Por ELÍSIO ESTANQUE, AGNALDO DE SOUSA BARBOSA & FABRÍCIO MACIEL*
Introdução dos organizadores ao livro recém-lançado
1.
Com a presente obra procuramos apresentar uma reflexão abrangente sobre as atuais dinâmicas de transformação do capitalismo contemporâneo. A diversidade de abordagens recobre um amplo conjunto de temas cujo ponto de convergência gira em torno das desigualdades sociais em suas diferentes categorias, incluindo a classe social, a questão racial, identidades de gênero e orientação sexual, etc.
Os impactos do recente ciclo de crises, financeira, a Pandemia do Covid-19, a política internacional e a fragilização dos regimes democráticos, desafiam-nos a aprofundar o debate sociológico, a crítica à globalização e as atuais tendências do mundo laboral e da sociedade nos mais diversos continentes. Merecem especial destaque os efeitos de todas estas transformações – econômicas, sociais, culturais e políticas – na reorganização da estrutura de classes e modalidades de ação coletiva.
Se as velhas controvérsias sobre as classes sociais e a organização produtiva inspiraram os processos de institucionalização das ciências sociais e da sociologia na sua primeira fase, cremos que hoje, passados cerca de duzentos anos desse ciclo de “grandes transformações”, é pertinente convocar um conjunto de acadêmicos de várias origens para apresentarem seus estudos e reflexões sobre as atuais tendências de mudança no mundo global do século XXI.
Considerando desde logo o berço do capitalismo moderno, a Europa Ocidental, é bom lembrar que, lado a lado com as inúmeras convulsões sociais, guerras e conflitos que marcaram as sociedades industriais durante mais de duzentos anos, do hemisfério Norte e do Sul Global, assistiu-se também a significativos desenvolvimentos e progressos sociais, por exemplo, em matérias como a revolução tecnológica e digital, cujas repercussões incidem em todo o mundo. Porém, sendo o mundo tão desigual e assimétrico, as linhas de mudança desenham-se sob figurinos, sentidos e ritmos condicionados pelas assimetrias previamente estabelecidas.
Mais recentemente, ao longo do último meio século, o surgimento da globalização neoliberal conduziu a uma crescente desregulação das economias com a consequente estagnação (ou recuo) das políticas sociais e o acentuar constante das desigualdades sociais, mesmo nos países da União Europeia, onde o Estado-providência mais avançou na segunda metade do século XX.
Mais recentemente, o contexto da pandemia do Covid-19 contribuiu para exponenciar a aceleração do mundo e catalisar novas ameaças: por um lado, alertou-nos para os excessos da globalização neoliberal, para os riscos ambientais, a hegemonia do capital financeiro sobre a economia produtiva, o desgaste das democracias e o crescimento do populismo de extrema direita; por outro lado, tal cenário coloca-nos agora perante uma encruzilhada de desafios, com a transição digital e a desestruturação do anterior modelo laboral a exigirem novas respostas, onde a economia circular, o desenvolvimento sustentável e a reindustrialização ganham um novo significado. Importa saber, perante o referido cenário global, que novas linhas de mudança, e também qual o sentido da nova divisão internacional do trabalho e como se estruturam as novas barreiras de classe.
Uma das grandes tendências que vêm suscitando intensos debates nas últimas décadas merece neste livro especial atenção. Ela vincula-se às crescentes assimetrias globais e a intensificação de desequilíbrio de poder herdado do passado. E esse passado, que está na gênese do capitalismo ocidental moderno, liga-se historicamente com a questão colonial.
Muito embora esta obra não seja especificamente sobre esse tema, parece-nos óbvia, perante o momento histórico que atravessa hoje o capitalismo global, a importância dessa matéria, desde logo pelas implicações que tem com a atual problemática das desigualdades sociais, necessariamente colocando em jogo novas dinâmicas e complexidades em suas diferentes modalidades, desde o problema da classe às novas divisões identitárias que estão desenhando novos movimentos e inspirando novos debates acadêmicos.
2.
Nesse contexto a discussão em torno das desigualdades exige abordagens interseccionais onde a variável “classe” se conjuga com outras tais como o “gênero” e a “raça”. Por essa ordem de razões os debates centrados nas relações de trabalho, suas transformações e desafios, sugerem um novo diálogo com as desigualdades raciais e de gênero e os movimentos sociais subjacentes, como é o caso dos movimentos negro e feminista e suas contaminações recíprocas.
Embora o campo econômico e o sistema produtivo persistam como eixo central do crescimento econômico e da acumulação capitalista, as relações sociais de produção perderam centralidade – para boa parte da teoria social – na definição das divisões classistas e sobretudo da conflitualidade na era do neoliberalismo. Paralelamente, a “classe” como principal sujeito da mudança sociopolítica cedeu espaço diante da força crescente da chamada “política identitária”. Nesse sentido, as questões do pós-colonialismo, da violência e do preconceito racial, dos movimentos feministas, bem como das lutas LGBTQIA+, têm colocado em pauta novos questionamentos, seja dialogando com a classe, seja situando-se à margem da crítica sistêmica de inspiração marxista.
Por outro lado, as temáticas ligadas ao mundo do trabalho e da “crítica social” também se deslocaram para uma dimensão mais culturalista e estética (no sentido da “crítica estética” como apontaram Boltanski & Chiapello). Com efeito, a classe e as “relações sociais de produção” perderam capacidade explicativa e força política, enquanto o neoliberalismo global evidenciou um poder crescente do capital e um arrefecimento generalizado das classes trabalhadoras e do movimento sindical internacional. Mais recentemente, as novas divisões identitárias inspiraram novas correntes teóricas com crescente impacto nos debates acadêmicos e na sociedade.
É certo que a questão racial não é um tema novo na sociologia (Samir Amin, Willian E. Du Bois, Frantz Fanon, Wallerstein, Loic Wacquant, Achille Mbembe, dentre muitos outros, já tematizaram o problema). No contexto brasileiro, o mito do “racismo cordial” ou da “democracia racial” à la Gilberto Freyre foi desde cedo objeto de questionamento nomeadamente sob influência de Florestan Fernandes (seguido por Otávio Ianni, dentre outros). Mas até mesmo em Portugal esse estereóptipo fez escola desde os tempos do salazarismo em pleno período colonial – e isto apesar da proliferação de piadas racistas após o fim dessa guerra – embora os casos e os debates pós-coloniais mais recentes tenham mostrado que o racismo estrutural permanece, lá como cá.
No Brasil, o discurso populista-nacionalista, na primeira metade do século XX, e a narrativa da primazia da classe que vigorou a partir do início da década de 1960 (Guimarães, 2002), sob influência da aproximação cultural entre o Brasil e a África e do crescimento do movimento negro, abrindo caminho, por exemplo em regiões como a Bahia, levaram a uma maior expressividade da “cultura afro-brasileira”, que ajudou a confrontar o mito da miscigenação ou da cordialidade freyriana.
A ideia de uma possível diluição do problema racial perante o aparente aumento dos antagonismos de classe ganhou expressão acompanhando o discurso anti-fascista (de meados do século passado) onde figuras como Bastide (1944) inspirado em Jorge Amado, pareciam olhar o curso da história no Brasil como uma evolução da matriz identitária negra, fundada no espiritualismo de influência africana, para uma confluência entre a “negritude” e o proletariado branco. Aos olhos de Jorge Amado, seguido por Bastide, o sindicalismo parecia ganhar influência junto da população, perante o aumento da luta de classes e a expectável “união dos proletários”.
Porém, tornou-se evidente que, ao lado de um alegado Adeus ao Proletariado, segundo a concepção de André Gorz (1980), a classe trabalhadora, ao contrário de muitos diagnósticos, se fragmentou e enfraqueceu cada vez mais como sujeito político, parecendo render-se ao poder do capital sob a batuta da globalização neoliberal das últimas décadas.
Na verdade, as profundas transformações ocorridas nas últimas décadas alteraram radicalmente o mundo laboral, marcado cada vez mais por infinitas divisões e vulnerabilidades, perante um mercantilismo agressivo, inventando cadeias de valor com base na multiplicação de capitais, nos títulos, nas ações das bolsas de valores e na especulação financeira. O capital a gerar capital tornou-se mais aliciante e auspicioso do que os projetos de investimento produtivo, enquanto a inovação no campo da informática e do digital ajudavam a suprimir milhões de empregos, substituídos pelos novos equipamentos digitais, automatismos e plataformas geridas por algoritmos e Big Data.
Daí a proliferação de novas desigualdades sociais, novas subclasses, a criação de fraturas abissais e formas de dominação, entre incluídos e excluídos, ricos e pobres, homens e mulheres, o Norte e o Sul Global, brancos e negros, etc. Em suma, as atuais divisões e desigualdades do mundo não substituem as antigas, antes se juntam a elas acrescentando novas assimetrias e aumentando a complexidade, a instabilidade e a aceleração da modernidade tardia em que vivemos (Rosa, 2022). Para além das velhas clivagens entre centro e periferia do sistema mundial, as oposições entre o Norte e o chamado Sul Global resultam de uma crescente conscientização da natureza complexa e do obscurecimento de formas profundas de desigualdade e preconceito que as ideologias dominantes esconderam durante séculos.
A dominação colonial e o pós-colonialismo impuseram todo um conjunto de narrativas que ajudaram a “naturalizar”, esconder e calar as vítimas maiores de um sistema iníquo e desumano em muitas das suas vertentes. A dominação eurocêntrica encontrou legitimação tanto na ação de controle como na própria imposição de uma linguagem que ajudou a naturalizar a subalternidade do colonizado (Quijano, 2005; Mignolo, 2020; Robinson, 2023). Assim, o patriarcado ancestral conjugou-se com os regimes escravagistas para impor de forma brutal uma opressão e domínio que transportou, e transporta, ao longo dos séculos variadas formas de violência e silenciamento, de que as divisões de raça e gênero são exemplos, criando ao mesmo tempo um “véu” de obscurecimento e negação da condição negra (Du Bois, 2021 [1903]).
Esse cancelamento do ser, essa inferiorização dos corpos negros de homens e mulheres – num movimento de disseminação ideológica que inculcou em suas mentes a naturalização da superioridade de uma raça sobre outra – levou as vítimas da branquitude colonial a sonhar tornarem-se brancos, como nos mostrou Frantz Fanon (2008 [1952]) através da fala dos seus doentes. Mas essa colonização da mente negra não impediu que crescessem os sentimentos e ressentimentos acumulados durante séculos, os quais persistiram após o fim oficial do colonialismo nas Américas e no Sul Global.
3.
Perante a emergência dos debates mais recentes, importa questionar os velhos cânones e divisões teóricas rígidas dentro das ciências sociais do Ocidente, em convergência com propostas de Michael Burawoy (2022), dentre outros. Há que se buscar inspiração nestas novas linguagens, mas sem abandonar o legado teórico dos antigos clássicos, ou seja, recentrar o diálogo entre autores, pôr as visões críticas do Norte a conversar com porta-vozes dos setores oprimidos do hemisfério sul, recuperando nas epistemologias do Sul o contraponto para a hegemonia eurocêntrica (Santos, 2017).
Como sabemos, as desigualdades e a violência de base racial foram historicamente incorporadas na própria lógica capitalista, em especial em países de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil. O poder capitalista que opera em escala global, como bem argumenta Klaus Dörre (2022), exerce uma expropriação dos subalternos praticamente sem resistência. As velhas lutas do operariado industrial recuaram e foram substituídas por um sindicalismo de base corporativa nos setores ainda estáveis do mercado de trabalho.
Paralelamente, o neoliberalismo foi promovendo subclasses abaixo do limiar da respeitabilidade social, perante a multiplicação e o desdobramento de novos e mais frágeis vínculos laborais, com as subcontratações, o tráfico ilegal de mão de obra, formas flexíveis de trabalho temporário, hoje em dia vinculadas à expansão do campo digital, dos “platform workers”, da uberização, etc. O trabalho barato e por vezes escravizado – ainda que em muitos casos com qualificações escolares avançadas, como ocorre na Europa, mas também cada vez mais na América Latina – parece, no entanto, ser aceito sem resposta pelos trabalhadores e grupos sociais guetizados e esquecidos pelo sistema.
A nova “classe-que-vive-do-trabalho”, da qual fala Ricardo Antunes (2018) é alheia a quaisquer mecanismos de proteção ou sequer a alguma condição humanamente digna (Huws et al., 2017; Maciel, 2021); mas ainda assim parece impotente para voltar a agir enquanto ator coletivo (como nos tempos estudados por Karl Marx e Friedrich Engels), chame-se ele proletariado ou “precariado” (Standing, 2013).
Porventura, estes segmentos precários e dispersos, se se deixarem influenciar por outros movimentos e grupos identitários (de tipo racial, étnicos, ambientais, de gênero ou orientação sexual), hoje em dia em muitos contextos mais vibrantes do que os sindicatos, poderão vir a instigar futuras ondas de rebelião de tipo polanyiano ou thompsoniano (Thompson, 1988), mas não é seguro que isso aconteça. E se acontecer poderão abrir as portas, não do socialismo, mas talvez do retorno ao autoritarismo nacionalista e populista (Estanque, 2015).
Na verdade, essas camadas sociais são constituídas por uma miríade quase ilimitada de condições precárias e indignas, como formas subcontratuais, informalidades, vítimas de tráfico de mão-de-obra, trabalho doméstico, nomadismo digital, etc., sem esquecer ainda o pequeno empreendedor, o microempresário, ele próprio tantas vezes vivendo no limite da subsistência e da dignidade (Barbosa, 2012), o homem do quiosque que trabalha intensamente com a sua família para poder aguentar o seu pequeno negócio.
4.
Os organizadores deste livro inserem-se numa rede de relações acadêmicas internacionais, onde integraram projetos e programas de cooperação e mobilidade envolvendo universidades e centros de pesquisa, do Brasil (UNESP-Franca), de Portugal (Universidade de Coimbra) e da Alemanha (Univ. Friedrich-Schiller, Jena). Essas ligações poderão constituir uma vantagem acrescida que nos coloca em posição privilegiada para promover esta iniciativa editorial, dando sequência aos protocolos multilaterais em vigor entre as referidas instituições.
Assim, programamos o nosso livro pensando em três domínios essenciais, articulados entre si, e que consideramos se ajustarem aos referidos objetivos de internacionalização das ciências sociais, em sua interdisciplinaridade. Em termos temáticos consideramos: em primeiro lugar, um domínio mais genérico e reflexivo sobre as nossas sociedades, onde as grandes linhas de reflexão em torno da complexidade e ritmos de mudança no quadro do capitalismo global, mas com a preocupação de manter o diálogo Norte-Sul, suas interconexões e potenciais formas de cooperação (nomeadamente no contexto pós-pandemia).
Em segundo lugar, um enfoque centrado nas relações de trabalho e nos processos de desregulação, fragmentação e precariedade nos sistemas de emprego; e em terceiro lugar, uma linha mais direcionada aos processos recentes de reestruturação das classes (quer enquanto estruturas sociais objetivas, quer enquanto atores sociopolíticos) e em estreita ligação com os movimentos e contramovimentos (identitários, populistas, feministas, anti-racistas, anti-homofóbicos, etc.), no quadro do recente ciclo de neoliberalismo, da pandemia e das implicações socioeconômicas da atual guerra na Europa.
*Elísio Estanque é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e professor visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de Classe média e lutas sociais: Ensaio sobre sociedade e trabalho em Portugal e no Brasil (Editora Unicamp). [https://amzn.to/4dOKCAE]
*Agnaldo de Sousa Barbosa é profesor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas na UNESP-Franca.
*Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de O Brasil-nação como ideologia. A construção retórica e sociopolítica da identidade nacional (Ed. Autografia). [https://amzn.to/3wHrUtY]
Referência
Elísio Estanque, Agnaldo de Sousa Barbosa & Fabrício Maciel (Orgs.). Re-trabalhando as classes no diálogo norte-sul: trabalho e desigualdades no capitalismo pós-covid. São Paulo, Unesp, 2024, 424 págs. [https://amzn.to/466oxKA]
Bibliografia
Antunes, Ricardo (2018), O Privilégio da Servidão – O novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo.
Barbosa, Agnaldo de Sousa (2012). “Empresários de ‘pés descalços’: reflexões sobre a formação sociocultural do empresariado no polo industrial de Franca-SP”, in Revista de Desenvolvimento Econômico, Salvador-BA, n. 26, dez/2012, pp. 66-73.
Bastide, Roger (1944), “Itinerário da democracia” (I, II e II), artigos no Diário de São Paulo, março de 1944, apud Guimarães, 2002.
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Dörre, Kaus. 2022. Teorema da Expropriação Capitalista. São Paulo: Boitempo.
Du Bois, W.E.B. (2021 [1903]), As Almas do Povo Negro. São Paulo: Veneta.
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Robinson, Cedric J. (2023), Marxismo Negro. A Criação da Tradição Radical Negra. São Paulo: Editora Perspectiva, Lda.
Rosa, Hartmut (2022), Alienação e Aceleração. Por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Editora Vozes.
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Standing, Guy (2013), O Precariado. A nova classe perigosa. São Paulo: Editora Autêntica.
Thompson, Edward Palmer (1988), A Formação da Classe Operária Inglesa. (vols. I, II e III), São Paulo: editora Paz e Terra.
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