Por ALEX VERSHININ*
O Ocidente está perdendo a guerra na Ucrânia porque não possui a economia, a doutrina e a estrutura militar mais adequada para esta forma de conflito, que se dá por atrito e não por movimento
As guerras de atrito exigem a sua própria “Arte da Guerra” e são travadas com uma abordagem “centrada na força”, ao contrário das guerras de manobra que são “centradas no terreno”.[i] Estão enraizados numa enorme capacidade industrial para permitir a substituição de perdas, na profundidade geográfica para absorver uma série de derrotas e em condições tecnológicas que impedem o rápido movimento terrestre. Nas guerras de desgaste, as operações militares são moldadas pela capacidade do Estado de substituir perdas e gerar novas formações, e não por manobras táticas e operacionais. O lado que aceita a natureza desgastante da guerra e se concentra em destruir as forças inimigas em vez de ganhar terreno tem maior probabilidade de vencer.
O Ocidente não está preparado para este tipo de guerra. Para a maioria dos especialistas ocidentais, a estratégia de atrito é contraintuitiva. Historicamente, o Ocidente preferiria o curto confronto de exércitos profissionais em que o “vencedor leva tudo”. Jogos de guerra recentes, como a guerra do CSIS (Center for Strategic and International Studies) sobre Taiwan, cobriram um mês de combates. A possibilidade de a guerra continuar nunca entrou em discussão. Isso é um reflexo de uma atitude ocidental comum. As guerras de desgaste são tratadas como exceções, algo a evitar a todo o custo, e geralmente produtos da inépcia dos líderes. Infelizmente, as guerras entre potências análogas são muito provavelmente de desgaste, por conta do considerável conjunto de recursos disponíveis para substituir as perdas iniciais.
A natureza desgastante do combate, incluindo a erosão do profissionalismo devido às baixas, nivela o campo de batalha, independentemente do exército que começou com forças mais bem treinadas. À medida que o conflito se arrasta, a guerra é vencida pelas economias e não pelos exércitos. Os Estados que compreendem isto e travam tal guerra através de uma estratégia de atrito que visa esgotar os recursos do inimigo e, ao mesmo tempo, preservar os seus próprios, têm maior probabilidade de vencer. A forma mais rápida de perder uma guerra de atrito é concentrar-se na manobra, despendendo recursos valiosos em objetivos territoriais de curto prazo. Reconhecer que as guerras de atrito têm a sua própria arte é vital para vencê-las sem sofrer perdas devastadoras.
A dimensão econômica
As guerras de atrito são vencidas pelas economias que permitem a mobilização em massa de militares através dos seus setores industriais. Os exércitos expandem-se rapidamente durante um conflito deste tipo, exigindo enormes quantidades de veículos blindados, drones, produtos eletrônicos e outros equipamentos de combate. Como o armamento de ponta é muito complexo de fabricar e consome vastos recursos, uma mistura de forças e armas ao longo de todo o espectro militar é imperativa para vencer.
As armas de última geração têm um desempenho excepcional, mas são difíceis de fabricar, especialmente quando necessárias para armar um exército rapidamente mobilizado e sujeito a uma elevada taxa de desgaste. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, os Panzers alemães mostraram-se tanques excelentes, mas utilizando aproximadamente os mesmos recursos de produção, os soviéticos produziam oito T-34 para cada Panzer alemão. A diferença de desempenho não justificou a disparidade numérica na produção. Armas de ponta também exigem tropas de ponta. Estas levam um tempo significativo para serem treinadas – tempo que não está disponível em uma guerra com altas taxas de desgaste.
É mais fácil e rápido produzir grandes quantidades de armas e munições baratas, especialmente se os seus subcomponentes forem intercambiáveis com bens civis, garantindo uma quantidade em massa sem a expansão das linhas de produção. Os novos recrutas também absorvem armas mais simples mais rapidamente, permitindo a rápida geração de novas formações ou a reconstituição das existentes.
Alcançar a massa é difícil para as economias ocidentais mais sofisticadas. Para alcançar a hipereficiência, eliminam o excesso de capacidade e lutam para se expandir rapidamente, especialmente porque as indústrias de nível tecnológico inferior foram transferidas para outros países por razões econômicas. Durante a guerra, as cadeias de abastecimento globais são perturbadas e os subcomponentes já não podem ser protegidos.
Some-se a esse impasse a carência de uma força de trabalho qualificada e com experiência em um determinado setor. Tais competências são adquiridas ao longo de décadas e, uma vez fechada uma indústria, são necessárias décadas para reconstruí-la. O relatório interagências do governo dos Estados Unidos, de 2018, sobre a capacidade industrial norte-americana destacou esses problemas. O resultado final é que o Ocidente deveria analisar com atenção a forma de garantir o excesso de capacidade em tempo de paz no seu complexo industrial militar, ou correrá o risco de perder a próxima guerra.
Produção de força
A produção industrial em tempos de guerra volta-se para canalizar a reposição de perdas e gerar novas formações. Isto requer doutrina apropriada e estruturas de comando e controle. Existem dois modelos principais: o da OTAN (a maioria dos exércitos ocidentais), de um lado; e o antigo modelo soviético, de outro; com a maioria dos Estados apresentando algo intermediário.
Os exércitos da OTAN são altamente profissionais, apoiados por um forte corpo de sargentos, com extensa formação e experiência militar em tempos de paz. Baseiam-se nesse profissionalismo para que a sua doutrina militar (fundamentos, táticas e técnicas) enfatize a iniciativa individual, delegando uma grande margem de manobra aos oficiais subalternos e sargentos. As formações da OTAN gozam de uma enorme agilidade e flexibilidade para explorar oportunidades num campo de batalha dinâmico.
Na guerra de atrito, este método tem uma desvantagem. Os oficiais e sargentos necessários para executar tal doutrina exigem amplo treinamento e, acima de tudo, experiência. Um sargento do Exército dos Estados Unidos leva anos para ser formado. Um comandante de esquadra[ii] geralmente tem pelo menos três anos de serviço e um sargento de pelotão pelo menos sete. Numa guerra de atrito caracterizada por pesadas baixas, simplesmente não há tempo para substituir praças perdidos ou formá-los para novas unidades.
A ideia de que os civis podem receber cursos de formação de três meses, distintivos de sargento e depois esperar que tenham o mesmo desempenho que um veterano de sete anos é uma receita para o desastre. Só o tempo pode produzir líderes capazes de executar a doutrina da OTAN, e o tempo é algo que as enormes exigências da guerra de atrito não proporcionam.
A União Soviética construiu seu exército orientado para conflitos em grande escala com a OTAN. Pretendia que ele fosse capaz de se expandir rapidamente, através da mobilização de reservas massivas. Todos os homens na União Soviética passavam por dois anos de treinamento básico logo após o ensino médio. A constante rotação do pessoal alistado impediu a criação de um corpo de sargentos ao estilo ocidental, mas gerou um enorme conjunto de reservas semitreinadas disponíveis para tempos de guerra. A ausência de sargentos fiáveis criou um modelo de comando centrado nos oficiais, menos taticamente flexível do que o da OTAN, mas mais adaptável à expansão em grande escala exigida pela guerra de atrito.
No entanto, quando uma guerra ultrapassa a marca de um ano, as unidades da linha da frente ganham experiência, e é provável que surja um corpo de sargentos aprimorado, o que dava ao modelo soviético mais flexibilidade operacional. Em 1943, o Exército Vermelho havia desenvolvido um robusto corpo de sargentos, que desapareceria após a Segunda Guerra Mundial, à medida que as formações de combate eram desmobilizadas. Uma diferença fundamental entre os modelos é que a doutrina da OTAN não pode funcionar sem sargentos de alto desempenho. A doutrina soviética foi reforçada por sargentos experientes, mas não necessariamente os exigia.
Em vez de uma batalha decisiva alcançada através de manobras rápidas, a guerra de atrito concentra-se na destruição das forças inimigas e na sua própria capacidade de regenerar o poder de combate, preservando-o.
O modelo mais eficaz seria uma mistura dos dois, em que um Estado mantém um exército profissional de dimensão média, juntamente com uma massa de recrutas disponíveis para mobilização. Isto conduz diretamente a uma mistura em todos os escalões. As forças profissionais do pré-guerra constituem o topo deste exército, tornando-se brigadas de combate e movendo-se de setor em setor no terreno, para estabilizar a situação e conduzir ataques decisivos. As formações de baixo nível mantêm a linha e ganham experiência lentamente, aumentando a sua qualidade até adquirirem a capacidade de conduzir operações ofensivas. A vitória é alcançada através da criação de formações massivas da mais alta qualidade possível.
Transformar novas unidades em soldados capazes de combater, em vez de turbas de civis fardados, é feito através de treinamento e experiência de combate. Uma nova formação deverá treinar por pelo menos seis meses, e somente se for formada por reservistas com treinamento prévio. Os recrutas demoram ainda mais. Essas unidades também devem ter soldados profissionais e sargentos trazidos do exército do pré-guerra, para aumentar o profissionalismo.
Uma vez concluído o treinamento inicial, eles só deverão ser incluídos na batalha nos setores secundários. Nenhuma formação pode cair abaixo de 70% de sua capacidade de combate. A retirada antecipada das formações permite que a experiência prolifere entre os novos substitutos, à medida que os veteranos transmitem suas habilidades. Caso contrário, perde-se uma experiência valiosa, exigindo que todo o processo seja reiniciado.
Outra regra é que os recursos devem dar prioridade às substituições, em detrimento das novas formações, preservando a vantagem de combate tanto no exército pré-guerra como nas formações recém-criadas. É aconselhável dissolver várias formações pré-guerra (de alto nível) para espalhar soldados profissionais entre as formações de mais baixo nível de preparo recém-criadas, a fim de aumentar a qualidade inicial.
A dimensão militar
As operações militares num conflito de atrito são muito distintas daquelas de uma guerra de manobra. Em vez de uma batalha decisiva alcançada através de manobras rápidas, a guerra de atrito se centra na destruição das forças inimigas e na sua capacidade de regenerar seu próprio poder de combate. Neste contexto, uma estratégia bem sucedida aceita que a guerra dure pelo menos dois anos e seja dividida em duas fases distintas. A primeira fase vai desde o início das hostilidades até ao ponto em que for mobilizado poder de combate suficiente para permitir uma ação decisiva.
Ela mostrará pouca mudança de posição no terreno, concentrando-se na troca favorável de perdas e na construção de poder de combate na retaguarda. A forma dominante de combate são os fogos e não as manobras, complementados por extensas fortificações e camuflagem. O exército em tempos de paz inicia a guerra e conduz ações de contenção, proporcionando tempo para mobilizar recursos e treinar o novo exército.
A segunda fase pode começar depois de um lado ter cumprido as seguintes condições: [i] as forças recentemente mobilizadas concluíram a sua formação e adquiriram experiência suficiente para se tornarem formações eficazes em combate, capazes de integrar rapidamente todos os seus recursos de forma coesa; [ii] a reserva estratégica do inimigo está esgotada, deixando-o incapaz de reforçar um setor ameaçado; [iii] a superioridade do ritmo de disparos e do reconhecimento é alcançada, permitindo ao atacante concentrar efetivamente os disparos em massa em um setor-chave, ao mesmo tempo que nega o mesmo ao inimigo; e [iv] o setor industrial do inimigo está degradado ao ponto de ser incapaz de substituir as perdas no campo de batalha; e no caso de lutar contra uma coligação de países, os seus recursos industriais também devem ser esgotados ou pelo menos com os dias contados.
Só depois de cumpridos estes critérios é que as operações ofensivas terão início. Devem ser lançados através de uma frente ampla, procurando subjugar o inimigo em múltiplos pontos com ataques superficiais. A intenção é permanecer dentro de uma bolha em camadas de sistemas de proteção amigos, enquanto amplia o esgotamento das reservas inimigas, até que a frente entre em colapso. Só então a ofensiva deverá estender-se para objetivos mais profundos na retaguarda inimiga. A concentração de forças num esforço principal deve ser evitada, pois dá uma indicação da localização da ofensiva e uma oportunidade para o inimigo concentrar as suas reservas na defesa deste ponto-chave.
A Ofensiva Brusilov, de 1916, que resultou no colapso do exército austro-húngaro, é um bom exemplo de uma ofensiva de atrito bem-sucedida a nível tático e operacional. Ao atacar ao longo de uma frente ampla, o exército russo impediu que os austro-húngaros concentrassem as suas reservas, resultando num colapso ao longo de toda a frente. No entanto, a nível estratégico, a Ofensiva Brusilov é um exemplo de fracasso. As forças russas não conseguiram estabelecer condições contra toda a coligação inimiga, concentrando-se apenas no Império Austro-Húngaro e negligenciando a capacidade alemã. Os russos gastaram recursos cruciais que não puderam substituir, sem derrotar o membro mais forte da coligação.
Enfatizando mais uma vez o ponto-chave, uma ofensiva só terá sucesso quando os critérios-chave forem cumpridos. A tentativa de lançar uma ofensiva mais cedo resultará em perdas sem quaisquer ganhos estratégicos, entregando-a diretamente nas mãos do inimigo.
A guerra contemporânea
O campo de batalha contemporâneo é um conjunto integrado de sistemas que inclui vários tipos de guerra eletrônica (EW), três tipos básicos de defesas aéreas, quatro tipos diferentes de artilharia, inúmeros tipos de aeronaves, drones de ataque e reconhecimento, engenheiros de construção e sapadores, infantaria tradicional, formações blindadas e, acima de tudo, logística. A artilharia tornou-se mais perigosa da história da guerra, graças ao aumento do alcance e à mira avançada, ampliando a profundidade do campo de batalha.
Na prática, isso significa que é mais fácil concentrar fogos do que forças. A manobra profunda, que requer a concentração do poder de combate, já não é possível porque qualquer força concentrada será destruída por fogos indiretos antes de poder alcançar sucesso em profundidade. Em vez disso, uma ofensiva terrestre requer uma bolha protetora ajustada para afastar os sistemas de ataque inimigos. Essa bolha é produzida através da sobreposição de recursos de contrafogo, defesa aérea e EW.
Mover numerosos sistemas interdependentes é altamente complicado e dificilmente terá sucesso. Os ataques superficiais ao longo da linha avançada das tropas têm maior probabilidade de serem bem-sucedidos com uma relação de custo aceitável. As tentativas de penetração profunda ficarão expostas a fogos em massa no momento em que saírem da proteção da bolha defensiva.
A integração destes ativos sobrepostos requer um planejamento centralizado e militares excepcionalmente bem treinados, capazes de integrar múltiplas capacidades em tempo real. Leva anos para treinar tais oficiais, e mesmo a experiência de combate não gera tais habilidades em pouco tempo. Listas de verificação e procedimentos obrigatórios podem aliviar estas deficiências, mas apenas numa frente estática e menos complicada. As operações ofensivas dinâmicas exigem tempos de reação rápidos, que os oficiais semitreinados são incapazes de realizar.
Um exemplo desta complexidade é o ataque de um pelotão de 30 soldados. Isto exigiria que os sistemas EW bloqueiem os drones inimigos; outro sistema EW deve bloquear as comunicações inimigas, impedindo o ajuste dos seus fogos; e um terceiro sistema EW deve bloquear sistemas de navegação espacial, negando o uso de munições guiadas com precisão. Além disso, os fogos exigem radares de contrabateria para derrotar a artilharia inimiga. Para complicar ainda mais o planejamento, está o fato de que a guerra eletrônica inimiga localizará e destruirá qualquer radar amigo ou emissor de guerra eletrônica que esteja emitindo por muito tempo.
Os engenheiros terão que abrir caminhos através dos campos minados, enquanto os drones fornecem ISR (Intelligence, Surveillance and Reconnaissance) sensível ao tempo e apoio de fogo, se necessário. (Essa tarefa requer muito treino com as unidades de apoio para evitar o lançamento de munições por sobre as tropas de ataque amigas). Finalmente, a artilharia precisa fornecer apoio tanto na direção do objetivo como na retaguarda inimiga, visando as reservas e suprimindo a artilharia inimiga.
Todos estes sistemas precisam funcionar como uma equipe integrada tão apenas para apoiar 30 homens em vários veículos atacando outros 30 homens ou menos. A falta de coordenação entre esses meios resultará em ataques fracassados e perdas terríveis, sem nunca sequer chegar ver o inimigo. À medida que aumenta o tamanho da formação que conduz as operações, aumenta também o número e a complexidade dos ativos que precisam ser integrados.
Implicações para as operações de combate
Os fogos profundos – a mais de 100-150 km (o alcance médio dos foguetes táticos) atrás da linha de frente – visam desgastar a capacidade do inimigo de gerar poder de combate. Isto inclui instalações de produção, depósitos de munições, depósitos de reparos e infraestrutura de energia e transporte. De particular importância são os alvos que exigem capacidades de produção significativas e que são difíceis de substituir/reparar, uma vez que a sua destruição causará danos no longo prazo.
Tal como acontece com todos os aspectos da guerra de atrito, tais ataques levarão um tempo significativo para surtir efeito, com prazos que chegam a anos. Os baixos volumes de produção global de munições guiadas com precisão de longo alcance, as ações eficazes de dissimulação e ocultação, os grandes arsenais de mísseis antiaéreos e a enorme capacidade de reparação de Estados fortes e determinados combinam-se para prolongar os conflitos. A estratificação eficaz das defesas aéreas deve incluir sistemas de ponta em todos os escalões, juntamente com sistemas mais baratos para combater as plataformas de ataque de base massivas do inimigo. Combinada com a fabricação em grande escala e uma guerra eletrônica eficaz, essa é a única maneira de derrotar os fogos profundos do inimigo.
A vitória numa guerra de atrito é assegurada por um planejamento cuidadoso, pelo desenvolvimento da base industrial e pelo desenvolvimento de infraestruturas de mobilização em tempos de paz, e, finalmente, por uma gestão ainda mais cuidadosa dos recursos em tempos de guerra.
A guerra de atrito bem-sucedida concentra-se na preservação do próprio poder de combate. Isso geralmente se traduz numa frente relativamente estática, interrompida por ataques locais limitados para melhorar as posições, utilizando artilharia na maior parte dos combates. A fortificação e a ocultação de todas as forças, incluindo a logística, são a chave para minimizar as perdas. O longo tempo necessário para construir fortificações impede movimentos significativos sobre o solo. Uma força de ataque que não consiga entrincheirar-se rapidamente sofrerá perdas significativas devido aos fogos de artilharia inimiga.
As operações defensivas ganham tempo para desenvolver formações de combate de baixo nível, permitindo que as tropas recentemente mobilizadas ganhem experiência de combate sem sofrer pesadas perdas em ataques de grande escala. A constituição de formações de combate experientes de baixo nível produz a capacidade para futuras operações ofensivas.
As fases iniciais da guerra de atrito vão desde o início das hostilidades até ao ponto em que os recursos mobilizados estão disponíveis em grande número e prontos para as operações de combate. No caso de um ataque surpresa, uma ofensiva rápida de um lado pode ser possível até que o defensor consiga formar uma frente sólida. Depois disso, o combate se solidifica. Esse período dura pelo menos um ano e meio a dois anos. Durante este período, devem ser evitadas grandes operações ofensivas.
Mesmo que grandes ataques sejam bem-sucedidos, resultarão em baixas significativas, muitas vezes com ganhos territoriais sem sentido. Um exército nunca deveria aceitar uma batalha em condições desfavoráveis. Numa guerra de atrito, qualquer terreno que não tenha um centro industrial vital é irrelevante. É sempre melhor recuar e preservar forças, independentemente das consequências políticas. Lutar em terrenos desvantajosos queima unidades, levando à perda de soldados experientes, que são fundamentais para a vitória. A obsessão alemã com Stalingrado em 1942 é um excelente exemplo de combate em terreno desfavorável por razões políticas. A Alemanha queimou unidades vitais que não podia perder, simplesmente para capturar uma cidade que levava o nome de Stálin.
Também é sensato forçar o inimigo a combater em terreno desvantajoso, através de operações de informação, explorando objetivos inimigos politicamente sensíveis. O objetivo é forçar o inimigo a gastar reservas materiais e estratégicas vitais em operações estrategicamente sem sentido. Uma armadilha importante a evitar é ser arrastado para a mesma armadilha que foi preparada para o inimigo. Na Primeira Guerra Mundial, os alemães fizeram exatamente isso em Verdun, onde planejaram usar a surpresa para capturar terrenos importantes e politicamente sensíveis, provocando dispendiosos contra-ataques franceses. Infelizmente, para os alemães, eles caíram na sua própria armadilha. Eles não conseguiram ganhar um terreno importante e defensável desde o início, e a batalha se transformou em uma série de ataques de infantaria dispendiosos de ambos os lados, com fogos de artilharia devastando a infantaria atacante.
Quando a segunda fase de uma guerra de atrito começa, a ofensiva deve ser lançada através de uma frente ampla, procurando subjugar o inimigo em múltiplos pontos, utilizando ataques superficiais. A intenção é permanecer dentro da bolha em camadas de sistemas de proteção amigos, enquanto amplia o esgotamento das reservas inimigas, levando ao colapso da frente. Há um efeito em cascata no qual uma crise num setor força os defensores a transferir reservas de um segundo setor, gerando, por sua vez, outra crise aí.
À medida que as forças começam a recuar e a abandonar as fortificações preparadas, o moral abaixa e vem a pergunta óbvia: “Se não conseguimos manter a megafortaleza, como poderemos manter as novas trincheiras?”. A retirada então se transforma em derrota. Só então a ofensiva deverá se estender para objetivos mais profundos na retaguarda inimiga.[iii] A ofensiva dos Aliados em 1918 é um exemplo. Os Aliados atacaram ao longo de uma frente ampla, enquanto os alemães não tinham recursos suficientes para defender toda a linha. Assim que o exército alemão começou a recuar, foi impossível parar esse movimento.
A estratégia de atrito, centrada na defesa, é contraintuitiva para a maioria dos oficiais militares ocidentais. O pensamento militar ocidental vê a ofensiva como o único meio de alcançar o objetivo estratégico decisivo de forçar o inimigo a sentar-se à mesa de negociações em condições desfavoráveis. A paciência estratégica necessária para estabelecer as condições para uma ofensiva vai contra até mesmo a sua experiência de combate adquirida em operações de contrainsurgência no exterior.
Conclusão
A condução das guerras de atrito é muito diferente das guerras de manobra. Duram mais e acabam por testar a capacidade industrial de um país.[iv] A vitória é assegurada por um planejamento cuidadoso, pelo desenvolvimento da base industrial e pelo desenvolvimento de infraestruturas de mobilização em tempos de paz, e por uma gestão ainda mais cuidadosa dos recursos em tempos de guerra.
A vitória é alcançada através da análise meticulosa dos objetivos políticos próprios e os do inimigo. A chave é reconhecer os pontos fortes e fracos dos modelos econômicos concorrentes e identificar as estratégias logísticas que têm maior probabilidade de gerar o máximo de recursos. Esses recursos podem então ser utilizados para construir um exército enorme usando a mistura de força e armas de diferentes qualidades em todos os escalões.
A condução militar da guerra é impulsionada por objetivos estratégicos políticos globais, realidades militares e limitações econômicas. As operações de combate, nesse tipo de guerra, são superficiais e concentram-se na destruição dos recursos inimigos, e não na conquista de terreno. A propaganda é usada para apoiar operações militares, e não o contrário. Com paciência e planejamento cuidadoso, uma guerra pode ser vencida.
Infelizmente, muitos no Ocidente têm uma atitude muito arrogante de que os conflitos futuros serão curtos e decisivos. Isto não é verdade pelas mesmas razões logo antes descritas. Mesmo as potências globais médias têm a geografia, a população e os recursos industriais necessários para conduzir uma guerra de atrito. A ideia de que qualquer grande potência recuaria no caso de uma derrota militar inicial é, no melhor dos casos, uma ilusão. Qualquer conflito entre grandes potências será visto pelas elites adversárias como existencial, e será conduzido com todos os recursos disponíveis do Estado. A guerra resultante vai se tornar desgastante e favorecerá o Estado que possui a economia, a doutrina e a estrutura militar mais adequada para esta forma de conflito.
Se o Ocidente levar a sério um possível conflito entre grandes potências, precisa analisar atentamente sua capacidade industrial, a sua doutrina de mobilização e os meios de travar uma guerra prolongada, em vez de realizar jogos de guerra que abranjam um único mês de conflito e esperar que a guerra termine depois disso. Como a Guerra do Iraque nos ensinou, a esperança não é um método.
*Alex Vershinin é tenente-coronel da reserva do Exército dos Estados Unidos, mestre em simulação e modelagem virtual pela University of Central Florida.
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente no site do Royal United Services Institute (RUSI).
Notas do tradutor
[i] Publicado no último dia 18 de março no site do vetusto think tank militar da monarquia britânica (fundado pelo Duque de Wellington em 1831), este artigo, originalmente, traz uma única menção ao conflito na Ucrânia, exatamente no título original (que pode ter sido escolhido pelo editor, e não pelo autor). Sua leitura, no entanto, torna evidente que o autor está continuamente se reportando às lições desse conflito, tal como já eram adiantadas por um artigo aqui publicado, de autoria deste tradutor, algumas semanas antes.
Por exemplo, ao reportar-se à batalha de Verdun, pode-se facilmente subsumir que o autor está olhando para Bakhmut; ao descrever a “segunda fase” da guerra de atrito, parece evidente que o autor está olhando para a tomada de Avdyevka pelos russos. Apesar de não se interessar por sinalizar qual complexo de significações teria produzido a concepção atual da arte operacional da OTAN (que este tradutor, naquele artigo citado, havia chamado de “guerra do Ocidente”) – esforço que podemos deixar para os antropólogos –, este artigo, na forma de proposição programática, parece implicitamente chegar às conclusões certas sobre por que o Ocidente encontra-se em larga desvantagem militar no contexto geopolítico atual, insinuando implicitamente que essa desvantagem não será superada tão cedo, o que coloca também sérios problemas para as ambições geopolíticas ocidentais, sustentadas por forças militares, no Indo-Pacífico. Indo mais adiante, no entanto, não se trata, apenas, de arte operacional, mas do que está por trás dela e do que a produziu como ideia. Só aí começaríamos a entrar na zona nebulosa, ainda completamente opaca para o Ocidente do capitalismo tardio.
[ii] No Brasil, essa posição é ocupada pelos cabos, e não pelos sargentos.
[iii] Pode-se dizer que é neste ponto que se encontram agora os esforços russos no conflito ucraniano. A “megafortaleza” a que o autor se reporta equivale, evidentemente, a Avdyevka.
[iv] Emmanuel Todd: a guerra nos remete sempre à economia real, e não à economia virtual (financeira) de um país. Veja-se também o artigo do ex-diplomata britânico Alastair Crook traduzido aqui.
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