Pepe Mujica (1935-2025)

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Por BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*

Pepe Mujica: O semeador de utopias que transformou dor em esperança e nos provou que ‘outros mundos são possíveis’

1.

Perdemos “Pepe” Mujica. Mas perder, aqui, não significa ausência – porque homens como ele se tornam sementes. Sua partida é a lembrança viva de que otros mundos son posibles,[i] mesmo quando o presente insiste em nos dizer o contrário.

José Alberto Mujica Cordano, o “Pepe”, nascido em Montevidéu em 1935, filho de uma família modesta com raízes rurais e imigrantes, Mujica cresceu entre o campo e a cidade, entre a humildade e o desejo de justiça. Seu mergulho na política não veio do cálculo, mas da indignação. Inspirado pelas ideias do socialismo latino-americano (principalmente pela Revolução Cubana de 1959) e pelas injustiças que testemunhava, tornou-se militante do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, nos anos 1960.

Ao contrário das caricaturas simplistas, os tupamaros não eram apenas guerrilheiros: eram, sobretudo, jovens intelectuais e trabalhadores que buscavam uma via revolucionária para combater a concentração de terra, riqueza e poder no Uruguai.  Sua biografia é, como ele mesmo dizia, a prova de que triunfar na vida não é ganhar. Triunfar na vida é levantar e recomeçar cada vez que se cai”.

Foi baleado seis vezes, preso quatro vezes, e passou quase 14 anos atrás das grades, grande parte deles em condições sub-humanas. Foi mantido em solitárias, em calabouços, sob tortura psicológica. Em vez de sair dali com ódio, saiu com uma filosofia. E é isso que distingue Pepe Mujica: ele não retornou à política como vingança, mas como reinvenção. “Aqueles anos de solidão foram provavelmente os que mais me ensinaram […]. Tive que repensar tudo e aprender a me aprofundar em mim mesmo, às vezes, para não enlouquecer”, afirmou certa vez. Sua libertação, após o fim da ditadura militar uruguaia, foi também o começo de uma nova etapa em sua vida – não mais como combatente armado, mas como semeador de um projeto ético e coletivo de sociedade.

Como um dos fundadores do Movimento de Participação Popular (MPP), Pepe Mujica ajudou a construir a Frente Ampla como força política plural, democrática e profundamente enraizada nos movimentos sociais. E foi por meio dessa frente que chegou à Câmara e ao Senado, depois ao Ministério da Agricultura, e, finalmente, à Presidência da República em 2010. Seu governo (2010–2015) não foi perfeito, mas foi profundamente transformador.

Sob sua liderança, o Uruguai se tornou referência mundial em políticas progressistas: legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, de maneira inédita, regulamentou o mercado da maconha, enfrentando abertamente os interesses conservadores e o tráfico de drogas. E não o fez em nome de modismos, mas de princípios: “Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico, dizia.

2.

Internacionalmente, Pepe Mujica não buscou protagonismo. Mas protagonizou, mesmo assim, os gestos mais simbólicos da ética política do século XXI. Em seu discurso na Rio+20, em 2012, diante de chefes de Estado de todo o mundo, proferiu uma das mais radicais críticas ao modelo de civilização baseado no consumo: “o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Tem que ser a favor da felicidade humana: do amor pela vida, das relações humanas, do cuidado com os filhos, de ter amigos, de ter o essencial. Justamente porque esse é o maior tesouro que temos: a felicidade”.

Sua filosofia é uma síntese de existencialismo simples e radicalismo ético. Pepe Mujica nos desafiava a abandonar a idolatria do mercado, da acumulação, da competição selvagem, e nos convocava a pensar a política como serviço, como cuidado, como solidariedade. Acreditava, como poucos, que as instituições não bastam se não forem habitadas por valores. Por isso, sempre recusou os luxos do cargo: abriu mão de 90% de seu salário presidencial, continuou morando em sua chácara em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, dirigindo seu Fusca azul, recebendo companheiros de luta e adotando cães abandonados.

Num tempo em que a política virou espetáculo e os políticos viraram marcas, Pepe Mujica permaneceu homem. Humano, falível, mas profundamente coerente. Suas falas desconcertavam os tecnocratas porque traziam à tona aquilo que a lógica capitalista prefere esconder: o essencial. E sua vida, marcada por tantos sofrimentos, se converteu em símbolo da esperança persistente de um continente acostumado a resistir.

Ele acreditava em um socialismo ético, enraizado no humanismo latino-americano, e defendia que o grande dilema de nosso tempo não era apenas a pobreza material, mas a colonização dos desejos. Pobre não é quem tem pouco, mas verdadeiramente pobre é aquele que necessita infinitamente de muito e deseja cada vez mais, dizia, virando do avesso o dogma consumista que sustenta o capitalismo global. Sua filosofia política era, ao mesmo tempo, simplicidade camponesa e sofisticação moral. Um grito contra o desperdício, a desigualdade, o egoísmo neoliberal.

Ao lado de figuras como Salvador Allende, Paulo Freire e Ernesto Che Guevara, Pepe Mujica integra a constelação dos latino-americanos que não se deixaram corromper nem pela dor, nem pelo poder. Sua utopia não era uma abstração romântica – era uma prática cotidiana, uma postura diante da vida. Ele provava, com seu exemplo, que é possível fazer política sem mentir, sem enriquecer, sem se afastar do povo. Isso, por si só, já é revolucionário.

Sua fala na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2013, permanece como um dos manifestos mais impactantes da história contemporânea. “Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão”, declarou, levando chefes de Estado a refletirem diante da simplicidade de um camponês que enunciava verdades milenares. “Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado” (ONU, 2013).

3.

Anos depois, refletindo sobre sua trajetória pessoal, Pepe Mujica resumiria esse pensamento com a lucidez de quem conheceu a escassez e recusou os excessos: “Aprendi que, se você não pode ser feliz com poucas coisas, não vai ser feliz com muitas coisas” – um ensinamento que se tornou sua marca e sua crítica mais contundente à lógica do consumismo moderno.

Ao nos despedirmos de Pepe Mujica, não enterramos um político – celebramos um símbolo. Um raro exemplo de coerência entre vida e palavra. De humildade como forma de poder. De radicalidade como expressão do amor ao povo. Pepe Mujica foi, como diria Eduardo Galeano – seu compatriota de sonhos e lutas –, um daqueles seres que ardem a vida com tanta paixão que transformam tudo ao redor.

Como escreveu Eduardo Galeano em El libro de los abrazos (1998, p. 5): “Não há dois fogos iguais. Há fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Há gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco que enche o ar de faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem aquecem. Mas outros ardem a vida com tanta paixão que não se pode olhá-los sem piscar, e quem se aproxima se incendeia”.

O escritor uruguaio dizia que a utopia serve para que a gente continue caminhando. Pepe Mujica foi esse andarilho da utopia, semeando caminhos por onde passava. Sua morte, quando nos alcança, não deve ser lida como fim, mas como testemunho: de que a vida pode ser digna, e de que o mundo, mesmo este mundo esmagado pelo cinismo e pelas mercadorias, ainda pode ser outro.

Hoje, perdemos Pepe Mujica. E ao mesmo tempo, ganhamos a obrigação de manter sua chama acesa — nos movimentos populares, nas universidades, nas assembleias, nas ocupações, nas palavras que ainda ousam sonhar.
Porque sim, Pepe, otros mundos son posibles.

E a tua vida foi a maior prova disso. Hasta siempre!

*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

Referências


CAETANO, Gerardo (org.). José Mujica: otros mundos posibles. Montevidéu: Editorial Planeta, 2024.

GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Siglo XXI Editores, 1998.

MUJICA, José. Una oveja negra al poder: confesiones del presidente más querido y más odiado. Entrevistas de Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz. Barcelona: Debate, 2016.
MUJICA, José. Discurso na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), Rio de Janeiro, 2012.

ONU. Discurso de José Mujica na 68ª Assembleia Geral da ONU. Nova York, 2013.

Nota


[i] Em referência ao livro que analisa a trajetória política e filosófica de Mujica sob múltiplas perspectivas, especialmente seu pensamento internacionalista. Cf. CAETANO, Gerardo (org.). José Mujica: otros mundos posibles. Montevidéu: Editorial Planeta, 2024.


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