Páscoa – a irrupção do inesperado

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Sem a ressurreição não existiriam as comunidades cristãs. Perderiam seu evento fundador e fundante.

Os cristãos celebram na Páscoa aquilo que ela significa: a passagem. No nosso contexto, é a passagem da decepção para a irrupção do inesperado. Aqui a decepção é a crucificação de Jesus de Nazaré e o inesperado, sua ressurreição.

Ele foi alguém que passou pelo mundo fazendo o bem. Mais que doutrinas introduziu práticas sempre ligadas à vida dos mais fracos: curava cegos, purificava hansenianos, fazia andar coxos, devolvia à saúde a muitos doentes, matava a fome de multidões e até ressuscitava mortos. Conhecemos seu fim trágico: uma trama urdida entre religiosos e políticos o levaram à morte na cruz.

Os que o seguiam, apóstolos e discípulos, com o fim trágico da crucificação ficaram profundamente frustrados. Todos, menos as mulheres que também o seguiam, começaram a voltar para suas casas. Decepcionados, pois esperavam que trouxesse a libertação de Israel. Tal frustração aparece claramente nos dois discípulos de Emaús, provavelmente, um casal que caminhavam cheios de tristeza. A alguém que se uniu a eles no caminho dizem lamuriosos: “Nós esperávamos que fosse ele quem iria libertar Israel, mas já passaram três dias que o condenaram à morte” (Lucas 24, 21). Esse companheiro, se revelou depois, como sendo Jesus ressuscitado, reconhecido na forma como benzeu o pão, o partiu e distribuiu.

A ressurreição estava fora do horizonte de seus seguidores. Havia um grupo em Israel que acreditavam na ressurreição mas no final dos tempos, a ressurreição entendida como uma volta à vida como sempre foi é.

Mas com Jesus aconteceu o inesperado, pois na história sempre pode ocorrer o inesperado e o improvável. Só que o inesperado aqui são de outra natureza, um evento realmente improvável e inesperado: a ressurreição. Ela deve ser bem entendida: não se trata da reanimação de um cadáver como o de Lázaro. Ressurreição representa uma revolução dentro da evolução. O fim bom da história humana se antecipa. Ela significa o inesperado da irrupção do ser humano novo, como diz São Paulo, do “novíssimo Adão”.

Este evento é realmente a concretização do inesperado. Teilhard de Chardin cuja mística é toda centrada na ressurreição como uma absoluta novidade dentro do processo da evolução a chamava de um “tremendous”, de algo, portanto, que mexe com todo o universo.

Essa é a fé fundamental dos cristãos. Sem a ressurreição não existiriam as comunidades cristãs. Perderiam seu evento fundador e fundante.

Por fim, cabe ressaltar que os dois mistérios maiores da fé cristã estão intimamente ligadas à mulher: a encarnação do Filho de Deus com Maria (Lucas 1,35) e a ressurreição com Maria de Mágadala (João 20,15). Parte da Igreja, a hierárquica, refém do patriarcalismo cultural, não atribuiu a este fato singular nenhuma relevância teológica. Ela seguramente está nos desígnios de Deus e deveria ser acolhido como algo culturalmente inovador.

Nestes tempos sombrios, marcados pela morte e até com o eventual desaparecimento da espécie humana, a fé na ressurreição nos rasga um futuro de esperança. Nosso fim não é a autodestruição dentro de uma tragédia, mas a plena realização de nossas potencialidades pela ressurreição, a irrupção do homem e da mulher novos.

Feliz Páscoa a todos os que conseguem crer e também a quem não o consegue.

*Leonardo Boff é teólogo. Autor, entre outros livros, de A ressurreição de Cristo e a nossa na morte (Vozes).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES