Por JOSÉ CELSO CARDOSO JR.*
As funções públicas frente ao desmonte civilizatório
O Brasil encontra-se, mais uma vez em sua história, diante de desafios e escolhas irreconciliáveis. Ou se submete aos processos de moralização arcaica dos costumes, valores antidemocráticos e criminalização da política, sindicatos e movimentos sociais, ou se levanta e luta. Ou adota o caminho da mediocridade e da subalternidade econômica, política e social, mas também intelectual, moral e cultural, ou se reinventa como nação para reescrever o seu próprio destino histórico.
Na quadra história em que a humanidade se encontra desde princípios do século XXI, já parece claro o colapso (ou ao menos algumas tendências nítidas de grande enfraquecimento institucional e disfuncionalidades práticas) das regras gerais de organização, regulação e funcionamento dos sistemas econômicos, políticos, sociais, culturais, tecnológicos e ambientais dominantes em escala planetária.
Em termos econômicos, o modo de produção, acumulação e exclusão capitalista domina hoje praticamente todos os espaços mundiais e até mesmo todas as esferas da vida coletiva e domiciliar/familiar. Hoje em dia, tudo é mercadoria; tudo é mercadoria sob a forma monetária. A expressão financeirizada das formas de produção e acumulação do valor representa o outro lado do processo crescente e aparentemente irreversível de redundância/desemprego estrutural do trabalho vivo.
Deste modo, o desemprego aberto de longa duração e todas as demais formas de subemprego e trabalho precário que hoje percorrem os países do mundo, com todas as consequências humanas que isso representa numa economia/sociedade que depende da fruição da renda monetária para se realizar, são a forma de manifestação mais visível do fracasso do modelo capitalista em sua tentativa de organizar, regular e fazer funcionar, em escala global e intertemporal, as diversas dimensões econômicas e sociais do cotidiano das pessoas.
Por sua vez, do ponto de vista político-institucional, vive-se neste século XXI uma crise sem precedentes nos sistemas democráticos representativos. A olhos vistos, parece que nunca foi tão grande a distância entre as necessidades e anseios dos diversos grupos populacionais e a (baixíssima) capacidade de representação política e de respostas institucionais adequadas dos governantes. Por outro lado, apesar das deficiências notórias dos sistemas representativos da atualidade, há fortes resistências dos poderes econômico, social e político a quaisquer tentativas de experimentação política que impliquem maior protagonismo popular, de grupos sociais historicamente excluídos, por meio de modelos alternativos de democracia participativa ou deliberativa.
E isso, mesmo considerando o enorme potencial participativo presente nas novas tecnologias de comunicação e de produção e circulação de informações, as quais, na ausência quase completa de regulação pública em âmbito internacional e, notoriamente, em países periféricos como o Brasil, vem sendo apropriadas e usadas por pessoas, grupos e empresas para confundir, obscurecer e manipular realidades e situações, disseminando o caos comunicacional e reproduzindo heterogeneidades e dependências em escala ampliada.
Com o dito até aqui, já ficam claras a amplitude e a profundidade dos problemas sociais, culturais e ambientais que decorrem do aparente colapso civilizatório em curso. É deste cenário desolador que se deve partir para o repensar acerca do peso e papel do Estado nacional (e da função pública) na contemporaneidade, sobretudo em suas interrelações com os mundos econômico, político, social, cultural e ambiental em franca deterioração nos dias que correm.
Para tanto, focando apenas no caso brasileiro, a proposta que aqui sustentamos vai em direção diametralmente oposta à propaganda enganosa que circula pela grande mídia corporativa, base parlamentar e governo Bolsonaro/Guedes em torno da PEC-32/2020 para a reforma administrativa. Esta, em essência, representa a destruição do aparato estatal público que estava em árdua construção no país desde a CF-1988. Da PEC-32 não se aproveita nada em termos dos verdadeiros requisitos necessários à melhoria do desempenho institucional agregado do setor público brasileiro. Trata-se de uma proposta de natureza e intenções antirrepublicanas, antidemocráticas e contrárias ao desenvolvimento nacional, cujos fundamentos e implicações estão bem documentados e explicados em dois livros recém-publicados: i) Rumo ao Estado Necessário: críticas à proposta de governo para a reforma administrativa e alternativas para um Brasil republicano, democrático e desenvolvido (Fonacate, 2021); e ii) Reforma Administrativa Bolsonaro/Guedes: autoritarismo, fiscalismo, privatismo (Afipea-Sindical e Arca, 2021).
Em ambos os livros, a nossa proposta consiste em lançar mão de 3 ideias-forças de cujo resgate teórico-histórico se poderia partir para avançar tanto na crítica aos formatos e conteúdos atualmente dominantes na esfera estatal como, indo além, avançar também na reafirmação ou proposição de novos princípios, diretrizes, estratégias e táticas de ação – coletiva, contínua e cumulativa – que nos permitam conduzir a situação para um patamar qualitativamente superior de entendimento, organização e funcionamento do Estado nacional para as novas gerações de brasileiros e brasileiras, ainda no século XXI.
As 3 ideias-forças para a tarefa aqui proposta são as seguintes:
i) o desenvolvimento nacional como carro-chefe da ação do Estado, ou seja, o Estado não existe para si próprio, mas como veículo para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento estratégico público, da gestão participativa e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é fundamental para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI no Brasil.
ii) a necessidade de uma reforma do Estado de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, redirecionando a ação governamental para as necessidades vitais e universais da população.
iii) por fim, a revalorização da política e da democracia: não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participação bem informada da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo, por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam, eleitoral e periodicamente. Mas também de modo mais intenso e cotidiano por meio de formas e mecanismos mais ou menos institucionalizados de interconexão Estado – Sociedade. Ou seja, para além da democracia representativa em crise, há elementos de uma democracia participativa – e mesmo deliberativa – que pressionam por mais e melhores espaços de existência e funcionamento.
A proposta acima sugerida reafirma o fato de que para debater tais desafios e lutar por um Estado moderno e serviços públicos de qualidade no Brasil, é preciso ter claro que em todas as experiências internacionais exitosas de desenvolvimento, é possível constatar o papel fundamental do ente estatal como produtor direto, indutor e regulador das atividades econômicas para que essas cumpram, além dos seus objetivos microeconômicos precípuos, objetivos macroeconômicos de inovação e inclusão produtiva e de elevação e homogeneização social das condições de vida da população residente em território nacional.
Por isso, ao recuperar as 3 ideias-forças acima indicadas, visamos requalificar os termos do debate público sobre assuntos diretamente relacionados à necessidade de empoderamento da sociedade e do próprio Estado nacional no sentido da republicanização e democratização das relações intra estatais e entre agentes públicos e atores sociais e empresariais para a construção de um projeto de desenvolvimento adequado e aderente à realidade brasileira.
*José Celso Cardoso Jr. é doutor em economia, servidor público federal e atual Presidente da Afipea-Sindical.