Por ARACY P. S. BALBANI*
Amargamos no nosso país o resultado da prática eficiente e perversa de desmonte tanto da educação quanto da instrução pública
Uma das maiores dores de cabeça dos empregadores domésticos e das grandes empresas transnacionais é lidar com recursos humanos. Muita gente reclama que não consegue preencher vagas de trabalho por falta de qualificação dos candidatos, porque estes não se interessam por tarefas que não sejam executadas em frente a uma tela de computador, ou que os recém-contratados desistem logo no primeiro dia no emprego.
Proprietários de áreas verdes sabem que é cada vez mais raro encontrar jardineiros que conheçam e cuidem das plantas. O mercado é dominado por empresas de paisagismo e jardinagem. As equipes nem sempre recebem treinamento técnico e de segurança do trabalho, usam equipamentos de proteção individual (EPIs) ou têm os demais direitos trabalhistas respeitados.
Cada prestação de serviço é feita por uma equipe diferente, cujos membros até arrancam ervas aromáticas sem dó, por não saberem diferenciá-las de espécies daninhas, ou decepam mudas de árvores acidentalmente sem nem pedirem desculpas ao contratante, em meio à pressa de concluírem a missão dada pelos patrões. O que importa não são a vida das plantas, a excelência do trabalho ou a satisfação do cliente, mas a planilha de produtividade da terceirizada.
Quem precisa contratar serviços de construção civil, tecnologia da informação, higiene e limpeza de ambientes ou mecânica de automóveis também coleciona histórias tragicômicas. Há diagnósticos esdrúxulos – da velha ficção da rebimboca da parafuseta à “instabilidade do sistema” contemporânea – orçamentos com preços exorbitantes, desperdício de materiais, danos ao patrimônio, casos de consumo de entorpecentes pelos prestadores de serviços até no próprio local de trabalho, e atrasos injustificados na execução das tarefas.
Esses problemas não se restringem a ocupações que requerem escolaridade de nível fundamental ou médio. Valem também para as de nível superior. Com a terceirização de serviços públicos de saúde e a proliferação das clínicas populares, por exemplo, quem precisa de médicos ou cirurgiões dentistas comumente reclama da alta rotatividade dos profissionais e da má qualidade do atendimento nesses locais. É a saúde humana reduzida a mercadoria no atacado.
Nos idos de 1790, Jean-Antoine-Nicolas Caritat, o Marquês de Condorcet, que foi filósofo, matemático e membro da Academia Real de Ciências da França, já defendia o acesso universal e gratuito à instrução pública, algo diferente da educação baseada em convicções morais, religiosas e políticas da família da criança. Ele propunha que o Estado atuasse para o aluno receber ensinamentos e desenvolver o pensamento crítico, sem impor crenças.[1]
Poderíamos arriscar que Condorcet foi o pioneiro da legítima escola sem partido, aquela que liberta o ser humano pelo uso da própria massa cinzenta. Porém, não garantimos que ele não fosse cancelado no sentido figurado, ou mesmo tivesse o CPF cancelado à bala se repetisse essas ideias no Brasil atual.
Amargamos no nosso país o resultado da prática eficiente e perversa de desmonte tanto da educação quanto da instrução pública. A maioria dos jovens e adultos vítima da miséria de suas famílias, da violência, do encarceramento de seus pais, da dependência química ou do álcool, não conseguiu ter o direito à educação, sobretudo a emocional. Logo, dificilmente alcançou o término de uma instrução pública satisfatória. Os destinos finais mais prováveis dessas pessoas são o trabalho informal ou o crime.
Por outro lado, quem teve a felicidade de receber educação e ensino público com bom conteúdo de informação e valores éticos elevados não tem encontrado reconhecimento da sociedade. Bons profissionais de diversas áreas têm sido cada vez menos respeitados e mais mal remunerados. Qualquer coach ou influenciador picaretas são mais “viralizados” e “monetizados” que professores, advogados, torneiros mecânicos, marceneiros ou médicos competentes e íntegros.
Talvez isso explique por que tantos adolescentes preferem se dedicar às apostas on line e à produção de vídeos para as redes digitais como meios de ganhar destaque e dinheiro em vez de frequentarem cursos técnicos, por que tantos profissionais com diploma de universidades públicas abandonam a carreira para virarem suco ou qualquer outra coisa menos humilhante e, também, por que os brasileiros são os que mais consomem informações das mídias digitais e confiam nelas.
Segundo pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) feita em 21 países, divulgada pelo Jornal da USP, a média de confiança nessas mídias é 9%, enquanto no Brasil é 20%. Brasileiros são alguns dos que têm mais dificuldade para identificar notícias falsas.[2]
Parece que a ignorância compensa. Principalmente para quem obtém lucro político ou financeiro explorando os ignorantes crédulos.
*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista no interior paulista.
Notas
[1] Reis, Patrícia Carvalho. A instrução pública na filosofia de Condorcet. Sofia, Vitória (ES), 2017, 6: 136-151. Disponível em https://periodicos.ufes.br/sofia/article/view/17251/13046
[2] Jornal da USP. Relatório da OCDE mostra que brasileiros são os piores em identificar notícias falsas. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/relatorio-da-ocde-mostra-que-brasileiros-sao-os-piores-em-identificar-noticias-falsas/
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