Por ELENIRA VILELA*
Há um debate no Brasil e no mundo sobre se já está na hora ou já passou a hora de voltarem as aulas presenciais
Uma coisa sobre a qual não há discussão entre os que respeitam minimamente o conhecimento científico é que o equacionamento da crise pandêmica no Brasil vem sendo criminoso e temos hoje o segundo maior número de mortes por COVID 19 do mundo.
Somente se compararmos Santa Catarina com o vizinho Uruguai, vemos dados alarmantes: o Uruguai tem 3,5 milhões de habitantes e SC tem 7 milhões. No Uruguai estão registrados 1521 casos e 42 óbitos, já SC tem 132492 casos e 2042 óbitos (dados de 23 de agosto de 2020). Se mantivéssemos a proporção uruguaia, teríamos 84 óbitos, o que significa que estamos com 24 vezes mais mortes.
Estaremos muito em breve com 110 mil vidas perdidas no Brasil e em um mês, mantida a média próxima de mil óbitos/dia chegaremos ao triste e inaceitável número de 150 mil mortes. A maioria dessas mortes eram evitáveis, o que significa que há muito o que se buscar identificar os responsáveis e que eles sofram as consequências de suas atitudes ou de sua omissão.
Mas uma coisa é certa: a situação estaria muito pior se as aulas presenciais não estivessem suspensas. E essa suspensão se deve em grande medida à atuação das direções de sindicatos de trabalhadores em educação, especialmente das redes públicas, em todo o país.
O Brasil tem cerca de 48 milhões de estudantes da educação básica, distribuídos em cerca de 180 mil escolas em todo o Brasil, segundo o Censo Escolar do INEP[i] de 2019. Desses estudantes praticamente 27 milhões estão no ensino fundamental (faixa etária de 6 a 14 anos, com 15 mi nos anos iniciais e 12 nos anos finais) e quase 7,5 milhões no Ensino Médio. Temos também 2,2 milhões de docentes atuando na educação básica. Considerando que na educação infantil temos quase 600 mil docentes para cerca de 9 milhões de crianças, podemos concluir que no Ensino Fundamental e Médio temos uma média de 22 estudantes por docente. Esse número é uma média bastante grosseira, se pensarmos que há vários docentes que atendem a mesma turma e que aqui estão incluídas tanto escolas particulares como públicas, que tem essa distribuição bastante diferente.
O Ponto é, se o estudo feito por matemáticos da Universidade de Granada[ii] for aplicado ao Brasil grotescamente (desconsiderando que nossas famílias tem em média 1,7 filhos[iii], enquanto na Espanha são 1,5 e que se estratificarmos para famílias em periferias e zonas rurais são maiores) e que lá eles tem em média 20 estudantes por sala e se considerarmos somente os 1,6 milhão de docentes e as 27 milhões de crianças e adolescentes, considerando as condições espanholas em que cada estudantes tem contato com 74 pessoas no primeiro dia de aula e 808 no segundo dia, voltar às aulas significa acabar com o distanciamento social praticamente pra toda a população brasileira. Claro que duas crianças não tem contato com 74 pessoas diferentes de outra criança, há pessoas que vão ter contato com ambas e isso só piora a situação, já que é o contato cruzado que dissemina a infecção.
Eu moro em Florianópolis e percebo claramente a diferença no trânsito quando tem aulas e quando não tem, mesmo em dias úteis. A circulação de pessoas aumenta e muito quando é dia letivo. Assim como é claramente perceptível no trânsito, que com a volta às aulas presenciais o pouco distanciamento social já teria terminado, aquele cujas melhores taxas registradas nunca chegaram a 60% em SP, quando o recomendável era em torno de 75%.
Imagina o transporte coletivo em dias letivos, como seria?
As experiências internacionais mostram que em todos os lugares que as aulas presenciais retornam, o número de infectados e de afastados aumenta muito rápido. No Mississipi[iv], estado dos EUA, dúzias de estudantes e professores se contaminaram em apenas 11 dias. Na Geórgia[v] (também nos EUA) mais de 800 pessoas foram colocadas em quarentena depois que foi confirmado um único estudante com a doença.
Coreia do Sul, França e vários outros países tiveram surtos mesmo com todos os cuidados e as escolas estão passando por ciclos de abertura e novos fechamentos. A Suécia que nunca fechou as escolas teve uma grande queda na taxa de infecção no período de férias escolares.
Há muita controvérsia ainda sobre o quanto crianças, adolescentes podem ser vetores de contaminação. Há estudos que surpreenderam que crianças podem ter cargas virais de até 100 vezes maiores que adultos e, por outro lado, há estudos que mostram que quem se contaminou por exposição a cargas virais altas teve a doença na forma mais grave. Isso significa que, apesar de o número de crianças e adolescentes que desenvolvem as formas mais graves ser realmente pequeno, eles podem levar a trabalhadores adoecerem com essas formas mais graves e isso ter impacto sobre a morte desses profissionais e também de trabalhadores em transporte, parentes entre outros, aumentando o risco ou aprofundando o colapso do sistema de saúde, o que novamente aumenta o número de vidas perdidas.
Há estudos que indicam que as crianças transmitem pouco o vírus e que isso seria suficiente para a abertura das escolas. Esse estudo (citado por Trump) teve uma população pequena e ainda é questionado por muitos cientistas. E o fato objetivo é que se tem observado o aumento do número de infectados logo após a reabertura das escolas indicando correlação entre os dois fatos (menos as chinesas que tem aplicado medidas sanitárias extremamente rígidas nas escolas em uma população disciplinada).
Voltando para o Brasil onde trabalhadores da educação são mal remunerados, as escolas sempre viveram situações dramáticas de falta de estrutura e de material de higiene e limpeza, em uma cultura onde o toque, especialmente entre crianças e adolescentes, é frequente, onde há poucos professores por crianças e salas lotadas e onde ao voltar pra casa a crianças de periferia e de comunidades rurais vão se aglomerar em transportes e vão conviver em residências pequenas com grande número de moradores, a reabertura das escolas transformaria a tragédia humanitária que vivemos, onde caminhamos para as 150 mil mortes, para a possível perda de milhões de vidas (lembre-se que a correlação na infecção dessa doença é de crescimento exponencial).
E o fato é que tem sido principalmente a luta sindical aimpedir tentativas irresponsáveis de retorno às aulas presenciais. Há muita pressão da imprensa (aqui em SC certo pena de aluguel[vi] andou chamando professores de acomodados, que estariam recebendo sem trabalhar, só pra dar um exemplo), dos empresários (que querem retornar às suas atividades lucrativas, o que é impossível se trabalhadores não puderem ir às fábricas e comércios e o fato de os filhos desses trabalhadores estar sem aula dificulta a organização desse retorno – você não acreditou que eles estão preocupados com o aprendizado das crianças?), políticos que trabalham para esses empresários e os próprios empresários que vendem ensino, cujos negócios são conhecidos como escolas particulares, pela autorização da abertura das escolas, chegando ao ponto da divulgação daquele vídeo institucional infame do Sindicato Patronal da Escolas Particulares do RJ[vii], os próprios empresários do transporte coletivo privatizado que sabem que a demanda pelo serviço está diretamente ligado ao funcionamento das escolas e universidades e por fim, inclusive de alguns mães e pais cujos trabalhos precarizados ficam muito dificultados pela presença das crianças em casa, que criam uma demanda de atenção enorme.
Os sindicatos ligados à Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação – CNTE da CUT, o SINASEFE, o ANDES e muitos outros tem em última análise segurado no braço a manutenção da suspensão das aulas presenciais o que tem significado segurar o mínimo distanciamento social que vem se mantendo e, por consequência, tem salvo centenas de milhares de vidas de brasileiros e brasileiras. Essa é a maior conquista do sindicalismo brasileiro que costuma ser tão atacado e desrespeitado e jamais reconhecido no quão é importante para o Brasil. Outro ator importante nessa conquista é o Movimento Estudantil.
Em troca, os trabalhadores da educação pública tiveram seus salários congelados e direitos suspensos até 2021 pela Lei 173/2020 depois do veto do Presidente Inimigo da Educação com mentiras divulgadas sobre que esses profissionais estariam querendo receber aumento de salários enquanto estão recebendo sem trabalhar e os outros perdendo o emprego e passando fome. Primeiro é preciso salientar que a perda de empregos já era uma realidade antes da pandemia, mas, pelo contrário, a manutenção da remuneração dessas pessoas, assalariados, tem mantido a economia movimentada, já que estes gastam tudo que recebem consumindo no mercado local, o que evita o fechamento de postos de trabalho. Segundo que a fome não é responsabilidade de quem atua na educação e na saúde (você conhece alguma professora ou enfermeira marajá? Ou é o juíz e o empresário?), mas é responsabilidade do governo federal que a única medida implantada pelo seu governo para evitá-la lhe foi imposta goela abaixo pelo Congresso, que é o auxílio emergencial proposto pelos partidos de oposição, notadamente o PT. Terceiro que é simplesmente falso dizer que professores e demais trabalhadores da educação estejam ganhando sem trabalhar: muitas redes de ensino e instituições adotaram modelos bastante problemáticos de ensino remoto (entre eles a rede municipal de Florianópolis, a Rede Estadual de SC e o IFSC), muitos impondo uma absurda carga de trabalho pois fazer uma vídeo aula de 10 minutos leva algumas horas de trabalho, por exemplo. E mesmo onde o ensino remoto ainda não começou ou não deve começar, trabalhadores estão mantendo contato com estudantes para sanar necessidades emocionais e alimentares, entre outras, e há inúmeras reuniões de trabalho para acompanhamento da situação, elaboração de possibilidades, estudo de organização alternativa do processo ensino-aprendizagem, planejamento de trabalho etc.
Importante lembrar que os filhos dos trabalhadores em educação também estão em casa e que essas mulheres estão sobrecarregadas em cuidar de familiares, dos trabalhos domésticos, das crianças e em trabalhar sem as condições necessárias. E universidades e institutos tecnológicos mantém trabalhos de pesquisa e extensão que são fundamentais em tempos de pandemia (como no estudo feito na UFSC que detectou o vírus da COVID 19 em amostras de esgoto de novembro de 2019 ou na criação de projeto de respirador eficiente, com capacidade instalada de produção nacional. No trabalho de extensão tem atuado na produção e distribuição de máscaras frontais pra distribuição à profissionais de saúde, álcool em gel pra distribuição em comunidades pobres e para pessoas em situação de rua etc).
Em um país com recordes de morte por acidente de trabalho como o nosso, a organização sindical sempre salvou vidas. Mas nunca isso foi tão explicitamente verdade como no caso da COVID 19 e a luta sindical pela manutenção da suspensão das aulas presenciais.
Só a luta muda a vida!
Aulas presenciais somente com vacina!
Quem perdeu o ano foi quem perdeu a vida, seu filho tem a vida toda pela frente pra recuperar o aprendizado! Suspende o calendário!
Adia ENEM!
*Elenira Vilela é professora e membro da direção nacional do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE).
Notas
[i]http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/matriculas-em-creches-publicas-crescem-em-2019-ensino-medio-em-tempo-integral-tambem-registra-crescimento/21206
[ii]https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-06-17/colocar-20-criancas-numa-sala-de-aula-implica-em-808-contatos-cruzados-em-dois-dias-alerta-universidade.html
[iii] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/10/17/estudo-da-onu-aponta-que-tamanho-das-familias-no-brasil-esta-abaixo-da-media-mundial.ghtml
[iv] https://www.msn.com/en-us/news/us/within-11-days-of-schools-opening-dozens-of-students-and-teachers-have-gotten-covid-19-i-truly-wish-we-d-kept-our-children-home/ar-BB17ELoN
[v] https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/08/15/volta-as-aulas-pelo-mundo.htme
https://www.nytimes.com/interactive/2020/07/31/us/coronavirus-school-reopening-risk.html
[vi] http://www.sintrasem.org.br/Default/Noticia/15028/moacir-pereira-jornalismo-pedante-e-lambe-botas-do-capital
[vii] https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2020/07/professores-do-rio-repudio-a-video-patronal-e-greve-contra-a-volta-as-aulas/