Por ALEXANDRE MARUCA*
O vereador que promoveu uma manifestação em prol da vida é ameaçado de cassação
Verdadeira ou não, a parábola do sapo em água quente é representativa de um sintoma presente entre nós: o de que qualquer movimento mais ativo pode atiçar e dar força ao campo oposto. Melhor se acomodar e não mexer no vespeiro que é nossa sociedade conservadora, pois no fim a contra revolta será grandiosa e eles sempre vão ganhar. Morrer aos poucos, sem alarde, é essa a alternativa.
Acontece que, sem negar os inúmeros avanços de cunho econômico e social que tivemos, o que vimos nos 13 anos de governo de esquerda no Brasil foram um aumento expressivo do encarceramento em massa, de remoções e de punitivismo policial. Se sem cutucar a onça não avançamos na diminuição da mortalidade de pretos, pobres, mulheres, indígenas e comunidade LGBTQI antes, porque acreditar que agora será diferente?
As reações sobre o justo protesto contra a morte violenta do congolês Moise e de Durval Teófilo Filho dentro de uma igreja de origem negra no fim de semana, liderado pelo vereador Renato Freitas, são simbólicas a esse respeito. Os dois personagens negros mortos de forma abjeta no Estado do Rio, como é sabido, o foram em virtude de componentes racistas, que desvalorizam o corpo negro a ponto de projeteis e pauladas serem usados sem nenhum pudor contra sujeitos marcados. O mesmo racismo que levou à construção de igrejas como as de Curitiba, pois a comunidade branca não admitia a mistura em nosso passado colonial, que não cessa de se fazer presente. Hoje, frequentadores brancos sentem-se ofendidos pelo que chamam de invasão à casa de Deus por pessoas reivindicando a vida e a justiça.
O vereador Renato Freitas viveu em diversas ocasiões as marcas da discriminação de forma violenta. Ano passado foi agredido e preso por guardas municipais que viam nele um sujeito perigoso por participar de um protesto contra o presidente defensor das armas. Um vereador negro preso e algemado em meio a uma manifestação é exemplo explícito do racismo presente no país. Não é suficiente ser detentor de poder público. Alguns sinais como cor da pele e grupo a que pertence (no caso dele o PT) são suficientes para que as tais forças da ordem sintam-se emponderadas para descarregar todo um acúmulo de ódio gerado ao longo do tempo.
Retomando o ocorrido no último sábado, há um esvaziamento de significados do que se relaciona à igreja do Rosário dos Pretos e de sua razão de existir. As inúmeras igrejas do Rosário espalhadas pelo país são símbolos de resistência e de socialização de escravos impedidos de frequentar locais utilizados pelas famílias de pele clara. Por que não usar um local, cuja origem está ligada a vidas negras que resistiram, para reclamar as mortes violentas e desumanas por que passam ainda hoje pessoas de pele escura? Há um esvaziamento inclusive do significado original da doutrina da igreja cristã. Afinal, a história na qual se fundamenta o cristianismo não conta que o messias de Jerusalém pregava a favor de pobres e contra a violência?
Não causa espécie, obviamente, a esperada reação da direita em atacar o movimento liderado por Renato. O que chama a atenção é a continuidade do discurso de parte da esquerda que receia que qualquer atitude mais arrojada seja capaz de provocar reações indesejáveis. Óbvio que vão causar, mas o que faz crer que o comodismo nos levará a bom termo? A história recente mostra que não.
Os exemplos de condenações por parte da esquerda de mobilizações mais combativas são fartos. O #elenão teria ajudado a eleger Bolsonaro; incendiar uma estátua que representa assassinos de índios em plena capital paulista é dar arma ao inimigo. A mensagem é: permaneçam calados, sem atrapalhar a política institucional.
Política institucional que não foi capaz de mudar verdadeiramente a situação de repressão sobre os mesmos de sempre no período recente governado pela esquerda.
Alguém pode dizer que não dá para brigar com os números: Bolsonaro melhorou nas pesquisas de 2018 após o #elenão. Mesmo que essa relação direta de causa e efeito possa ser considerada verdadeira, o que fazer então? Melhor não tensionar para não correr o risco de o resultado ser inconveniente? Para que levantar bandeiras de oposição às condições injustas do cotidiano (e esse é um dos grandes motes da esquerda) se de partida deve-se atentar para os limites impostos justamente pelos que não querem mudança? Limites institucionais, limites eleitorais, limites partidários, enquanto isso a mortalidade não cessa.
Há riscos envolvidos em tomadas de atitudes mais diretas mas há risco também, e é grande, em manter as regras do jogo da forma como sempre foram. Um dos grandes impasses colocados na realidade recente é sobre como mobilizar as massas oprimidas a defender seus direitos e os direitos democráticos frente às violências de toda a ordem: institucional, social, policial etc. Uma das formas de se fazer passa por mobilizar, conscientizar, expor, mesmo que isso traga consequências imediatas desagradáveis, como alterações nas intenções de voto.
Cabe também refletir sobre os destinos da esquerda no país. De que adianta ser alçada novamente ao poder se não for capaz de acumular força para pressionar as mudanças? Sabe-se das dificuldades em promover alterações significativas às ordens legal e social no Brasil. Os ataques vieram e virão de diversos flancos e apostar novamente apenas em acordos das mais diversas colorações pode ser um caminho que conduzirá a um passado não de tempos alvissareiros com desempregos baixos e economia acelerada, mas a um passado de tempos sombrios que levaram governos e líderes do PT a andar de joelhos, serem retirados do poder, serem presos. Os tempos são outros, bem mais difíceis, como todos sabem. Se não podemos nem devemos fechar os olhos para as necessidades de acordos políticos, é hora também de deixar de lado o medo de se expor e enfrentar os riscos de levantar debates essenciais, porém encobertos por medos, receios e acordos.
Chega a ser repugnante ver partidos completamente alinhados ao atual governo, que promove a morte de diversas formas e faz uso frequente da estética da arma, cogitarem a cassação de um vereador que promoveu uma manifestação em prol da vida. A hora é de defender Renato Freitas, não de deixa-lo à míngua, como apontam algumas opiniões.
Há um componente a mais neste ano, que é o protofascismo que nos cerca. Isso é inegável. A necessidade de retirada desse governo que atenta contra a vida em todos os sentidos é real, mas o fascismo não se encerra em Bolsonaro. Será suficiente uma troca de governo sem uma base social de apoio? Essa base social pode ser conquistada ou reconquistada através da exposição das chagas que tanto afligem esse país, que nasceu para ser explorado e assim permanece até hoje.
Há riscos neste caminho, como é sabido, mas o caminho da conciliação já foi trilhado, pensando ser o mais seguro, o que não se mostrou verdadeiro. Ou seja, há riscos também em se manter inserido no desenho institucional vigente. E enquanto a briga pelos números permanece as pessoas continuam morrendo, sofrendo, sendo pisadas, chutadas, violentadas. Mortes em silêncio: esse o resultado forjado por uma atitude comodista que ecoa por diversos lados.
De volta à parábola do sapo, melhor seria se a água desta panela fosse fervida a ponto de fazê-lo perceber a arapuca em que está metido. A calmaria é capaz de matar mais do que a fervura.
*Alexandre Maruca é graduado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP).