Por MARIAROSARIA FABRIS*
Considerações sobre a encenação da peça teatral de Mario Benedetti
No âmbito do 50º aniversário do golpe militar de 1964, paralelamente à exposição Resistir é preciso… (12 de outubro de 2013 – 6 de janeiro de 2014), o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo apresentou a montagem de Pedro e o capitão, Apesar de ter sido escrita em 1979, ano em que ganhou o Prêmio da Anistia Internacional, e de alcançar logo o sucesso, Pedro e o capitão (Pedro y el Capitán) continuou a ser encenada inúmeras vezes neste primeiro quartel do século XXI, principalmente em países de língua espanhola[1], e acabou sendo a única obra dramática de seu autor a ser lembrada pelo grande público.
O uruguaio Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 – Montevidéu, 17 de maio de 2009), no entanto, escreveu outras peças – Ida y vuelta (concebida em 1955, representada em 1958 e publicada em 1963), El reportaje (1958) e El viaje de salida (2008)[2] –, embora seja mais conhecido por seus romances, contos, poesias e letras de músicas, ensaios, textos de crítica literária e artigos jornalísticos.
Concebida inicialmente para ser um romance intitulado El cepo e inspirando-se em acontecimentos ocorridos no Uruguai e em vários outros países da América do Sul, entre as décadas de 1960-1980, Pedro e o capitão põe frente a frente dois seres separados por diferenças ideológicas: um militante de esquerda e o integrante de um sistema político repressivo. A peça desenrola-se em quatro atos, durante os quais os protagonistas se enfrentam em circunstancias cada vez mais dramáticas.
Pedro é um preso político de quem é necessário arrancar informações sobre companheiros de militância[3]. O Capitão – na realidade, um coronel do exército, que se esconde no anonimato, quase sempre afável em seus modos e em sua fala – é quem conversa com o prisioneiro depois deste ter passado por interrogatórios em que a violência se exacerba à medida que o militante resiste. Pedro, porém, não se deixa seduzir pelas palavras do opressor e o enfrentamento entre os dois, que vai se tornando mais tenso, leva o Capitão a sucumbir diante da força moral do oprimido.
Apesar de ser o tema central da peça, a tortura, enquanto ato físico, não é encenada, ela se dá nos entreatos, longe dos olhos do público; no entanto, não deixa de lançar sua sombra funesta sobre o diálogo entre os antagonistas. O espaço em que se trava o duelo verbal é limitado e claustrofóbico, pois tudo se passa numa sala de interrogatório despojada, não sendo mostrados nem o local das sevícias, nem os algozes, assim como não surgem em cena, nem são nomeados os demais implicados na prática da tortura: os carcereiros, guardas ou soldados, que empurram Pedro para dentro do escritório do Capitão; os taquígrafos que registram as declarações ou as confissões; os médicos, que atestam até onde a vítima poderá aguentar.
A cela, em que o preso fica trancafiado por três meses, incomunicável, tampouco é exibida[4]. Um aviltante cubículo sobre o qual o autor havia escrito no poema “Alguien” (que integra Letras de emergencia): “alguém limpa a cela / da tortura / lava o sangue / mas não a amargura”.
A ausência cênica de todo o aparato repressor era crucial, não só porque, segundo o próprio escritor, uma abordagem direta da tortura seria muito agressiva para os espectadores teatrais, mas principalmente porque isso lhes possibilitaria manter o distanciamento crítico necessário para julgar o que acontecia no palco. É nos intervalos entre as sessões de suplício que se dão as conversas de Pedro com o Capitão.
Como este declara: “Meu tempo é o intermezzo”, pois seu papel é o de falar com os presos para convencê-los a colaborar, entre um sofrimento e outro. Apesar do cuidado do autor, no entanto, o público não deixa de passar pelo incômodo de presenciar (e participar) da crueldade que um homem exerce sobre outro e de constatar que a tortura pode ser transformada em espetáculo[5]. A resistência de Pedro está em consonância com a resistência do público, obrigado a assistir passivamente a um ato de violência, pois não pode interferir.
A primeira parte da peça, na verdade, é um longo monólogo do Capitão sobre o sistema ao qual serve, que, para subsistir tem de reprimir seus inimigos. Ele não se identifica com o trabalho sujo dos interrogadores maus, embora o justifique, porque, em vez de maltratar, prefere argumentar, como está fazendo com Pedro, louvando-o por silenciar durante a primeira sessão de tortura, mas alertando-o que persistir nisso é masoquismo, pois todos acabam falando, quando os castigos se tornam mais duros[6].
É interessante salientar como o cerne do caráter do militar já havia sido delineado por Benedetti no conto El Gorila delicado, (de novo de Letras de emergencia), no qual, num tom extremamente irônico, narra a história de um grande primata que se considerava delicado por não identificar-se com as “formas de violência selvagem” de seus semelhantes. Por isso, abominava a “imunda tarefa” de caçar e despedaçar Antílopes, à qual se dedicavam os demais gorilas, preferindo que estes lhe preparassem um sorvete de sangue de bâmbi[7].
Voltando ao monólogo do Capitão, este explica ainda a Pedro como seria possível delatar sem despertar as suspeitas dos companheiros. Lembra-lhe também da vida que ele levava, simples, mas cheia de pequenas satisfações – uma esposa bonita e jovem, Aurora; seu filhinho, André; os pais; o emprego no banco, uma casa – até que, uma madrugada, alguém bateu à sua porta e o arrancou dessa normalidade. Ao discurso aparentemente cordial, mas recheado de ameaças pouco ou nada veladas do autodenominado interrogador bom, Pedro – amarrado, encapuzado e imóvel numa cadeira – responde com seu silêncio e com sua negativa gestual (meneia a cabeça) a colaborar. É seu primeiro não.
No segundo ato, o militante continua amarrado, encapuzado, e as marcas da tortura se tornaram mais evidentes. O Capitão está descontente com a situação estagnada (o prisioneiro não abriu o bico), agride-o com seu palavrório e, por fim, arranca-lhe o capuz, sem medo de ser reconhecido, pois tem certeza de que não está fazendo nada pelo qual possa ser culpado no futuro[8]. Ele parece esquecer que gente da sua espécie está antes a serviço do poder do que das leis, fato pelo qual poderá ser julgado e condenado [9].
Apesar da dificuldade para falar (sua boca está inchada), Pedro explica porque antes se recusava a dialogar com o interrogador: o capuz é uma imposição vexatória e há um mínimo de dignidade ao qual não está disposto a renunciar. No poema No me pongas la capucha (sempre em Letras de emergencia), Mario Benedetti já havia abordado os sentimentos de quem passa por essa situação: “Não vai conseguir nada: / não claudico nem me entrego / debaixo do trapo cego / não está cego meu olhar. / […] / Olho para você, embora não dê na mesma / olho sem que lhe cuspa. / Minha memória é uma lupa / que repassa seu sadismo”.
É neste momento que começa a efetuar-se uma mudança na relação entre o opressor e o oprimido, uma vez que Pedro, ao “recuperar” sua voz, passa a expressar sua opinião sobre o militar (alguém que, como os torturadores, pertence à mesma engrenagem do aparelho repressivo), a interrogá-lo sobre sua família, a questioná-lo. Nessa inversão de papéis, será a vítima a arrancar uma confissão do algoz. Abalado, o Capitão responde que a única forma de redimir-se diante da mulher e dos filhos – para que não o vejam como “um sádico inútil”, como dirá mais tarde – é cumprir plenamente a tarefa para a qual foi designado: obter dele informações sobre os demais companheiros, senão a tortura terá sido em vão. Mais uma vez, Pedro se recusa a colaborar, taxativamente: “Não, capitão”. É seu segundo não.
A terceira parte constitui o núcleo da peça, pois é quando a inversão de papéis se consolida, afetando até a forma de tratamento: o Capitão sentirá a necessidade de empregar “o senhor” para dirigir-se ao prisioneiro, enquanto Pedro passará a tratar seu algoz por “você”. Desta vez, o primeiro a aparecer em cena é o militar, sem sua habitual compostura, sem seu ar superior; ao contrário, visivelmente desorientado pelo desenrolar dos fatos. O preso é atirado no chão da sala, encapuzado, com a roupa manchada de sangue. O Capitão, ao colocá-lo na cadeira, ouve uns ruídos e vê seu corpo se sacudir. Quando lhe arranca o capuz, descobre que Pedro, ainda mais judiado, está rindo e este lhe explica que, no meio da sessão de tortura, faltou luz, o que deixou os algozes atarantados.
O prisioneiro parece estar delirando: diz chamar-se Rômulo, vulgo Pedro, ou, declinando nome, sobrenome paterno e sobrenome materno, Pedro Nada Mais. Declara ainda que está morto, motivo pelo qual não podem arrancar-lhe mais nada, o que lhe dá uma sensação de tranquilidade, de serenidade, de grande alegria. Tentando fazê-lo voltar à realidade, o interrogador passa a falar de Aurora, vulgo Beatriz, mas o preso não parece abalar-se, porque os mortos não podem ser chantageados.
Como afirma Mario Benedetti: “Quando Pedro inventa a metáfora de que, na realidade, já está morto, está inventando principalmente uma trincheira, um baluarte atrás do qual resguarda sua lealdade a seus companheiros e à sua causa”. Vale a pena salientar, no entanto, que a capacidade de desligar-se da dor física caracteriza as pessoas que passaram por essa experiência traumática, tendo sobrevivido ou não a ela: “É uma dissociação típica das vítimas de tortura. Sua sobrevivência mental durante o castigo e os intermináveis anos vindouros depende da capacidade de se distanciar [d]o corpo e seu destino. E é nessa distância que hão de residir para sempre”, segundo Ariel Dorfman.
Depois do diálogo inicial entre os protagonistas, cada um se perde atrás das lembranças de sua existência pregressa, como se estivesse num sonho dentro de um sonho, momento que remete, de alguma forma, ao conceito de vida como ilusão, expresso por Pedro Calderón de la Barca em A vida é um sonho (La vida es sueño, 1635) e retomado por Mario Benedetti mediante a metáfora da vida como morte. Dentro do pesadelo do cárcere, que mantém os dois presos, ambos relembram como conheceram suas mulheres, Pedro evoca sua infância e o Capitão percorre com a memória o caminho que o levou até lá.
Revela-se aqui, outro ponto crucial da peça, talvez o mais importante, porque, mais do que no embate entre vítima e algoz, o autor está interessado em realizar uma “indagação dramática na psicologia do torturador”, ou, nas palavras de Pedro: “Quero desentranhar o mistério de como um homem, se não for um louco, se não for um ser bestial, possa se converter num torturador”[10]. É a esse homem que não consegue enxergar-se como um monstro insensível por não sujar diretamente suas mãos com a prática da tortura (embora esteja sempre disposto a aproveitar-se de seus efeitos para arrancar qualquer informação dos presos), que, de novo, Pedro responde, gritando, com sua negativa. É seu terceiro não.
No quarto ato, o prisioneiro está atirado no chão, encapuzado. À desintegração física de Pedro corresponde o progressivo desalinho do Capitão, que surge sem casaco e sem gravata, suado e despenteado. Depois de ter tirado o capuz e limpado o sangue do rosto da vítima, o interrogador amarra-o na cadeira, para que não caia e, mais uma vez, pede-lhe que colabore, que deixe de lado o heroísmo, pois ninguém irá julgá-lo se ceder agora. O preso caçoa da consciência pesada do interlocutor, pois o Coronel, vulgo Capitão, tem um passado mais sujo do que admite, ao que este retruca que, com sua negativa, Pedro é mais cruel do que ele. De fato, como apontado por Benedetti, o militante “usa seu silêncio quase como um escudo e sua negativa quase como uma arma”.
É interessante notar como o autor talvez projete no Capitão uma imagem que, mais do que corresponder ao perfil psicológico dos torturadores, se aproxima de um conceito ideal de humanidade, segundo o qual todos os seres seriam substancialmente bons, optando pelo mal quando instigados pelas circunstâncias ou por escolhas erradas, das quais podem arrepender-se. Isso poderia ser verdade no caso de jovens oficiais do exército brasileiro, empenhados na luta anticomunista (mesma justificativa do Capitão), num mundo dominado pela Guerra Fria, ou de Takashi Nagase, oficial japonês que presidiu os brutais interrogatórios do tenente inglês Eric Lomax, na Tailândia, durante a construção da ferrovia que ligaria Bangcoc à Birmânia (atual Mianmar), no fim da Segunda Guerra Mundial[11].
Quarenta anos depois, Lomax absolveu o arrependido Nagase, que havia se tornado monge budista, tendo se dedicado a denunciar os crimes de guerra de seus compatriotas e a cuidar dos órfãos dos asiáticos que faleceram trabalhando na estrada de ferro.
Quando se está diante de relatos de ex-presos políticos ou de depoimentos de agentes da repressão latino-americanos, no entanto, a visão proposta pelo escritor uruguaio se choca com a realidade dos fatos. Bastaria lembrar o espanto do espanhol José María Galante ao descobrir que, não muito longe de sua casa, morava tranquilamente seu ex-algoz, Antonio González Pacheco, vulgo Billy the kid, o qual, na década de 1970, se notabilizou por troçar de suas vítimas antes de espancá-las, durante a ditadura franquista. Ou os testemunhos de Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona Franco sobre os gritos do ex-deputado Rubens Paiva ao ser interrogado; do jornalista Cid Benjamim, do historiador Daniel Aarão Reis ou do capitão-de mar-e-guerra Eunício Precílio Cavalcante sobre suas próprias experiências como supliciados, dentre muitos outros[12].
Ou ainda a frieza com que Paulo Malhães, coronel reformado do Exército brasileiro, admitiu em 25 de março de 2014, sem sinais de remorso[13], diante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ter matado, torturado, ocultado ou mutilado (para impedir a identificação) cadáveres de presos políticos durante nossa ditadura civil-militar[14], chegando até a afirmar, conforme registra Marcelo Coelho: “A tortura é um meio […]. Se o senhor quiser saber a verdade, tem que me apertar. […] Não conto tudo o que sei a respeito da ditadura. Vocês terão de me torturar para saber. Torturem-me. Mostrem que vocês são no fundo iguais a mim. Só desse modo conseguirei provar que eu estava certo ao fazer o que fiz”[15].
Retomando a trama da peça, Pedro, que já havia começado a flutuar, passa a falar com Aurora[16], lembrando momentos de ternura e pedindo-lhe para explicar a André, aos poucos, para não traumatizá-lo e para que não se sinta abandonado, o porquê das escolhas e da morte do pai, que preferiu não delatar seus companheiros para que o filho não sentisse vergonha dele no futuro[17]. Diz ainda que a vitória da causa continua parecendo-lhe verossímil, mas longínqua, que não terá a sorte de vê-la, como seus familiares.
No discurso do militante ecoa a frase de Che Guevara “Hasta la victoria, siempre”, na qual, conforme explica Gonzalo Aguilar, a ênfase não recaia no substantivo “vitória”, mas no advérbio “sempre”, que projetava para um tempo futuro o êxito da batalha das esquerdas, apesar de derrotas pontuais[18]. Essa ideia é corroborada pelas palavras finais do “Prólogo” da publicação de Pedro y el Capitán, quando Mario Benedetti, sem deixar de admitir a derrota do momento e rechaçando qualquer atitude de “lástima e comiseração”, incita a continuar na luta: “Temos de recuperar a objetividade, como uma das formas para recuperar a verdade, e temos de recuperar a verdade como uma das formas para merecer a vitória”.
Diante do legado heroico de Pedro[19], o Capitão se dá conta de que o seu será infame, se não conseguir arrancar uma única informação do torturado e a implora, não em nome do regime, mas por ele, pelo pouco que sobrou dele, pois ele também está morto, porque caiu numa arapuca, a da engrenagem da qual não pode mais sair. Implora-a de joelhos a Rômulo, a Pedro, mas, outra vez, nada consegue: “Não… capitão.”; “Não… coronel.” – responde-lhe a vítima agonizante, levantando-se num esforço derradeiro. É seu quarto e último não.
Dessa forma, apesar do tema e de seu desfecho, a peça – como pretendia o autor – não é uma obra derrotista, mas pode ser vista como uma exaltação da liberdade de pensamento e de expressão, a qual supera todos os entraves e ameaças de um sistema repressor, questão já colocada por Mario Benedetti em Letras de emergencia, no poema “Oda a la mordaza”, e que reaparece numa deixa de Pedro, no terceiro ato: “sob sua custódia ficam meus lábios apertados / ficam meus incisivos / caninos / e molares / fica minha língua / fica meu discurso / porém, em troca, não fica minha garganta / […] / mordaça bárbara / mordaça ingênua / acha que não vou falar / porém, falo, sim / só pelo fato de ser / e de estar / penso / logo insisto”.
“Os que se calam são os vivos. […] Porém, nós, os mortos, podemos falar. Com um tiquinho de língua, a garganta apertada, quatro dentes, os lábios sangrando, com esse pouco que os senhores nos deixam, nós, os mortos, podemos falar”.
Se, num primeiro momento, por todas as circunstâncias, Pedro podia parecer o vencido, o que foi derrotado pelos acontecimentos históricos, à medida que a peça vai se desenrolando, sua figura se impõe moralmente à do Capitão, fazendo desmoronar a imagem de interrogador bondoso que seu antagonista havia construído para si e levando-o ao desespero. Dessa forma, o escritor busca driblar tanto uma visão estereotipada do torturado e do torturador, quanto o maniqueísmo: o primeiro caso fica bem resolvido do ponto de vista da dramaturgia, enquanto o segundo exige uma reflexão mais aprofundada a partir da indicação de cena que fecha a peça – “As luzes iluminam o rosto de Pedro.
O Capitão, de joelhos, fica na sombra.” –, a qual vem confirmar a aura de heroísmo do militante de esquerda, paulatinamente desenhada no desenrolar-se dos atos, e o tom épico que o autor acabou dando a sua obra, uma vez que, apesar de trabalhá-lo em surdina, este também veio num crescendo, até explodir no fim do quarto ato.
Redigida durante o exílio cubano, Pedro e o Capitão começou a ser concebida em 1974, depois de Letras de emergencia (1973), livro constituído de ensaios, canções, contos, fábulas e poemas, escritos num período de forte censura e repressão política no Uruguai, quando as obras de Benedetti se tornam especificamente políticas. Em 1971, o escritor havia fundado, com outros companheiros, o “Movimento de Independientes ‘26 de marzo’” e, nessa ocasião, começa a entender que não bastava comprometer-se com a causa do povo no nível pessoal, era necessário engajar-se também do ponto de vista artístico, como afirma em seu volume de 1973: “fui percebendo, com uma nitidez cada vez maior, que o instrumento literário podia chegar a ser, no plano político, um eficaz impulsor de ideias”.
Como afirma o próprio Mario Benedetti (ainda na obra supracitada), isso não quer dizer que sua literatura tenha se tornado panfletária: motivada pela conjuntura política, ela passa a ser de emergência, não tanto no sentido de urgência, mas antes para designar uma nova força social que aflora – o povo. Para o autor, a política não é apenas um fenômeno exterior que se manifesta por meio do governo e dos parlamentares, ou nas passeatas e nas barricadas, ou ainda na ação repressiva do sistema; é também algo que, “no bem ou no mal, irrompe na vida privada de cada homem e de cada mulher”[20], assim como a revolução, a qual, quando explode nas ruas e nos muros, não está começando, mas continuando, porque ela se manifesta antes na cabeça e no coração das pessoas.
Nesse sentido, Pedro e o capitão é um bom exemplo da literatura militante de Mario Benedetti e poderia ter perfeitamente integrado o volume de 1973, com o qual tem muitos pontos de contato, como foi exemplificado ao longo deste texto, em especial com “O Gorila cordial”, uma daquelas “Fábulas sin moraleja” engendradas pelo autor, ou seja, uma série de breves narrativas nada edificantes, da qual não podia ser deduzida uma lição, pois a moral das histórias era sobejamente conhecida.
Do mesmo modo que os contos que constituem essa seção de Letras de emergencia, a terceira peça de Mario Benedetti também pode ser considerada uma espécie de fábula – desta vez, con moraleja –, dado que, como Esopo e Jean de la Fontaine, o escritor uruguaio não só envereda por um atalho que lhe permite tornar públicas verdades desagradáveis para os detentores do poder, como busca um distanciamento que leve a refletir sobre os princípios éticos (ou a falta deles) que regem o comportamento dos homens numa determinada sociedade.
Além disso, o título de sua obra ecoa o de outra história infantil, o célebre poema sinfônico Pedro e o lobo (1936), de Serguéi Prokofiev. Como o menino russo da fábula musical, o Pedro benedettiano deixou a segurança de seu lar e partiu para enfrentar o lobo, e se Pedrinho volta para casa triunfante depois de vencer fisicamente o animal, o militante também sai vencedor ao derrotar moralmente a besta-fera da repressão.
Apesar de não conseguir escapar de todo do maniqueísmo que preside a luta entre o bem e o mal, Pedro e o capitão não é uma obra panfletária. Alguns críticos, como Eugenio Di Stefano, no entanto, consideraram que o autor teria sacrificado o projeto político que está no cerne da peça, sem perceberem que foi exatamente pelo fato de Mario Benedetti não tê-la reduzido a um mero ato de acusação circunstanciado que ela alcançou uma ressonância maior.
É um rito de passagem para países em que as feridas das ditaduras ainda não cicatrizaram, porque as torturas têm de ser denunciadas, reconhecidas, punidas para poderem ser exorcizadas e superadas[21]. É um libelo contra as sociedades que continuam violando os direitos humanos[22]. É um hino à liberdade.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista?(Edusp). [https://amzn.to/3BKcGqV]
Versão revista de “O torturador cordial”, publicado em Anais eletrônicos do XXII Encontro Estadual de História da ANPUH-SP, Santos, 2014.
Referências
AGUILAR, Gonzalo. Conferência proferida no âmbito da mostra Silêncios históricos e pessoais, São Paulo, Caixa Cultural, 2 abr. 2014.
BENEDETTI, Mario. Letras de emergencia. Buenos Aires: Editorial Alfa Argentina, 1973.
_________. Pedro y el capitán. Azcapotzalco: Nueva Imagen, 1994.
BIDERMAN, Iara. “Dança refaz formas de dominação do corpo pela tortura”. Folha de S. Paulo, 27 mar. 2014.
CAVALCANTE, Eunício Precílio. Mergulho no inferno: relatório sobre as torturas no Brasil. Rio de Janeiro: APED, 2014.
COELHO, Marcelo. “O outro problema”. Folha de S. Paulo, 2 abr. 2014.
CURY, Maria Zilda Ferreira; PEREIRA, Rogério Silva. “Em câmara lenta, de Renato Tapajós, 40 anos: autocrítica pública e sobrevivência”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 54, maio-ago. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10. 1590/10.1590/2316-40185422
DAMÉ, Luiza. “‘A tortura é como um câncer’, diz Dilma ao empossar membros do comitê de prevenção”, O Globo, Rio de Janeiro, 26 jul. 2014.
“Deputado foi torturado ao som de Apesar de você, diz testemunha”. Folha de S. Paulo, 20 maio 2014.
DORFMAN, Ariel. “Pelos trilhos da dor”. O Estado de S. Paulo, 18 maio 2014.
FERRAZ, Lucas. “Tortura na tela”. Folha de S. Paulo, 27 mar. 2014.
FOSTER, David William. “Una aproximación a la escritura metateatral de Ida y vuelta de Mario Benedetti. Hispanamérica, ano 7, n. 19, abr. 1978, p. 13-25. Disponível em: <www.jstor.org/stable/20541615>.
FRANCO, Bernardo Mello. “Coronel admite ter matado na ditadura”. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2014.
________. “Luta armada foi resistência legítima à ditadura militar”. Folha de S. Paulo, 27 mar. 2014.
________. “A luta armada se esqueceu de fazer consulta ao povo”. Folha de S. Paulo, 29 mar. 2014.
GATES-MADSEN, Nancy J. “Tortured silence and silenced torture in Mario Benedetti’s Pedro y el Capitán, Ariel Dorfman’s La muerte y la doncella and Eduardo Pavlovsky’s Paso de dos”. Latin American Theatre Review, v. 42, n. 1, 2008. Disponível em: <https:// journals.ku.edu/index.php/latr/article/view/3285>.
GONZÁLEZ, Rafael. “El teatro de Mario Benedetti”. In: ALEMANY, Carmen; MATAIX, Remedios; ROVIRA, José Carlos (org.). Mario Benedetti: inventario cómplice. Alicante: Publicaciones de la Universidad de Alicante, 1999. Disponível em: <www.cervantesvirtual.com/obra-visor/mario-benedetti-inventario-complice–0/ htlm>.
KERTÉSZ, Imre. História policial. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
LUCENA, Eleonora de. “Violência sem filtro prende a atenção”. Folha de S. Paulo, 27 mar. 2014.
MILLÁS, Juan José. “Retrato de Uruguay, el país que sorprende al mundo”. El País, Madri, 24 mar. 2014.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL/Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro. “A denúncia” (maio 2014). In: PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2024.
PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2024 [1ª edição: 2015].
“Paulo Malhães”. Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/ paulo-malhaes/>.
RIVERA, Mónica Zúñiga. “El tema del poder en tres obras de teatro latinoamericanas: Todos los gatos son pardos, de Carlos Fuentes, Pedro y el Capitán, de Mario Benedetti, y Palinuro en la escalera, de Fernando del Paso”. Disponível em: <www.repositorio.una. ac.cr/bitstream/handle/11056/2395/recurso_492.pdf?sequence=1>.
SÁNCHEZ, Ernesto Lucero. “Las estrategias de un preso: Pedro y el Capitán, de Mario Benedetti”. Disponível em: <https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero 39/espreso.html>.
SARACK, Caio. “Pedro e o capitão Malhães”. Carta Maior, 2 abr. 2014. Disponível em: <www.cartamaior.com.br>.
STEFANO, Eugenio Di. “From revolution to human rights in Mario Benedetti’s Pedro y el Capitán”. Journal of Latin American Cultural Studies: Travessia, v. 20, n. 2, 2011, p. 121-137. Disponível em: <www.tandfonline.com.>.
SULCAS, Roslyn. “Peça revira mente de um torturador”. Folha de S. Paulo, 17 jun. 2014.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Carambaia, 2022.
TOSTA, Wilson. “‘Também se pratica tortura em democracias’, diz pesquisadora”. Folha de S. Paulo, 6 abr. 2014.
VILLALOBOS, Cristián Brito. “Pedro y el Capitán: cuando la memoria tortura”. Revista Latinoamericana de Ensayo, ano XVII, 2003. Disponível em: <critica.cl/literatura/ Pedro-y-el-capitan-cuando-la-memoria-tortura>.
YARDLEY, Jim. “Torturados buscam justiça na Espanha”. Folha de S. Paulo, 22 abr. 2014.
Notas
[1] Escrita durante o exílio cubano do autor, Pedro e o Capitão foi encenada em 1979, pela companhia uruguaia “El Galpón”, a qual, apesar da indiferença da crítica e do público locais, continuou a representá-la em vários países; no ano seguinte, foi montada em Cuba e, em 1982, foi a vez do “Teatro Independiente del Uruguay” levá-la para diferentes tablados, inclusive na Espanha. Encenada também na Bolívia, no México, na Costa Rica, em Porto Rico, na República Dominicana, no Panamá, no Chile, na Venezuela, na Colômbia e em outras línguas – inglês, francês, alemão, português, sueco, norueguês, italiano, galego e basco –, a peça foi ainda traduzida para o eslovaco e o dinamarquês, segundo Rafael González. Neste século, até onde foi possível apurar, a obra de Benedetti foi levada para os palcos da Colômbia (2009), do Chile (2010, 2014), do Peru (2011), da Espanha (2011, 2012, 2013, 2014), da Venezuela (2012), da Argentina (2013, 2014), do Equador (2014), do Brasil (2013, 2014) e da Itália (2013), quase sempre com seu título original, exceto neste ano, ao ser intitulada De la tortura no se habla mi amor o, Pedro y el Capitán pelo grupo chileno “El cerdito feliz”, ou quando a companhia teatral espanhola “El desván de Talía”, transformou em protagonista a mulher de Pedro, na montagem Aurora y el Capitán, aproximando, de certa forma, a personagem benedettiana da Paulina Escobar de A morte e a donzela (La muerte y la doncella, 1991), do chileno Ariel Dorfman, peça que se impôs à atenção mundial graças à versão cinematográfica de Roman Polanski, Death and the maiden (1994). Pedro e o Capitão também ganhou as telas, filmada pelo grupo “El Galpón”, em 1979, e num curta-metragem realizado na Espanha, entre 2004 e 2006, pelos próprios intérpretes principais, Alfonso Palomares e Luis Rabanaque, sintomaticamente rodado num quartel. Outra obra de Benedetti adaptada para o cinema, depois de ter alcançado fama internacional, foi o romance A trégua (La tregua, 1960): a realização homônima de Sergio Renán foi a primeira produção argentina a concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira.
[2] El reportaje e Ida y vuelta integraram o volume Dos comedias (1968). Raúl H. Castagnino acrescenta ainda as peças Amy, Ustedes, por ejemplo e El apuntador, acerca das quais não há maiores informações. Além de citar o autor anterior, Rafael González (1999), ampliando a relação de Benedetti com os palcos, menciona também a adaptação teatral de alguns contos de Montevideanos (1959), realizada pelo “Teatro del Pueblo” da capital uruguaia, as de A trégua, levadas a cabo por Rubén Deugenio para “El Galpón”, em 1962, e por Rubén Yáñez para o “Teatro Circular de Montevideo”, em 1996, e a do romance, Primavera con una esquina rota (1982), a cargo do grupo chileno ICTUS de Santiago, em 1984.
[3] O tema da delação já havia sido abordado por Benedetti em El reportaje, como lembra González.
[4] Embora a peça não especifique em que lugar acontece a ação, Benedetti inspira-se na repressão que atingiu a esquerda uruguaia. Nas cadeias, os militantes foram submetidos a vexações inenarráveis e contínuas, conforme testemunhado por José Mujica Cordado, ex-presidente do Uruguai, e registrado em documentários como Diga a Mario que não volte (Decile a Mario que no vuelva, 2007), em que Mario Handler entrevistou antigos companheiros que haviam sido detidos, ou em Segredos de luta (Secretos de lucha, 2007), realizado por Maiana Bidegain, filha e sobrinha de ex-presos políticos.
[5] Transformar em espetáculo não significa necessariamente espetacularizar. O cineasta Renato Tapajós, ao lançar Corte seco (2014) – em que mostra abertamente as atrocidades pelas quais passaram guerrilheiros, ele inclusive, na Oban (Operação Bandeirantes) de São Paulo, em 1969 –, critica filmes como O que é isso companheiro? (1997), de Bruno Barreto, e Tropa de elite (2007), de José Padilha, por terem acabado dando razão ao torturador pela espetacularização da tortura, enquanto elogia Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton, que retratou as sevícias sofridas pelos freis dominicanos que apoiaram a ação guerrilheira de Carlos Marighella em São Paulo, dentre os quais Frei Tito (Tito Alencar Lima), que morreu suicida na França, em 1974, por não suportar o peso das sequelas psicológicas dos brutais interrogatórios a que foi submetido. O tema da tortura foi abordado também pela companhia de dança “Carne agonizante” em Colônia penal, em que foi estabelecida uma relação entre a ditadura brasileira e a trama do conto Na colônia penal (In der Strafkolonie, 1919), de Franz Kafka: o “observador de um país ‘evoluído’ é enviado a uma nação ‘bárbara’ para avaliar seus sistemas de tortura. […] Na coreografia, um bailarino tem seu corpo seguidamente subjugado por um personagem engravatado. […] O realismo é construído sem sangue ou gritos. Fica mais real quando é mais dança, nas cenas em que, sem tocar sua vítima, o algoz, como um titereiro, conduz com seus gestos os do torturado, consumando a dominação total de seu corpo”, como observa Iara Biderman.
[6] Por mais que o Capitão tente esquivar-se de suas responsabilidades, isso não é possível pois faz parte de uma engrenagem. Como salienta Marcelo Rubens Paiva: “A tortura é a ferramenta de um poder instável, autoritário, que precisa da violência limítrofe para se firmar, e uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror e seus comandados. Não é ação de um grupo isolado. A tortura é patrocinada pelo Estado. A tortura é um regime, um Estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam. A nação que patrocina. O poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos”.
[7] Vale lembrar que, nos anos das ditaduras latino-americanas, era recorrente a expressão governo gorila para referir-se a países comandados por militares que haviam alcançado o poder por meio de golpes de estado. Como registra Marcelo Rubens Paiva, remetendo-se a seu pai: “Os gorilas, como ele chamava os militares, como muitos os chamavam, tomaram o poder porque não queriam reformas que ajudassem aos pobres, assim nos explicava. Eu adorava a alusão de que aqueles caras que apareciam fardados de óculos escuros na TV e mandavam no Brasil eram gorilas”.
[8] O Capitão pertenceria à categoria dos facilitadores, designação dada pela socióloga norte-americana Martha Huggins aos que não participam diretamente das brutalidades físicas. A seu ver, no entanto, como registra Wilson Tosta, os facilitadores são “mais importantes para a longevidade do sistema de tortura estatal do que o torturador”, por isso é essencial puni-los, a fim de quebrar essa prática infame que não caracteriza apenas regimes autoritários, sendo adotada também por “sistemas formalmente democráticos”.
[9] Cf. História policial (Detektívtörténet, 1977), de Imre Kertész, que narra a história de um agente a serviço da repressão, preso por seus atos, com a queda do regime totalitário para o qual trabalhava. Para fugir da censura stalinista que imperava na Hungria, o escritor ambientou seu romance num país fictício da América do Sul.
[10] Outra peça que se dedicou a desvendar a psicologia de um torturador é A human being died that night (2004), de Nicholas Wright, encenada em Londres e Johannesburgo. Baseada no livro (2003) da psicóloga sul-africana Pumla Godobo-Madikizela, recupera a história de Eugene de Kock, vulgo Prime Evil, ex-policial que chefiou uma unidade de combate ao terrorismo, durante o Apartheid, como informa Roslyn Sulcas.
[11] O episódio foi retratado por David Lean, no filme A ponte do rio Kwai (The bridge on the river Kwai, 1957).
[12] A cinematografia latino-americana também registrou muitos depoimentos, como os recolhidos nas já citadas realizações uruguaias Diga a Mario que não volte e Segredos de luta, ou em Que bom te ver viva (1989), dolorosa narração coral de mulheres que sobreviveram ao suplício nos porões da ditadura, dentre as quais a própria diretora Lúcia Murat, além do prestado por Telma Lucena sobre sua mãe em 15 filhos (1996), de Maria Oliveira e Marta Nehring, Este documentário, aliás, tem como epígrafe um diálogo – curto, mas bem significativo – entre um preso e um agente da repressão: “Oficial do Exército: – Qual é a sua profissão? / Advogado: – Advogado. / Oficial do Exército: – Conhece a Declaração Universal dos Direitos do Homem? / Advogado: – Conheço, capitão. / Oficial do Exército: – Então, esqueça-a, enquanto estiver aqui”.
[13] Nos acima nomeados Diga a Mario que não volte e Segredos de luta, assim como em outras produções latino-americanas sobre o período realizadas por filhos de desaparecidos políticos, ficam evidentes a falta de arrependimento e a noção de dever cumprido por parte dos torturadores.
[14] Dentre esses cadáveres, o do ex-parlamentar. O verbete “Paulo Malhães” do site “Memórias da ditadura” traz a seguinte informação: “Uma semana antes de depor, Malhães havia dito ao jornal O Dia que participou da ocultação de cadáver do deputado federal Rubens Paiva, mas desmentiu no testemunho à CNV”. Na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal-Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, no entanto, está registrado que “poucas semanas antes do óbito, Paulo Malhães confessou ter recebido ordens do CIE [Centro de Informações do Exército] para retirar os restos mortais de Rubens Paiva da praia do Recreio dos Bandeirantes e ocultá-los em lugar ainda ignorado”.
[15] Pensada em outros termos, é essa a armadilha da qual Pedro escapa quando se recusa a entregar seus companheiros: a de igualar-se moralmente a seus algozes. Como declara Daniel Aarão Reis a Bernardo Mello Franco em artigo de 27 de março de 2014: “A tortura é um inferno. É feita para destruir você, e não só fisicamente. O objetivo é destruir a alma do prisioneiro”.
[16] A esposa de Pedro é designada por um nome (Aurora) que simboliza o princípio, a luz que dissipa as trevas, e por um codinome (Beatriz) que alude à salvação.
[17] No curta-metragem espanhol citado na nota [1], a evocação final da esposa é filmada fora do espaço carcerário, em preto-e-branco. Aurora está empurrando o balanço da filha (e não filho, como na peça), num jardim público, e sobre essas imagens se propaga a voz-off de Pedro. Aos poucos, ela vai mudando de expressão, de serena para preocupada e de angustiada para abalada, enquanto passa a empurrar o balanço cada vez mais devagar e de forma automática, até não empurrá-lo mais, como se estivesse presenciando o que está acontecendo ao marido. Esse expediente dramático permite corroborar a ideia do delírio ao qual Pedro se entrega a partir do terceiro ato, e recuperar, em imagens, os momentos em que ele rememora sua vida anterior.
[18] “As experiências vitoriosas em Cuba (1959) e na Argélia (1962) enchiam de ânimo aquela geração”, recorda Daniel Aarão Reis no mesmo artigo citado na nota [15], acrescentando que a derrota da luta armada foi determinada pela falta de apoio do povo, que os guerrilheiros se esqueceram de consultar. Ao que tudo indica, a primeira autocrítica, em âmbito pessoal e na esfera pública, à ação de guerrilheiros foi a de Renato Tapajós no livro Em câmara lenta (1977), em que se reconhece o isolamento dos grupos clandestinos em relação à sociedade: “O que sentia era como se a organização fosse um outro planeta, sem nenhum ponto de contato com aquilo ali. Alguém estava fora da realidade, alguém estava num outro mundo”. Para uma análise aprofundada dessa obra, ver o artigo de Maria Zilda Ferreira Cury e Rogério Silva Pereira.
[19] Vale salientar que o militante é designado por um nome (Pedro) e um codinome (Rômulo) que remetem a mitos de fundação.
[20] No “Prólogo” da peça de 1979, Benedetti retoma essa ideia, ao explicar que não pensava em focalizar os dois protagonistas apenas no local dos interrogatórios, mas misturar a essa situação a vida privada de cada um deles. Na já citada produção espanhola, os realizadores transformam em dois filmes familiares em preto-e-branco (que correm paralelos no início do curta-metragem), as deixas em que Pedro e o Capitão se referem à vida que levavam fora daquelas quatro paredes. Nessa recuperação de um tempo anterior, no qual, em cada lar, se vivia uma existência comum, ela dialoga com documentários latino-americanos sobre os anos de chumbo, de autoria de parentes de desaparecidos políticos, nos quais filmes e fotografias ajudam a restaurar a memória familiar.
[21] Conforme reporta Mello Franco em artigo de 27 de março de 2014, Cid Benjamin, integrante do MR-8, preso no DOI-Codi do Rio de Janeiro e seviciado, pondera: “Os torturadores devem ser julgados e, se culpados, condenados. Não digo isso porque tenha ódio deles, mas porque acredito que o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Se eles forem condenados, as pessoas vão pensar duas vezes antes de torturar”.
[22] No dia 25 de julho de 2014, ao dar posse aos membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, encarregado de atuar em qualquer instituição de privação de liberdade, a presidente Dilma Rousseff, presa e supliciada durante o regime militar, declarou: “A experiência demonstra que a tortura é como um câncer: começa numa cela, mas compromete toda a sociedade, compromete quem comete, o sistema de tortura, compromete o torturado, porque afeta a condição mais humana de todos nós que é sentir dor, e destrói os laços civilizatórios da sociedade”.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA