Racionalizações encobridoras

Imagem: Dom J
image_pdf

Por ÉRICO ANDRADE & JOÃO PAULO LIMA SILVA E FILHO*

Uma lista de literatas mulheres incomoda muita gente

O que está verdadeiramente em jogo quando discutimos a composição da lista de autoras de literatura obrigatórias para o vestibular da Fuvest nos próximos três anos? Essa foi a pergunta que nos surgiu ao lermos o intrigante documento intitulado “A lista da Fuvest”, postado no site A Terra é Redonda, assinado por um grupo significativo de intelectuais. Este grupo posicionou-se em defesa da pluralidade e da diversidade de critérios para a seleção dos livros de literatura nos vestibulares de 2026 a 2028. Contudo, o texto revela mais sobre seus signatários do que sobre o conteúdo que aparenta defender.

Temos a sensação de que as questões apresentadas, como a suposta ameaça à dignidade da área de literatura, que poderia ser “transformada num saber secundário”, ou ser capturada por uma lógica utilitarista que desvaloriza “a linguagem artística”, são, na verdade, racionalizações encobridoras. Longe de ser um único critério, a escolha exclusiva de autoras mulheres pela Fuvest parece ser uma reação a tantas listas anteriores, predominantemente compostas por homens, sobretudo brancos, ainda que tenha contado com a grande obra de Machado de Assis. Então, por que, de repente, a pluralidade tornou-se um critério prioritário em detrimento de outros critérios?

Na nossa interpretação, há uma sutil camada subjacente aos argumentos apresentados pelos intelectuais, que revela mais do que suas palavras explícitas enunciam. Na verdade, essa discussão parece expor, por meio da defesa aparentemente daquilo que hoje é inquestionável, a saber, da pluralidade (afinal, quem não a defenderia?), a relação íntima entre o mérito acadêmico e os privilégios sociais que o definem. A discussão não é sobre a inclusão, mas sobre quem determina o que deve ser incluído.

Nas ciências sociais, herdamos o conhecimento sobre a relação muitas vezes sutil entre arbítrio e arbitrariedade nas questões culturais. A lição é clara: a seleção de significados que objetivamente define a cultura de um grupo ou classe como um sistema simbólico é arbitrária. Isso se dá porque a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando conectadas por nenhuma relação interna à “natureza das coisas” ou a uma suposta “natureza humana”. Diante dessa constatação, cabe a quem observa os fenômenos humanos compreender como alguns aspectos arbitrários se apresentam como “princípios universais”, disfarçando-se de “mérito” e “legitimidade”.

A discussão em torno do estabelecimento do cânone literário é, na essência, uma questão profundamente política. A escolha de quais obras serão destacadas como canônicas é permeada por critérios que refletem o poder embutido na seleção do que é considerado “universal” ou “mérito”. O que permanece oculto na carta dos intelectuais é o próprio critério que definiu o cânone majoritariamente branco e masculino, excluindo outras identidades e corpos.

Num país marcado pela desigualdade, as escolhas que parecem neutras e acadêmicas revelam-se, na verdade, influenciadas por um sistema que associa mérito a privilégio. Ao elegerem certas obras como canônicas, os filósofos e intelectuais acabam legitimando não apenas as obras em si, mas também o próprio sistema de escolha que as sustenta.

Essa dissimulação é crucial: esconde a métrica exata que justifica por que outros corpos e identidades foram historicamente excluídos daquele corpus canônico. A aparente neutralidade na defesa do mérito camufla, na realidade, um regime político que perpetua a exclusão e legitima a manutenção de um cânone cultural enviesado.

*Érico Andrade é psicanalista e professor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

*João Paulo Lima Silva e Filho, psicanalista, é doutor em sociologia pela UFPE.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES