situação Social do Escritor Francês, publicado em 1934, o filósofo e crítico literário toma para si o trabalho de produzir uma interpretação propositiva para o tema do papel social do intelectual, tendo como referência algumas figuras marcantes das correntes literárias da França na virada do século XIX para o XX. Essa reflexão é feita a partir de uma genealogia das formas de engajamento do intelectual que pode ser dividida em três ‘momentos’ distintos. No terceiro momento, alcança-se o que seria para Walter Benjamin a paixão dialética – a essência de uma forma de engajamento político fundada na assunção radical da contrariedade inerente ao estatuto social do intelectual, que assume a solitária posição de quem nega a própria classe mas que jamais pertencerá a outra. Uma tal posição, dialeticamente construída, crítica nas próprias raízes, almeja dar conta das contradições, das desigualdades e das impossibilidades de sua condição.
A proposta deste artigo é apresentar o processo de elaboração do conceito de paixão dialética, na esperança de poder contribuir para o debate contemporâneo.
Primeiro momento: O niilismo romântico burguês
Maurice Barrés foi um intelectual de considerável importância para a intelligentsia do pré primeira guerra francês. Trata-se, nas palavras de Benjamin, de um ‘niilista romântico’[i]. Suas ideias concentraram-se em doutrinas que “consistem da mesma perspectiva niilista básica, do mesmo conjunto de gestos idealistas e do mesmo conformismo que resulta da síntese de niilismo e idealismo”[ii]. Seus apelos, movidos por uma aliança entre sentimentos religiosos de inspiração católica e um certo culto da natureza, não deixam de partilhar semelhanças com ímpetos de caráter fascista encontrados na Itália e na Alemanha da época. Sua obra de maior impacto, Les Déracinés (Os Desenraizados), representa aquilo que, para Benjamin, é sua filosofia da hereditariedade –como o nome já diz, trata-se de exaltações à riqueza herdada e aos privilégios provenientes dessa condição. Barrés faz, nessa obra, um estudo de caráter de um de seus professores, Jules Lagneau. Diferentemente de Barrés, Lagneau não recebeu herança alguma, pelo contrário, foi obrigado a sustentar sua família desde os vinte anos, sendo assim, aos olhos de Barrés, um verdadeiro desenraizado. Lagneau é, também, um expoente importante de uma corrente política, organizada em torno do partido Radical na França. De certa forma, Lagneau se faz opositor de Barrés, mas essa oposição se dá sobre os mesmos pressupostos. Enquanto Barrés elogia a riqueza herdada, Lagneau clama pela renúncia de todas as poupanças e todos os bens acumulados. Apesar dessa oposição, ambos se encerram em uma defesa de ideais da burguesia, valorizando sua riqueza moral e intelectual.
Nesse conflito, uma terceira figura aparece: Julien Benda. Em seu livro La Trahison des Clercs (A Traição dos Intelectuais), já no começo da década de 1930, Benda expressa sua crítica ao engajamento dos intelectuais da época. Benda se mostra incomodado com a maneira com que os intelectuais passaram a responder às demandas da política. “De acordo com ele, desde que os intelectuais surgiram, sua tarefa histórica tem sido ensinar os valores universais e abstratos da humanidade: liberdade, justiça e humanismo”[iii]. Os autores até então mencionados, ao lado de muitos outros, teriam traído tais valores. Benjamin é rápido em expor a fraqueza desta posição. Benda termina preso a moralidade de um humanismo cristão para intelectuais; seu lugar seria algo como a cela de um monge, isolado em seu monastério, “à qual os intelectuais – ‘os espirituais’ – retraem-se para compor o texto do próximo sermão, destemidos da ideia de que ele será apresentado a fileiras de assentos vazios, caso seja sequer apresentado”[iv].
Charles Péguy é a última figura deste primeiro momento da genealogia de Walter Benjamin. Péguy faz um apelo “às forças da terra e da fé para atribuir aos intelectuais um papel na vida da nação”[v], mas, diferentemente de Barrés, sem renunciar aos elementos libertários e anárquicos da Revolução Francesa. Ele não deixa, portanto, de apelar a seus apoiadores para que ataquem os líderes e acadêmicos que traíram o povo do qual se originaram. Esse posicionamento, facilmente visto como combativo, falha, porém, em assumir e dar conta dos conflitos políticos de sua época.
Segundo momento: o romance populista
Se, até então, encontramos correntes literárias cujo posicionamento é compatível – ou mesmo aliado – com o poder dominante, é com a literatura naturalista de Émile Zola que uma ruptura começa a se esboçar, ainda que não seja capaz de se concretizar plenamente. Com Zola, o proletariado ganha um lugar privilegiado na literatura. O naturalismo, afirma Benjamin, “não apenas determinou o sujeito e a forma dos romances de Zola, mas também forneceu algumas de suas ideias básicas – tal como o projeto de representar a hereditariedade e o desenvolvimento social de uma única família”[vi]. A literatura engajada de Zola padece, porém, de uma doença grave: “a pura natureza impessoal e simplista das personagens do dito romance populista os faz parecer personagens dos contos de fadas de antigamente, e seu poder expressivo é tão limitado que lembra o balbuciar infantil daquelas esquecidas figuras de fantoche”[vii]. Trata-se do grave erro no qual “a vida interior dos deserdados e oprimidos é marcada por uma simplicidade própria, à qual autores frequentemente gostam de adicionar um elemento de edificação moral”[viii]. Os oprimidos, apesar de ganharem papel privilegiado na literatura, aparecem unificados, simplificados e esvaziados. Sua forma não é senão o fruto da imaginação do intelectual, que impõe uma realidade que não lhes é própria. Para Benjamin, os produtos dessa nova corrente “mostram que aquilo com que lidamos são apenas os velhos impulsos filantrópicos em nova forma”[ix].
Isso acontece pois essa corrente se esquece do “fato de que a essência do treinamento e da experiência revolucionária é reconhecer e explorar a estrutura de classe das massas”. A literatura de Zola carece de qualquer fundamento teórico. Em razão disso, não consegue senão “escolher temas que parcialmente escondem a falta de insight e de educação do autor”[x]. Outra obra que partilha deste defeito, segundo Benjamin, é Voyage au bout de la nuit (Viagem ao fim da noite) de Céline, na qual o Lumpenproletariado é protagonista. Céline “é bem-sucedido em retratar vividamente a tristeza e a esterilidade de uma vida na qual as distinções entre dia útil e feriado, sexo e amor, guerra e paz, cidade e país foram obliteradas. Mas ele é incapaz de nos mostrar as forças que moldaram a vida destes excluídos”[xi].
Além dessa ausência de qualquer teoria política que possa dar norte a um engajamento crítico digno da complexidade, diversidade e profundidade dos temas escolhidos, outro elemento se junta às razões que limitam a corrente populista: o conformismo. Esse conformismo torna os romancistas do século XX incapazes de enxergar o mundo em que vivem. A razão disso, diz Benjamin, é puro medo. Os intelectuais sabem que a burguesia, bem-sucedida em sua tomada de poder, não precisa mais de seu trabalho de defesa de valores humanistas. “Pela segunda vez na era burguesa, seus intelectuais entraram em uma fase militante. Mas, enquanto entre 1789 e 1848 eles ocuparam uma posição de liderança como parte da ofensiva burguesa, agora seu papel é defensivo”[xii]. Os intelectuais se preocupam com defender a fiabilidade de sua posição, o que faz com que os autores procurem apenas ordenar o caos da produção literária, num esforço de adaptação à sociedade. Isso não significa que estejam completamente entregues à produção de ideologia burguesa, mas que ficam jogados em uma classe média, na qual flutuam insignificantes. Em razão disso, “o intelectual imita a aparência externa da existência proletária sem sequer estar remotamente conectado à classe trabalhadora. Ele então procura a posição ilusória de estar do lado de fora do sistema de classes”[xiii]. Mesmo Zola, que recusa a sociedade francesa da segunda metade do século XIX, acaba preso ao conformismo – justamente porque sua posição assemelha-se a esse distanciamento simplista do autor em relação a seu objeto.
Outro problema recorrente nas obras dos intelectuais desse segundo momento diz respeito à separação que se faz entre o escritor e o romancista. O romancista tende cada vez mais dissociar o social do psicológico em suas narrativas, chegando a ignorar o primeiro. Benjamin associa a redução do elemento social da experiência individual àquele conformismo de sua geração de intelectuais: “eles insistem em observar a vida de um personagem em um romance como um processo isolado que foi fixado de início no quadro de um tempo vazio”[xiv].
Para Benjamin, dois autores escapam desse dilema. Gide e Proust. Em A la Recherche du Temps Perdu é justamente a memória do momento produtor que é apagada. “O mundo que Proust retrata exclui tudo que esteja envolvido na produção. A atitude do esnobe que predomina nada é além de uma observação consistente, organizada e endurecida da existência a partir do ponto de vista do puro consumidor. Seu trabalho esconde uma impiedosa e penetrante crítica da sociedade contemporânea”[xv]. O mérito de Proust é se fazer sempre presente como autor, oferecendo-se à disposição do leitor. Autor e obra não são, para Benjamin, separáveis, e um romancista que se responsabiliza pela sua obra deve se implicar diretamente nela. Essa questão aparece como central para Paul Valéry. Valéry se propôs a “explorar a inteligência do escritor e, especialmente, do poeta como um inquisidor; ele apela por uma quebra na visão amplamente partilhada de que é auto evidente que escritores são inteligentes, assim como a ainda mais amplamente aceita ideia de que o intelecto é irrelevante para o poeta”[xvi]. Isso leva uma crítica das ideias de inspiração e de acaso, e demanda uma valorização radical da implicação do autor naquilo que escreve. Valéry é bem-sucedido em realizar essa tarefa de integração de sua vida intelectual em sua obra, mas falha em ir além da vida privada. Quem realizará tal proeza é André Gide.
Terceiro momento: a paixão dialética
Com Gide, chegamos a terceira etapa da genealogia de Walter Benjamin. Agora, podemos nos dedicar à contribuição mais importante de sua reflexão, a noção de paixão dialética. Para tanto, recapitulemos rapidamente como chegamos aqui.
Partimos de uma posição essencialmente burguesa, para a qual a diferença entre classes e condições sociais não era central, sequer considerada como problema. Nela, apesar das disputas internas, não se encontra uma crítica nem do papel do intelectual, nem da própria sociedade, que seja capaz de dar conta do conflito entre as classes sociais. Passamos então a um segundo momento, no qual os oprimidos, dominados e desfavorecidos ganham protagonismo. Esse protagonismo, porém, é uma negação incompleta da condição burguesa, e não uma emancipação verdadeira. Por mais que se trate da exposição da violência, da desigualdade e do desprezo, não há real avanço, posto todos esses elementos não passam de formas caricatas, desenhadas por um intelectual que desconhece a real complexidade dos conflitos sociais – afinal, falta-lhe uma teoria política, um verdadeiro inconformismo e a capacidade de implicação de sua própria condição social em sua atividade. A terceira posição faz, enfim, a ‘síntese’ das contradições entre as duas anteriores: reconhece o elemento burguês inerente à origem e à posição social do intelectual, mas inscreve também um engajamento com a classe trabalhadora e com os oprimidos pela sociedade. Em vez de buscar um falso ‘justo meio’, tal posição assume radicalmente essa contradição e é capaz de oscilar entre os extremos.
Pode-se compreender a essência da posição intelectual de Gide a partir da maneira como ele critica e reinterpreta o desenraizado de Barrés. Para Gide, é justamente esse desenraizamento que ‘força’ a originalidade. “Foi em nome dessa originalidade que Gide deu cabo à exploração de todo o campo de possibilidades que tal disposição e desenvolvimento abriram para ele. E quanto mais impressionantes essas possibilidades eram, mais implacavelmente ele lutou para dá-las um lugar em sua vida”[xvii]. Esse ‘caminho’, mais do que uma posição, de exploração da própria condição foi adotado por Gide, que se autorizou o aprofundamento radical, destemido de qualquer contradição. “Essa rejeição fundamental do justo meio, esse cometimento com os extremos, é a dialética – não como um método intelectual, mas como sangue e paixão. Mesmo nos extremos, o mundo ainda é inteiro, ainda é saudável, ainda é natureza. E o que o move em direção a tais extremos não é a curiosidade ou o zelo apologético, mas a paixão dialética.”[xviii].
Gide assume a posição daquele que se vê mergulhado em valores, posições e morais em contradição entre si, e faz dessa contraditoriedade a potência de seu engajamento intelectual. Para o autor francês, “uma ação na qual eu não reconheço todas as contradições dentro de mim me trai”[xix]. Benjamin nota que Gide se recusou assumir a posição do ‘gênio livre’, típica à ideologia burguesa. Indo além de Válery, que já havia “integrado sua produção em sua vida intelectual, Gide integrou a sua em sua vida moral”[xx].
O movimento de Gide, impulsionado por essa paixão dialética o coloca numa situação semelhante àquela dos protagonistas de La Condition Humaine (A Condição Humana) de André Malraux. No romance, “o episódio do levante revolucionário em Shangai que foi contido de forma bem sucedida por Chiang Kai Shek não é nem politicamente nem economicamente transparente. Ele serve como pano de fundo para a representação de um grupo de pessoas com um papel ativo nesses eventos. Por mais diferentes que sejam seus papeis, por mais diferentes que essas pessoas sejam em seu caráter e passado, e por mais hostis à classe dominante que elas possam ser, elas têm uma coisa em comum: todas se originam dela”[xxi]. Essa posição peculiar, negativa, em que se encontram os protagonistas de Malraux, não deve ser evitada, mas assumida. “O fato de que esses intelectuais tenham abandonado sua própria classe em nome de uma causa comum com o proletariado não significa que o último os tenha aceito em suas fileiras. Nem devem. Eis a dialética em que os heróis de Malraux vivem. Eles vivem para o proletariado; mas não agem como proletários”[xxii]. Trata-se de uma posição profundamente solitária, e ao intelectual engajado por paixão dialética não há saída. Não a assumindo, ou ele permanece em sua condição inicial privilegiada, ou tenta ser o que não é e pertencer onde não pertence. O problema de Malraux, e o maior risco dessa condição, é universalizá-la, fazer dela A Condição Humana, pois com isso repete o erro do intelectual populista, que apenas projeta suas concepções naqueles cuja causa pensa defender.
Tem-se, enfim, a proposta de Walter Benjamin para o intelectual engajado: assumir essa posição, que, na verdade, é um processo de descobrimento e de crítica de si e do mundo pelas contradições, sem medo de ir aos extremos. Valer-se, tanto da teoria quanto da experiência, de tal modo que esteja plenamente implicado em suas obras, tendo ciência de sua posição – do que ela permite e, principalmente, do que ela impede. Assumir, no fim, a solidão que resulta do conflito entre sua formação individual e seu engajamento nas lutas sociais, e transformar o peso dessa condição em potência. Eis a paixão dialética.
*Daniel Pavan é graduando em Ciências Sociais na USP.
Notas
[i] BENJAMIN, Walter. “The Present Social Situation of the French Writer” In: Selected Writings, Volume 2, Part 2, 1931 – 1934. Org. Michael W. Jennings, Howard Eiland, Gary Smith. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, and London, England. (Tradução livre para o português). p.745
[ii] Ibid.p. 745
[iii] Ibid.p. 748
[iv] Ibid.p. 749
[v] Ibid.p. 750
[vi] Ibid.p. 751
[vii] Ibid.p. 751
[viii] Ibid.p. 752
[ix] Ibid.p. 752
[x] Ibid.p. 752
[xi] Ibid.p. 752
[xii] Ibid.p. 753
[xiii] Ibid.p. 753
[xiv] Ibid.p. 755
[xv] Ibid.p. 755
[xvi] Ibid.. p. 756
[xvii] Ibid.. p. 757
[xviii] Ibid.pp. 757, 758
[xix] GIDE apud BENJAMIN, Ibid.p.758
[xx] Ibid.p. 758
[xxi] Ibid.p.761
[xxii] Ibid.p.761