Por JOÃO FERES JÚNIOR*
O bolsonarismo é um sistema sustentado por estratégias de comunicação. É neste campo que devemos concentrar esforços para debelar as duas catástrofes.
Qualquer pessoa com alguns neurônios já percebeu que o Brasil foi brindado por uma confluência terrível de duas catástrofes: a pandemia do Covid-9 e a presidência de Jair Bolsonaro. Nós cientistas políticos frequentemente nos jactamos a falar das “instituições democráticas”, mas o que está em risco hoje no Brasil é mais do que o funcionamento dessas instituições propriamente, é a democracia como valor cultural, os mecanismos de agregação social, do Estado e da sociedade civil, e mesmo a vida das pessoas.
A pandemia está sendo ruim em todos os lugares, mas a falta completa de responsabilidade do Governo Federal e de seu mandatário está rapidamente alçando o Brasil ao posto de campeão mundial das mortes causadas pelo vírus.
O governo Bolsonaro começou ruim e foi piorando ao longo de 2019. Com a pandemia sua velocidade de deterioração aumentou ao ponto de hoje termos um conflito aberto entre os poderes, com ameaças de intervenção militar por parte do executivo e de seus comparsas.
O vírus foi um problema que não criamos, mas Bolsonaro é problema de nossa responsabilidade e, mesmo aqueles que nele não votaram, como eu, por exemplo, devem enfrentar a árdua tarefa de achar uma solução para ele. Não quero entrar nos meandros da discussão se essa solução seria impeachment, abdicação ou mesmo cancelamento da chapa via TSE por crime eleitoral, se o impeachment seria por acusação de crime comum via STF ou de crime de responsabilidade, diretamente acolhida pela Câmara dos Deputados. Essa questão já foi tratada de modo excelente por dois amigos e colegas de profissão, Marjorie Marona e Fabio Kerche, no artigo Brasil na encruzilhada, publicado recentemente no site A Terra é Redonda.
Quero examinar o buraco mais embaixo, que é o da criação das condições políticas para superarmos esta etapa tenebrosa de nossa história republicana.
Comecemos por responder à pergunta: quem sustenta politicamente Bolsonaro? Ainda que seu governo experimente declínio de aprovação popular, o presidente ainda conta com a simpatia de algo entre 20-30% da população brasileira. Chamemos esse apoio e a ideologia que o sustenta de bolsonarismo. Bolsonaro ainda conta com o suporte de três grupos sociais importantes: evangélicos, militares e empresários.
Primeiro vou tratar da tática mais adequada para desmontar essa aliança de sustentação e em seguida tentar identificar quem pode ser o agente do desmonte.
Para além das questões estéticas e morais, os grupos de evangélicos, militares e empresários que ainda estão com Bolsonaro derivam dessa aliança vantagens, reais ou imaginárias. A aliança com projeto tão conflituoso e controverso, por outro lado, também traz custos para os grupos. A tática a ser adotada pelo agente do desmonte deve ser certamente aumentar os custos do apoio a fim de enfraquecê-lo e diminuir a possibilidade de ganhos desses grupos.
Defendo aqui a ideia de que a perda de apoio popular redundaria em enfraquecimento do apoio político que os grupos prestam ao atual presidente. Novamente, insisto na tese de que a questão comunicacional é fundamental. Como mostram várias análises feitas pelo Manchetômetro, a maioria dos mais importantes veículos de imprensa tem sido bastante contrária a Bolsonaro e a seu governo, a despeito de ser entusiasta de Guedes e Moro.
Diferentemente de todos os governos da Nova República anteriores, que eram altamente dependentes da grande mídia para se comunicar com os cidadãos, Bolsonaro construiu canais alternativos. Ele mantém a comunicação com sua base de apoio popular por meio das redes sociais, seja pela via do Gabinete do Ódio, atualmente investigado pelo STF, ou de inúmeros sites e blogs de extrema-direita, muitos dos quais recebem recursos de propaganda do Governo Federal e de empresas privadas.
Há pouca informação pública sobre os recursos que bancam essas usinas de fake news e de propaganda bolsonarista altamente antidemocrática, mas certamente contam com o apoio financeiro de empresários, de igrejas e de políticos eleitos, que usam as verbas de seus gabinetes para esses fins – além do novo canal noticioso CNN, que dá à extrema-direita direito de voz em quase todos os assuntos relevantes do noticiário.
É fundamental que o agente opere incidindo sobre a comunicação do bolsonarismo com sua base. Os apoiadores do presidente são suspeitos de terem praticado crime eleitoral: a disseminação de fake news por usinas de posts no Whatsapp bancadas com caixa dois durante o período de campanha. No governo, o bolsonarismo manteve em funcionamento seus centros de produção e disseminação de fake news, como forma de sustentação popular, muitas vezes cometendo outros prováveis crimes de incitação à violência, xenofobia, racismo, etc. Em outras palavras, há bastante espaço para a montagem de uma campanha de lawfare contra as usinas de fake news, campanha essa que contará com a simpatia da grande mídia e até de partes do lavajatismo ejetado da aliança bolsonarista com a saída de Moro, que virou ele mesmo um dos alvos preferenciais dos “memes” malignos dos seguidores do ex-capitão.
O STF está engajado na investigação das usinas de fake news e a Câmara dos Deputados já tem uma CPI, cujo funcionamento está suspenso devido à pandemia, e um PL para entrar em votação sobre o assunto. É preciso acelerar e diversificar as frentes de combate a essa prática tanto nos fronts jurídico, político e na sociedade civil. É fundamental que as empresas que produzem essas redes sociais (Facebook, Twitter, WhatsApp, Youtube etc) sejam pressionadas a tomar medidas cada vez mais rigorosas de restrição e punição da prática do fake news. Ainda há muito o que progredir nessa regulação, no Brasil e no mundo. E a imprensa tradicional é parcialmente simpática a essa agenda.
A mesma aliança entre operadores do direito e políticos em prol da salvação democrática deve se concentrar também na criação de medidas que punam de maneira mais eficaz as pessoas envolvidas diretamente na disseminação de fake news. Já tarda uma discussão mais séria em nosso país sobre os limites da liberdade de expressão. O sucesso do bolsonarismo talvez tenha o efeito secundário benéfico de dar relevância a esse item fundamental da agenda pública.
A grande imprensa agora mudou de ideia quanto à natureza da liberdade de expressão — antes a concebia como ilimitada, mas agora assevera que ela precisa ser regulada para combater os fake news. É irônico constatar que eventos como o sequestro de Abílio Diniz, a bolinha de papel na cabeça de Serra, a espionagem de Verônica Serra, a capa da Veja na véspera do segundo turno da eleição de 2014, os editoriais recentes de O Globo e Estadão igualando Lula a Bolsonaro no que toca a ameaça à democracia, e tantos outros, mostram que os grandes meios de comunicação fazem há décadas uso político de fake news. Mas agora não é hora para revermos a triste história de envolvimento político das empresas de comunicação de nosso país. Ademais, a regulação da liberdade de expressão será benéfica para a democracia em nosso país, e ponto final.
A campanha política e jurídica contra as usinas de disseminação de fake news também tem o efeito retroativo de aumentar os custos para os empresários que apoiam essas iniciativas, muitas vezes por vias ilegais. Ao se tornarem potenciais alvos de processos civis e criminais, tais personagens vão pensar duas vezes antes de se ligarem a atividades dessa natureza.
Mas essa deve ser somente parte da tática de desmonte do esquema de comunicação bolsonarista. Os sites e blogs de extrema direita derivam boa parte de sua renda de propagandas distribuídas por serviços como Google Ads, que muitas vezes colocam nesses sites propagandas de empresas que não têm como prioridade o financiamento da extrema-direita, ou, pelo contrário, incorreriam em prejuízo financeiro ao ter seu nome associado a ela. É nessa seara que adquire capital importância iniciativas como o Sleeping Giants, criado nos EUA, que não somente lista as empresas cujas propagandas financiam os sites de fake news, mas também questionam publicamente o departamento comercial dessas empresas acerca da associação de suas marcas com a agenda da extrema-direita, frequentemente misógina, homofóbica, racista, isto é, excludente do ponto de vista social. Mesmo entusiastas do presidente, como alguns donos de redes de academias de ginástica, restaurantes e lojas de varejo, estão sujeito à pressão advinda de campanhas bem organizadas de boicote por parte dos consumidores organizados.
Já existe uma sucursal brasileira do Sleeping Giants, mas a iniciativa me parece ainda muito acanhada. As forças políticas progressistas deveriam organizar uma plataforma conjunta de monitoramento da distribuição de anúncios na internet para potencializar esse efeito. Campanhas públicas de boicote às empresas recalcitrantes são fundamentais e devem ser feitas de modo organizado e republicano, isso é, por meio da maior informação dos consumidores. Seria uma maneira de participação política efetiva a partir do consumo, algo bastante republicano e adequado ao espírito da época.
A combinação das várias ações hoje em andamento contra as usinas de fake news já parece estar mostrando resultados. Em Tweet recente de Pedro Barciela, mostrando diagrama de rede da repercussão das manifestações do dia 30 de maio (domingo) mostra o campo bolsonarista bastante minguado, com aproximadamente 16% da atividade, enquanto que o campo antibolsonaro ocupa quase metade do grafo, e o resto fica com o grupo não político. O mesmo analista anota que a produção de conteúdo por parte dos bolsonaristas caiu 10%. Isso mostra que as usinas estão ainda em pleno funcionamento e que continuam a receber recursos que pagam gente para produzir fake News. Ou seja, o combate a esses centros de disseminação precisa continuar.
Por fim, os grupos progressistas politicamente ativos deveriam organizar centros de desconstrução de fake news. Essa medida será necessária, caso as medidas conjuntas de legisladores, judiciário e sociedade civil não consigam comprometer seriamente o funcionamento das usinas bolsonaristas. Ademais, tais centros de desconstrução serão bastante necessários em contextos eleitorais em que os fake news voltem a ser intensamente utilizados. Vou deixar os detalhes do funcionamento desses centros para contribuições futuras.
Supondo o sucesso dessa operação de desmonte comunicacional do bolsonarismo, quais seriam suas consequências para a aliança que apoia o presidente?
Os evangélicos são, por um lado, os mais blindados no quesito comunicacional, pois utilizam largamente canais próprios para falar com sua audiência, TVs, rádios, jornais e o púlpito, ainda que esse esteja prejudicado em tempos de pandemia. A despeito dessa autonomia comunicacional, os líderes evangélicos, muito importantes devido ao poder que concentram, têm sido historicamente volúveis em suas alianças políticas. Se Bolsonaro continuar a perder popularidade, é possível que muitos descubram que o balanço de perdas e ganhos do apoio esteja se tornando negativo e comecem a abandonar o barco.
Já tarda muito um esforço mais sério por parte das forças políticas progressistas de aproximação com os setores das igrejas evangélicas mais abertos ao diálogo democrático. Muitas denominações que no passado recente apoiaram projetos políticos progressistas, optaram por Bolsonaro em 2018. No atual contexto de crise do bolsonarismo, alguns já devem estar bastante arrependidos, mas, ao mesmo tempo, sem alternativas palpáveis.
Os empresários já estão bastante rachados em seu apoio a Bolsonaro. Além da campanha de lawfare contra aqueles que comentem crimes de financiamento ilegal de fake news, o objetivo aqui deve ser aumentar os custos dos que continuam a insistir no apoio por vias legais. Como não dependem diretamente do apoio popular, a não ser do povo tomado como consumidor, a pressão mais eficaz vem mesmo de iniciativas como as comentadas acima.
O apoio dos militares ao governo Bolsonaro está fortemente calcado em um tipo de captura burocrática mútua. Bolsonaro nomeou um número imenso de militares para cargos de todo tipo em seu governo, talvez uma de suas ações mais deletérias. Ao fazer isso, tornou a corporação militar capilarmente dependente do seu governo, pois os nomeados passam a receber significativas gratificações para além de seu salário normal. Assim, ele se apoia na corporação para intimidar as instituições democráticas, ao passo que a corporação depende dele para manter os ganhos salariais da tropa da gratificação.
Os militares são, contudo, uma corporação com estrutura bastante hierárquica e muitos de seus líderes sabem bem que o custo do apoio aumenta à medida que o governo se torna mais autoritário e o presidente menos popular. A perda de poder comunicacional do bolsonarismo com sua base tornará o apoio muito mais custoso aos militares e a incerteza futura muito maior, pois uma aventura autoritária sem o mínimo de legitimidade popular é fadada ao fracasso.
Em suma, o mais urgente programa de saneamento público é aquele que incide sobre a comunicação. Ela é o instrumento por meio do qual podemos desmontar o bolsonarismo, pois ele é um sistema predominantemente montado sobre estratégias de comunicação.
*João Feres Júnior é professor de ciência política do IESP-UERJ. É coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (http://gemaa.iesp.uerj.br/) e do LEMEP – Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público.