Políticas de memória

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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

O debate em torno das políticas de memória na UFSC passa tanto por tomar uma posição política diante de um passado traumático como por denunciar os crimes cometidos por civis e militares que apoiaram a ditadura

1.

No dia 17 de junho, o Conselho Universitário (CUn) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) decidiu pela mudança do nome do seu campus central, localizado na cidade de Florianópolis. O campus levava o nome do primeiro reitor da universidade, João Davi Ferreira Lima, que ocupou o cargo entre 1961 e 1972. Essa homenagem veio em setembro de 2003, na gestão do então reitor Rodolfo Pinto da Luz, o qual, ainda como estudante, teve papel central na colaboração com a ditadura e na intervenção ocorrida no DCE, por força do AI-5, em 1969.[i]

Ferreira Lima teve um histórico de colaboração como a ditadura, sendo descrito, em documento dos órgãos de repressão de maio de 1966, como “homem de ilibada conduta cívico-democrática”.[ii] Em abril de 1969, outro documento, assinado pelo General Álvaro Veiga Lima, se referia ao reitor como “homem de bem”.[iii] Essa era a opinião sobre Ferreira Lima vinda do regime ditatorial, o mesmo que perseguiu, torturou e assassinou milhares de pessoas.

O recente debate em torno da mudança do nome, que se arrastou por meses, foi suscitado por uma das recomendações, feita ainda em 2018, pelo relatório final da Comissão da Verdade, que indicou “a reavaliação pelo Conselho Universitário das homenagens dadas anteriormente, aqueles que praticaram comprovadamente denunciações e perseguições durante a ditadura civil-militar”.[iv]

O debate acabou por envolver segmentos da sociedade externos à universidade, demonstrando a estrita relação dos empresários da cidade com os setores afinados ao regime ditatorial. Um documento publicado pelo movimento Floripa Sustentável, composto por entidades patronais e empresas, afirmou que a mudança do nome seria “equivocada e oportunista”.[v]

Segundo esse grupo empresarial, a motivação “para a proposta se baseia em interpretações frágeis e desconexas dos fatos históricos”, afirmando que, “conforme reconhecem especialistas, não há evidências concretas de que o Professor João David Ferreira Lima tenha participado de ações persecutórias no período da ditadura ou tenha se beneficiado pessoalmente das estruturas autoritárias vigentes então”.[vi]

Um segundo documento desse movimento patronal se referiu ao processo de discussão como “tentativa de apagamento simbólico da memória do professor João David Ferreira Lima”, sendo a proposta “sustentada por interpretações parciais e frágeis de fatos históricos”, que “não encontra respaldo nem na comunidade acadêmica nem na sociedade catarinense, que reconhece o papel estruturante de Ferreira Lima na construção da universidade pública em Santa Catarina”.[vii] Esses argumentos, contudo, mostram ou a má-fé de seus signatários em relação à questão ou uma total ignorância em relação ao período a que estão se referindo.

2.

Embora tenha iniciado seu mandato como reitor antes de golpe de 1964, Ferreira Lima adotou uma postura alinhada aos interesses do novo governo, ideologicamente respaldando a perseguição e a denúncia de servidores e estudantes da universidade. O SNI, em fevereiro de 1969, elogiou a postura de Ferreira Lima, afirmando que o reitor “tem tido pessoalmente uma conduta bastante razoável na Direção da referida Universidade nos últimos tempos”.[viii] Em sua gestão, Ferreira Lima colaborou com os órgãos de repressão e de vigilância contra pessoas consideradas perigosas pelo regime ditatorial.

Em seu mandato, teve atritos principalmente com docentes e estudantes da Faculdade de Direito. Sobre um dos seus principais desafetos, o professor Henrique Stodieck, Ferreira Lima escreveu em ofício ao SNI, de outubro 1969, que seria forçado a “tomar providências drásticas”, diante da “atuação destrutiva que vem, permanentemente, desenvolvendo, há vários anos, contra o desenvolvimento desta Universidade e, no momento, já inicia campanha tendenciosa contra a implantação da Reforma Universitária, que tanto interessa a todos nós e ao Governo da República”.[ix] Para os ditadores e seus apoiadores, como Ferreira Lima, “[…] as universidades haviam se tornado ninhos de proselitismo das propostas revolucionárias e de recrutamento de quadros para as esquerdas. Ali se encontraria um dos focos principais da ameaça comunista, o perigo iminente de que o Brasil deveria ser salvo, e que mobilizou muitos, sobretudo nas corporações, a se levantar em armas contra o governo Goulart, acusado de tolerar ou, pior ainda, de se associar aos projetos revolucionários”.[x]

Outro argumento que perpasse a manifestação dos empresários da capital catarinense em defesa da manutenção do nome de Ferreira Lima no campus da UFSC se referia ao fato de o reitor não ter buscado benefícios pessoais no cargo. Contudo, os próprios documentos da repressão apontam irregularidades em sua gestão. Em ofício do SNI de setembro de 1965, a ditadura parecia preocupada com “facilidade com que a UFSC faz despesas imensas”.[xi]

Embora houvesse indícios de irregularidade em sua gestão, como no contrato do alojamento denunciado pelos estudantes em 1968, a ditadura nada fez contra o reitor. Pelo contrário, em documento no qual relata a mobilização estudantil e inclusive quais eram as irregularidades denunciadas, a ditadura procura desviar o assunto, concluindo: “[…] tem-se observado que a corrupção ou o seu simples indício, na área do magistério, serve de pretexto às reivindicações tendenciosas de elementos esquerdistas que propositadamente às misturam com reclamações que frequentemente se afiguram legítimas, face às evidências de fatos realmente constados”.[xii]

Esses são apenas alguns exemplos que podem ser analisados de uma farta documentação pública, disponível inclusive digitalizada no Arquivo Nacional, sobre a atuação, durante a ditadura, da reitoria da UFSC. Esse conjunto de documentos é o que subsidiou o trabalho da Comissão da Verdade e a elaboração de um denso relatório que mostrou as atrocidades ocorridas durante a ditadura dentro da UFSC.

Esse relatório, feito com zelo e seriedade por profissionais qualificados para a tarefa, foi questionado por setores reacionários, externos à UFSC, que defendiam a manutenção da homenagem a Ferreira Lima. Esses setores, como os ditadores de ontem, afirmam que a pesquisa histórica, sempre séria e com base em fontes, teria a influência de “recortes ideológicos”, como sugeriu manifesto da FIESC.[xiii] Essas posturas não mostram outra coisa que não a completa ausência de seriedade científica ou mesmo racional desses segmentos da sociedade que nos últimos anos apoiaram o bolsonarismo e as atrocidades de seu governo durante a pandemia.

3.

O debate sobre a mudança do nome do campus da UFSC é apenas um parágrafo dentro de um processo mais amplo que a sociedade precisa enfrentar no sentido de elaborar seu passado sobre as ações do Estado. O tema tem relação tanto com questões de importância política, como a condenação e prisão dos criminosos que agiram na repressão e tortura durante a ditadura, como com questões simbólicas, entre as quais a revogação de homenagem a ditadores e apoiadores do regime de ruas, escolas e outros espaços públicos.

Outro aspecto passa pelo fato de que o nome de Ferreira Lima nesse debate é muito mais uma questão simbólica. Durante a ditadura houve uma ampla participação de intelectuais no sentido da defesa do regime. Essa intelectualidade aderiu às ideias de modernização conservadora levadas a cabo pela ditadura, em que o desenvolvimento econômico – e de pesquisas e inovação – foi impulsionado por meio da ampliação da exploração da força de trabalho, pelo arrocho salarial e pela marginalização da classe trabalhadora das cidades grandes e médias.

Nas universidades, “[…] o regime político construído a partir de 1964 teve dupla dimensão: ele foi ao mesmo tempo destrutivo e construtivo, embora seu impulso modernizador tenha se viabilizado de maneira repressiva. Em sua faceta destrutiva, o Estado autoritário prendeu, [] demitiu ou aposentou professores considerados ideologicamente suspeitos, assim como afastou líderes docentes acusados de cumplicidade com a ‘subversão estudantil’. Além disso, torturou e matou alguns membros da comunidade acadêmica que considerava mais ‘perigosos’. O anseio por uma ‘limpeza’ ideológica levou ao bloqueio da livre circulação de ideias e de textos, e à instalação de mecanismos para vigiar a comunidade universitária”.[xiv]

Muitos membros da comunidade universitária da UFSC foram defensores dessas ideias e colaboraram na sua elaboração e difusão. Em 1978, denunciando o que chamou de “universidade do silêncio”, Florestan Fernandes dizia que “a universidade foi esterilizada politicamente e, diga-se de passagem, com a franca e aberta colaboração de professores e estudantes adeptos da contrarrevolução e do regime ditatorial”.[xv]

Uma parcela dos intelectuais, muitos dos quais atuavam como técnicos subordinados à política do regime ditatorial, passaram pelos ciclos de estudos da Associação da Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), reuniam os “integrantes da elite administrativa e cultural”.[xvi]

Esses ciclos, que tiveram inclusive apoio institucional da UFSC, quando realizados em Santa Catarina, eram espaços privilegiados para que o governo ditatorial, por meio de seu braço ideológico, a ESG, pudesse difundir suas ideias de segurança e desenvolvimento e preparar os quadros que atuavam tanto na garantia da gerência do Estado como na construção de justificativas para a repressão contra a oposição.

Participaram dos primeiros ciclos da ADESG realizados intelectuais vinculados à UFSC, como os historiadores Oswaldo Rodrigues Cabral e Walter Fernando Piazza, os cientistas sociais Nereu do Valle Pereira e Sílvio Coelho dos Santos e o geógrafo Paulo Fernando Lago.

Portanto, ao debater a mudança do nome do campus da UFSC, não se está questionado se Ferreira Lima era ou não um “homem de bem” ou sua carreira acadêmica. O antigo reitor é apenas um personagem dentro de uma tragédia muito maior do que as ações de perseguição vindas de seu gabinete. Por outro lado, não é possível relativizar fatos, sugerindo que se trata de diferentes interpretações.

O debate em torno das políticas de memória passa tanto por tomar uma posição política diante de um passado traumático como por denunciar os crimes cometidos por civis e militares que apoiaram a ditadura, permitindo à sociedade conhecer sua própria história e, encarando os fatos, elaborar seu passado.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Comissão Memória e Verdade. Relatório final. Florianópolis: UFSC, 2018, vol. 1, p. 95.

[ii] SNI. Prontuário nº 985, fl. 3.

[iii] SNI. Ofício nº 262/1969, 11 abr. 1969.

[iv] Comissão Memória e Verdade. Relatório final. Florianópolis: UFSC, 2018, vol. 1, p. 421.

[v] Floripa Sustentável, “Manifesto contra a manobra para mudar o nome do campus da UFSC”, https://floripasustentavel.com.br/manifesto-contra-a-manobra-para-mudar-o-nome-do-campus-da-ufsc/

[vi] Floripa Sustentável, “Manifesto contra a manobra para mudar o nome do campus da UFSC”, https://floripasustentavel.com.br/manifesto-contra-a-manobra-para-mudar-o-nome-do-campus-da-ufsc/

[vii] Floripa Sustentável, “Manifestação pública do movimento Floripa Sustentável em apoio a preservação do nome do professor Joao David Ferreira Lima no campus universitário da UFSC”, https://floripasustentavel.com.br/manifestacao-publica-do-movimento-floripa-sustentavel-em-apoio-a-preservacao-do-nome-do-professor-joao-david-ferreira-lima-no-campus-universitario-da-ufsc/

[viii] SNI. Prontuário nº 985, fl. 5.

[ix] Gabinete do Reitor. Ofício 37/1969, 27 out. 1969.

[x] MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 23.

[xi] SNI. Prontuário nº 985, fl. 1.

[xii] SNI. Informação nº 18/1968, 1 jul. 1968, fl. 3.

[xiii] FIESC, “Debate sobre nome do campus da UFSC é inoportuno e parcial”, https://fiesc.com.br/pt-br/imprensa/debate-sobre-nome-do-campus-da-ufsc-e-inoportuno-e-parcial-avalia-fiesc

[xiv] MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 7-8.

[xv] FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2020, p. 35.

[xvi] O Estado, Florianópolis, 28 de agosto de 1970, n. 16463, ano 56, p. 12.


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