Por CELSO FREDERICO*
As modificações no pensamento de Williams se explicam pela evolução da sociedade capitalista e, também, configuram respostas às críticas sofridas pelos seus primeiros livros
Base e superestrutura
Professor de literatura num ambiente dominado pelas interpretações idealistas, Raymond Williams recorreu ao marxismo para levar adiante seus estudos. No livro Cultura e materialismo, lembrou que na década de 30 havia um forte debate entre os literatos da revista Scrutiny, liderados por F. R. Leavis e pelo marxismo – e nesse debate o marxismo foi derrotado.
A razão da derrota estaria, segundo sua interpretação, no apego à “fórmula herdada de base e superestrutura”,[i] que produzia análises reducionistas e superficiais. Por isso, Raymond Williams decidiu “deixar de lado” a tradição ortodoxa divulgada pelo marxismo russo (Plekhánov) e inglês (Christopher Caudwell), e buscar caminhos novos: “Se não estamos numa igreja, não nos preocupamos com as heresias”,[ii] disse Raymond Williams afirmando sua liberdade de pensamento e a necessidade de buscar alternativas ao marxismo tradicional.
O eixo do redirecionamento teórico é a contestação da imagem estática do modo de produção como um edifício com dois andares, base e superestrutura, o que condenaria a última à passividade, a ser um mero reflexo do rígido determinismo econômico. Essa estática imagem espacial deveria ser substituída “pela ideia mais ativa de um campo de forças mutuamente determinantes, embora desiguais”.[iii] O redirecionamento teórico de Raymond Williams foi um longo parto, como ele mesmo diz: “Levei trinta anos, em um processo bastante complexo, para deslocar-me daquela teoria marxista herdada” [iv], até formular uma teoria própria que ele batizou de “materialismo cultural”.
As modificações no pensamento de Raymond Williams não decorreram de fatores internos, não foram somente esforços de aperfeiçoamento. Elas se explicam pela evolução da sociedade capitalista e, também, configuram respostas às críticas sofridas pelos seus primeiros livros.[v] Desde a publicação de Cultura e sociedade e A longa revolução o encanto que a crítica literária conservadora de Leavis exercia sobre Raymond Williams foi contestado por autores marxistas como Terry Eagleton, que o considerava então como “um leavista de esquerda”,[vi] ou Edward Thompson, que criticou o seu “pluralismo sociológico” negador da determinação material.[vii]
A ideia de cultura como “todo um modo de vida” defendida por Raymond Williams seria assim, uma abstração, uma generalização – quase um sinônimo de sociedade, como ele mesmo acabou admitindo. A referência ao povo, e não à classe operária, foi considerada como expressão de um indisfarçável populismo. De modo semelhante, o apego à sociologia em detrimento do marxismo teria acarretado a substituição da totalidade e da determinação econômica por uma fragmentação da sociedade em esferas separadas, no estilo da sociologia weberiana, fragmentação em que tudo parece estar colonizado pela preponderância da cultura.
Duas décadas depois, num debate com Edward Said, Raymond Williams lembrou que o conceito de cultura comum foi por ele desenvolvido contra a noção de cultura dominante que identificava cultura com alta cultura, reduzindo assim seu alcance e justificando o privilégio de classe. O conceito, afirmou, pertencia a “uma fase do argumento”, mas, desde aquele momento “tenho escrito principalmente sobre divisões e problemas dentro da cultura; fatos que evitam que concebamos a cultura comum como algo que exista agora”.[viii] O socialista Williams, aqui, dá a entender que a cultura comum é um projeto e não uma realidade dada, o que de certa forma guarda paralelismos com a ideia gramsciana de cultura nacional-popular.
As muitas deficiências das primeiras obras são facilmente visíveis. Em A longa revolução, por exemplo, Williams concentra-se nas transformações radicais que formataram a modernidade. Ao lado da revolução industrial ocorreram as revoluções democrática (extensão do voto) e cultural (extensão da educação e dos meios massivos de comunicação). Essas revoluções estão interligadas, mas reproduzem a separação entre as esferas econômicas, políticas e culturais, separação que guarda parentesco com as sociologias de Max Weber e Pierre Bourdieu. A fragmentação do social efetiva-se com a compreensão do capitalismo como um “sistema de manutenção” (econômico), ao lado do “sistema de decisão” (político), “sistema de comunicação” (cultural) e o “sistema de reprodução e criação” (familiar). Nessa perspectiva, a verdade sobre uma sociedade deve buscar-se nas relações “excepcionalmente complexas” entre esses subsistemas,[ix] e não nas relações sociais de produção, como queria Marx.
Em Marx, como se sabe, não existe a fragmentação da sociedade em subsistemas, pois a totalização faz-se através da categoria modo de produção capitalista e de suas formas históricas de extração de mais-valia (cooperação simples, manufatura, grande indústria). Por isso, até onde sei, Marx nunca usou a expressão “Revolução Industrial” que orienta a análise das primeiras obras de Williams. Tempos depois, em O campo e a cidade, Raymond Williams reconheceu o caráter integrado desses dois espaços e, desse modo, a Revolução Industrial perde a centralidade e deixa de ser vista como propulsora do desenvolvimento histórico. O capitalismo, lembrou então, nasceu no campo sob a forma primeira de capitalismo agrário.[x]
Posteriormente, Raymond Williams procurou também retificar a antiga abordagem sobre determinação econômica e cultura, observando: “tive a tendência a contrapor a ideia de processo cultural, que me parecia tão extraordinariamente preterida, ao que tomei como um processo econômico e político previamente enfatizado e adequadamente exposto. O resultado foi que acabei por abstrair minha área de ênfase de todo o processo histórico. No esforço por estabelecer a produção cultural como uma atividade primária, penso que às vezes passei a impressão (…) de que eu estava negando totalmente as determinações, embora meus estudos empíricos dificilmente sugiram isso” [xi]. Pode-se observar aqui a consciência do autor perante o descompasso entre os seus refinados estudos culturais e literários e as limitações teóricas de suas primeiras obras.
A cultura como “atividade primária” foi o mote mais criticado pelos marxistas e o mais divulgado pelos seus admiradores. Pressentindo talvez os perigos inerentes à sua concepção de cultura, Williams desabafou: “quantas vezes eu desejei não ter jamais ouvido essa palavra maldita”. [xii]
Marxismo e literatura
Marxismo e literatura, publicado originalmente em 1971, marca o momento decisivo da evolução de Raymond Williams. A partir daí, o seu pensamento, até então restrito aos referenciais britânicos, se internacionaliza. O encontro com o marxismo renovado de Gramsci, Lukács, Adorno, Benjamin, Brecht e Goldmann ampliou os seus horizontes teóricos, assim como as referências a Sartre. As reflexões sobre cultura são repostas num patamar mais elevado, refazendo e refinando o pensamento de Raymond Williams.
A superação da metáfora base-superestrutura, pedra angular de sua démarche, levou-o a buscar uma “abordagem alternativa” através da teoria gramsciana da hegemonia, que configuraria uma nova visão da totalidade, incluindo as disputas no interior da vida social e as relações de domínio. Há, aqui, entretanto, uma visível diferença entre os dois autores que se inicia pelo fato de Gramsci partir da metáfora arquitetônica que Raymond Williams rejeita. É na superestrutura, dizia Gramsci repetindo Marx, que os homens tomam consciência das contradições e atuam para modificá-las.
Não há determinismo, afirmava Gramsci, mas sim o empenho de mostrar as brechas para a iniciativa política: “A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infra-estrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, ou deve ser combatida, praticamente, com o testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas”[xiii]. Recorrendo àquelas obras de Marx, Gramsci aponta as diferenças entre um plano categorial abstrato, o do Prefácio à Contribuição à crítica da economia política, e o estudo de momentos históricos concretos. O conceito de hegemonia, portanto, caminha juntamente com a análise das “relações de força” em cada conjuntura. O “historicismo absoluto” de Gramsci põe assim em movimento a aparente rigidez da metáfora arquitetônica através do conceito de “bloco histórico” em que “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma”.
O conceito político de hegemonia em Gramsci (“direção mais domínio”) tem como cenário a sociedade civil. Nessa esfera, os subalternos podem “sair da fase econômico-corporativa para elevar-se à fase de hegemonia político-intelectual na sociedade civil e tornar-se dominante na sociedade política” [xiv]. Tal conceito, diz Gramsci, é tributário de Lênin, sendo considerado como a “contribuição teórica máxima” do revolucionário russo à filosofia da práxis.[xv]
Raymond Williams, distanciando-se dessa abordagem política, transformou a hegemonia num “conceito em evolução”, voltado preferencialmente para a esfera cultural. A diferença entre os dois autores é evidente. A tônica subjetiva continua presente em Raymond Williams: hegemonia, para ele, “É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores”.[xvi] Em Gramsci, como vimos, é um conceito voltado à questão do poder, à luta dos subalternos para “tornar-se Estado”.
Desenvolvendo o “conceito em evolução de hegemonia”, Raymond Williams afirma que uma classe dominante nunca consegue impor sua dominação cultural a toda a sociedade. A partir dessa afirmação, RaymondWilliams desenvolveu análises detalhadas das três formas culturais da hegemonia: a dominante, a residual e a emergente. A segunda, constituída no passado, permanece ativa, escapando dos valores dominantes e postando-se como alternativa ou oposição à cultura dominante. A terceira pode assumir também a condição de alternativa ou, então, de clara oposição aos elementos dominantes. Esse esforço de discernimento é fiel ao pensamento de Gramsci, o qual afirma que “uma formação cultural nunca é homogênea”. Aplicada à análise cultural, as tensões entre o dominante e o emergente abriram caminhos produtivos e inovadores para a crítica literária.[xvii]
Ao tratar da hegemonia, Gramsci, é bom lembrar, nunca se referiu à “contra-hegemonia”, expressão de cunho dualista. A hegemonia gramsciana era vista como disputa pela direção política e cultural da sociedade, o “tornar-se Estado” dos subalternos, e não como luta entre duas concepções culturais separadas. Portanto, há uma diferença entre os planos de análise dos dois autores. Raymond Williams refere-se ao conceito de hegemonia, em Marxismo e literatura, basicamente para criticar a metáfora base/superestrutura, e não para tratar a questão do poder. Em Gramsci, que parte justamente dessa metáfora, a reflexão sobre a centralidade do poder obrigou-o a acompanhar as sucessivas mudanças nas “relações de força” em cada conjuntura. Por esta razão, o conceito de hegemonia vai ganhando sucessivas modificações nos Cadernos do cárcere ditadas pelo “ritmo do pensamento”, o que explica a inexistência de uma conceituação conclusiva de uma expressão que permanece subordinada às mutáveis “relações de força”.
Raymond Williams, para usarmos uma expressão cara a Gramsci, fez uma “tradução” do conceito de hegemonia para construir a sua própria teoria – o materialismo cultural, distante da “filosofia da práxis” do revolucionário sardo. Involuntariamente, forneceu uma definição simplificada de hegemonia que surpreendentemente acabou obtendo enorme influência na antropologia cultural anglo-americana. A versão simplificada, segundo a antropóloga americana Kate Crehan, se deve ao fato de Raymond Williams ter se dispensado da “fadiga de enfrentar seriamente a complexidade dos Cadernos do cárcere”, lembrando que ele não cita nenhuma passagem do livro. “O sistema vivido de significados e valores” tornou-se assim uma definição “light” e idealista apropriada por uma antropologia que consagrou a versão de um Gramsci “desprovido de seu intenso interesse pela materialidade do poder”.[xviii]
Observe-se ainda que, além da política, Gramsci relacionava à hegemonia, a cultura e a literatura. Raymond Williams, escrevendo sobre os mesmos assuntos, perdeu a oportunidade de comparar o seu projeto com o de Gramsci.
A recusa da metáfora base-superestrutura orientou também a incursão de Raymond Williams nas questões literárias, momento em que critica as teorias que relacionam de forma dualista arte e sociedade, entendendo a segunda como epifenômeno. A longa revolução já antecipava as posições que Williams posteriormente desenvolveu. Naquele livro, lançou uma pergunta “convencional” e procurou respondê-la: “qual é a relação desta arte com esta sociedade”? Mas a “sociedade”, nesta pergunta, é um todo enganoso. Se a arte é parte da sociedade, não há à margem dela uma totalidade sólida a qual a forma de nossa pergunta conceda prioridade. A arte está ali, como uma atividade, como a produção, o comércio, a política, a formação de famílias. Para estudar com propriedade as relações, devemos estudá-las dinamicamente, vendo todas as atividades como formas particulares e contemporâneas da energia humana”. Sendo assim, trata-se de “estudar todas essas atividades e suas inter-relações sem outorgar prioridade a nenhuma”.[xix]
Esse direcionamento reaparece na crítica que Raymond Williams fez em Marxismo e literatura da teoria do reflexo de Lukács, da teoria adorniana da “mediação” e das “imagens dialéticas”, de Benjamim – as duas últimas consideradas, sem mais, formas mais elaboradas da teoria do reflexo.
No “debate sobre o expressionismo” nos anos 1930, Lukács defendeu uma concepção de reflexo próxima do materialismo mecanicista. Naqueles textos voltados à polêmica, Lukács partiu, num registro epistemológico, da oposição entre materialismo e idealismo, tal como exposta por Engels e pelo Lênin de Materialismo e empirocriticismo. Exemplo claro pode ser visto no ensaio “Arte e verdade objetiva”,[xx] cujo título fala por si: arte (=reflexo); verdade objetiva (verdade posta fora do sujeito).
Mas, mesmo nesse texto de cariz epistemológico, a arte é concebida como uma forma específica de reflexo, e nela a consciência não permanece passiva pois há um lugar de destaque para a fantasia. O reflexo artístico não duplica a aparência imediata, já que produz uma concentração, uma exasperação dos traços mais típicos e significativos. Esse encaminhamento dado à especificidade da arte marca uma clara repulsa em relação à aplicação da teoria mecânica do reflexo feita tanto pelo positivismo quanto pelo “realismo socialista”, consagrado como a estética oficial em 1934 (mesmo ano da publicação do ensaio de Lukács).
Tais diferenças anunciam os desdobramentos da futura Estética. O enfoque epistemológico foi progressivamente sendo substituído na obra madura de Lukács por uma interpretação ontológica que incluía a arte no processo civilizatório. O dualismo sujeito-objeto ganhou assim uma mediação material: o trabalho, a atividade humana interposta como entre matéria e consciência. No trabalho, forma inaugural da práxis, já está pressuposta a prioridade do ser sobre a consciência, da natureza sobre o homem. A consciência, contudo, não permanece passiva graças à intervenção ativa dos homens e da presença “astuciosa” dos instrumentos de trabalho.
Negando a passividade, a consciência se antecipa em sua ação teleológica, tal como Hegel expôs em seus textos juvenis do período de Iena, ou como Marx escreveu em O capital, ao tomar como exemplo a diferença entre a atividade mecânica da abelha e o ato teleológico do trabalho do arquiteto. Partindo do trabalho, Lukács desenvolveu na Estética as duas formas principais de reflexo: o científico e o artístico. O caráter altamente mediado do reflexo artístico levou Lukács progressivamente a preferir a palavra mimese para referir-se à especificidade da arte.
Raymond Williams não releva as mutações do pensamento de Lukács, condenando previamente qualquer referência à teoria do reflexo. Curiosamente, no sétimo capítulo de A longa revolução (“O realismo e a novela contemporânea”), Williams esteve muito próximo das concepções lukacsianas a ponto de ter sido considerado o “Lukács britânico”.[xxi] Depois, os caminhos se separaram. No que diz respeito à teoria estética lukacsiana, Raymond Williams assinalou as divergências indiretamente quando resenhou três livros sobre aquele autor [xxii]. Lembrou, então, que a relação indivíduo-classe social, que orientou História e consciência de classe, foi substituída nas obras maduras pela dialética indivíduo-espécie.
Algumas citações do livro de Agnes Heller, Lukács revalued, são reproduzidas para esclarecer o leitor sobre o significado lukacsiano de mimese (imitação e ethos), expressão que caracteriza a especificidade do reflexo artístico: “uma obra de arte é mimética se ela capta a espécie no individual e representa deste modo a esfera do assim chamado “particular” (das Besondere). (…) Através da intensificação da subjetividade, o artista atinge a objetividade; através de sua experiência extremamente profunda e sensitiva do tempo ele atinge o nível da espécie. Essa experiência do tempo (…) constitui a eternidade do temporal, a validade universal do que emergiu no aqui e agora históricos (…). É no “particular” que a experiência, ascendendo ao nível da espécie, toma forma”.
Raymond Williams assinala a semelhança dessa conceituação com o idealismo do século XIX, mas ressalta o elemento novo: a ligação com o processo histórico e “a culminação desse processo na libertação humana geral que as obras de arte já prefiguram”. Dessa conceituação, contudo, Williams “deseja manter distância”, pois a ele não interessa compor uma teoria da arte, mas “um meio para compreender as diversas produções sociais e materiais (…) de obras às quais as categorias da arte, conectadas, mas também em mudança, têm sido historicamente atadas. Eu chamo esta posição de materialismo cultural, e a vejo como uma resposta diametricamente oposta às questões que Lukács e outros marxistas colocaram”.
Quanto a Adorno, a identificação mediação=reflexo soa estranha, considerando a crítica radical desse autor à teoria do reflexo [xxiii] e, por complemento, ao realismo.[xxiv] Raymond Williams cita uma passagem em que Adorno afirma que a mediação não é um meio entre os extremos, mas é algo que ocorre por meio dos extremos e nos próprios extremos. Essa passagem reproduz a tese de Hegel, segundo a qual tudo é mediado. Adorno exemplificou esse raciocínio em sua polêmica com Paul Lazarsfeld, quando, estudando a recepção de música no rádio, afirmou que ela não é imediata, pois tanto a música quanto o rádio e o ouvinte estão submetidos às diversas mediações [xxv]. Seja como for, mediação não é reflexo, não é um artifício lógico para reatar as relações entre arte e sociedade, base e superestrutura, processo social material e linguagem.
Quanto à pretensão do realismo de refletir fielmente o real, ela é vista, segundo Adorno, como uma impossibilidade e uma tentativa de participação naquilo que deveria ser criticado – a realidade reificada. A distância estética proposta por ele é condição básica para a arte não se identificar com a realidade degradada e, assim, afirmar seu caráter utópico, sua recusa em reconciliar-se com o real.
Raymond Williams, portanto, não fez justiça a esses dois grandes pensadores, descartados nas poucas linhas dedicadas a eles em Marxismo e literatura. Neste livro, há uma crítica sofisticada às formas mecânicas assumidas pela teoria do reflexo: os modelos de estímulo e resposta, o “segundo sistema de sinais” de Pavlov, o “sistema de signos” de Voloshinov etc. Lukács e Adorno, contudo, não mereceram uma crítica mais detalhada à altura de suas inestimáveis contribuições à teoria estética.
Já Lucien Goldmann foi objeto de um longo e respeitoso artigo. Williams encontrou planos paralelos entre o seu pensamento e o de Goldmann. O conceito de estrutura, unindo fatos sociais e criação cultural, desloca a atenção tradicionalmente conferida ao autor individual visto em suas relações de exterioridade com a sociedade. O sujeito da criação cultural em Goldmann é um “sujeito-transindividual”, e com essa formulação unificada procurou pôr fim à dualidade autor-sociedade. Assim, a ênfase se desloca para a correspondência entre as estruturas mentais dos grupos sociais nos quais o autor está inserido e dos quais se torna porta-voz e as estruturas da sociedade. Williams percebeu com simpatia a proximidade das “homologias estruturais” goldmannianas com a sua própria concepção de “estruturas de sentimento”. Mas Goldmann, sob a influência do estruturalismo, permaneceu num plano estático e a-histórico restrito às análises sincrônicas dos fenômenos culturais, análises “de época”.[xxvi]
Sobre as relações com Lukács e Adorno, cabe lembrar que as diferenças existentes decorrem dos projetos teóricos distintos perseguidos por cada um desses autores. Tanto Lukács como Adorno procuraram, cada um a seu modo, desenvolver uma teoria estética – sistemática no primeiro e assistemática no segundo, mas sempre em diálogo com o marxismo (em Lukács a retomada das relações indivíduo-espécie dos Manuscritos econômico filosóficos; em Adorno, uma ampliação do fetichismo mercantil e da lei do valor a partir de O capital).
Williams seguiu outro caminho. No verbete Estética, do livro Palavras-chave, assinalou as modificações históricas ocorridas no significado da palavra, para concluir: “O que é evidente nessa história é que estético, com suas referências especializadas à arte, à aparência visual e a uma categoria do que é “formoso” ou “belo” é uma formação-chave em um grupo de significados que enfatizaram e ao mesmo tempo isolaram a atividade sensorial subjetiva como base da arte e da beleza enquanto distintas, por exemplo, das interpretações sociais ou culturais. É um elemento da cindida consciência moderna de arte e de sociedade”.[xxvii].
Para superar essa cisão que condenava a arte a permanecer uma esfera espiritual desgarrada do mundo real, Raymond Williams distanciou-se das teorias estéticas inseridas na “tradição marxista” para desenvolver uma sociologia da cultura voltada às condições de possibilidade das diversas “práticas significativas” (literatura, teatro, cultura de massa, televisão, jornalismo, moda, publicidade).
Desse modo, abriu sendas novas para os estudos culturais. Observo, apenas, o despropósito de afirmar que em Lukács e Adorno a arte permanecia uma esfera à parte, alheia aos embates sociais. O desejo de exorcizar o fantasma de Leavis talvez explique a descabida inclusão de ambos todos no idealismo.
*Celso Frederico é professor aposentado da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula). [https://amzn.to/3rR8n82]
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Notas
[i]. WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo, cit., p. 26.
[ii]. WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo (São Paulo: Unesp, 2011), p. 29
[iii]. Idem, p. 28.
[iv]. Idem, 331.
[v]. Ver a propósito o esclarecedor estudo de Ugo Urbano Casares Rivetti, A longa jornada: Raymond Williams, a política e o socialismo (USP: 2021).
[vi] EAGLETON, Terry. “Introduction”, in Raymond Williams. Critical Perspectives” (Cambridge: Polity Press, 1989), p. 5.
[vii] THOMPSON, E. P. “The Long Revolution” (parte II), in New Left Review, cit.
[viii]. WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo (São Paulo, Unesp, 2011), p. 235.
[ix] . WILLIAMS, Raymond. La larga revolución, cit., p. 118.
[x]. Cf. WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).
[xi]. WILLIAMS, Raymond. A política e as letras, cit., p.133.
[xii]. Idem, p. 149.
[xiii]. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 1 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999), p. 238.
[xiv]. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere, I (Torino: Einaudi, 1975), p. 460.
[xv]. Idem, p. 320.
[xvi]. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura (Rio de Janeiro: Zahar, 1979), p. 113.
[xvii]. Cf. CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais, cit., pp. 128-9; Para ler Raymond Williams, cit., pp. 181-277.
[xviii]. CREHAN, Kate. Gramsci, cultura e antropologia (Lecce: Argo, 2010), p. 175.
[xix]. WILLIAMS, Raymond. La larga revolución, cit., pp. 54-5.
[xx]. LUKÁCS, Georg. “Arte y verdade objetiva”, in Problemas del realismo (México: Fondo de Cultura Economica, 1966).
[xxi]. PINKNEY, Tony. “Raymond Williams and the “Two faces of modernism””, in EAGLETON, Terry (org.). Raymond Williams. Critical perspectives (Great Britain: Polity Press, 1989), p. 12.
[xxii]. WILLIAMS, Raymond. “A man without frustration”, in London Review of Books, vol. 6, número 9, maio de 1984.
[xxiii]. Cf. ADORNO, Theodor. Dialética negativa (Rio de Janeiro: Zahar, 2009).
[xxiv].Cf. ADORNO, Theodor. “Reconciliação extorquida”, in MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Debate sobre o expressionismo (São Paulo: Unesp, 2011, segunda edição) e “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Notas de literatura I (Duas Cidades/Editora 34: São Paulo, 2003). A crítica ao realismo reaparece em diversos textos, culminando na Teoria Estética (Lisboa: 1982).
[xxv] . Desenvolvi os termos da polêmica entre Adorno e Lazarsfeld em “Recepção: as divergências epistemológicas entre Adorno e Lazarsfeld”, in Ensaios sobre marxismo e cultura (Rio de Janeiro: Mórula, 2016). Ver também, CARONE, Iray. Adorno em Nova York (São Paulo: Alameda, 2019).
[xxvi]. WILLIAMS, Raymond. “Literatura e sociologia: em memória de Lucien Goldmann”, in Cultura e materialismo, cit.
[xxvii] . WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave, cit., pp. 156-7.
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