Reformismo fraco

Imagem: Malcolm Hill
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Por MARCOS PAULO PEREIRA FILHO*

A administração petista, com seu reformismo fraco, também apresenta dificuldades em solucionar problemas estruturais de comando da economia regida pelo colapso

A retomada do lulismo

Com a terceira vitória do candidato Luis Inácio Lula da Silva em outubro de 2022, contando com apoio de parcela dos setores populares, radicais de classe média, setores do establishment político e nos últimos minutos do 2º turno, representantes da burguesia cosmopolita, o lulismo voltou para administração pública buscando reverter o quadro de crise que caracterizou o país desde 2015 com sua reedição da década perdida.[i]

Prometendo retomar a expansão do consumo na sociedade brasileira via investimento público, o reformismo fraco[ii] apoiou a reeleição de Arthur Lira para o comando da Câmara dos Deputados em troca da aprovação da PEC da Transição, que permitiu o aumento e/ou reajuste nos programas sociais que caracterizaram os governos petistas, além das quantias monetárias necessárias para que não houvesse um shutdown da máquina pública.

Os investimentos públicos, na ordem de 150 bilhões de reais, junto com os reajustes acima da inflação no salário-mínimo e nas aposentadorias, reanimaram o keynesianismo moderado que deu sobrevida ao país-ornitorrinco,[iii] ocultando sua lógica de colapso que atravessa a sociedade brasileira desde a década de 1980.

Passados dois anos desde a expansão fiscal promovida na transição, os indicadores sociais melhoraram. O desemprego, que no 1º trimestre de 2023 era de 9,4%, agora, no 3º trimestre de 2024, é de 6,4%[iv], chegando perto do pleno emprego (levando em consideração a capacidade produtiva de um país na periferia do capitalismo). A diminuição da insegurança alimentar,[v] que tinha explodido durante o período mais agudo da pandemia, também aponta para melhora no quadro social do país.

Apesar das melhorias relevantes na realidade brasileira, antigos problemas – que se revestem de novos – continuam a assombrar o país. A diminuição do desemprego que chega perto da taxa mínima histórica de 2012, se dá, qualitativamente, pela geração de empregos precarizados, concentrados no setor de serviços, que demanda apenas ensino médio completo e sua remuneração orbita em torno de dois salários-mínimos. A taxa de informalidade continua beirando os 40%, expressando o oceano de exército de reserva que continua permitindo uma acumulação capitalista centrada no rebaixamento dos custos da reprodução da força de trabalho.

A retomada dos investimentos públicos via programas sociais e aumento real do salário-mínimo, estimularam uma demanda agregada que se espalhou e criou uma capacidade de consumo que necessitava da criação de novos postos de trabalho no setor de vendas e comércio, mas não está associada com o aumento da produtividade do trabalho, isto é, inovações tecnológicas que permitam a extração da mais-valia relativa. O diagnóstico é de um crescimento artificial, centrado no consumo das famílias, mas desatrelado do desenvolvimento das forças produtivas e se baseando no aprofundamento do extrativismo.

Francisco de Oliveira em ensaio publicado na revista Piauí em 2007,[vi] demonstra, como os governos petistas, mimetizando a administração de Nelson Mandela, inauguraram no país uma hegemonia às avessas: os dominados, ao liderarem a direção moral da sociedade, adotam o programa dos dominadores. Os programas de transferência de renda atuariam como um administrador da pobreza,[vii] retirando da política a disputa de classes e alçando a miséria às planilhas do Ministério do Desenvolvimento Social. As disputas em torno de uma transformação radical da sociedade brasileira, centrada em uma modernização com inclusão social, são substituídas por uma aliança frágil que remenda a fratura social brasileira.

Escrito no auge da popularidade do segundo governo Lula, o ensaio continua atual para o novo governo petista: enquanto se expande o valor dos benefícios dos programas sociais, a estrutura produtiva do país continua decadente: a desindustrialização é intensificada, os investimentos em infraestrutura continuam aquém da necessidade para sua modernização, as empresas continuam sem absorver as pesquisas produzidas nas universidades brasileiras, a qualidade dos empregos são precárias, o endividamento familiar se põe como regra e a expansão da produção de commodities serve para engordar as reservas do país.

Crise ou colapso da economia mundial? Brasil na encruzilhada

Para compreensão das mudanças na economia brasileira desde o esgotamento do ciclo desenvolvimentista, é necessário estender a análise para as transformações na organização produtiva mundial que alteraram os rumos da acumulação capitalista.

Robert Kurz (1991), em O colapso da modernização, demonstra como essas transformações operaram dentro do sistema mundial produtor de mercadorias. Com o desenvolvimento das suas forças produtivas desde o pós-guerra, sobretudo nos países centrais, houve um aumento da composição orgânica do capital que passou a dispensar o trabalho vivo do processo produtivo. Esse processo desembocou na Terceira Revolução Industrial nas décadas de 1970 e 1980, com a microeletrônica ruindo as bases de reprodução capitalista.

Se Marx já havia demonstrado o processo crítico de reprodução capitalista, pautado em uma constante desvalorização do valor, substância que rege o modo de produção capitalista, na qual o aumento do capital constante em relação ao capital variável, ao diminuir as taxas de extração de mais-valia, leva à uma queda tendencial da taxa de lucro, o que passamos a compreender a partir do final do século XX é uma acumulação capitalista que se reproduz pela dessubstancialização do valor, minando as bases da reprodução capitalista e transformando os trabalhadores de exército de reserva em população supérflua.

Se a partir da década de 1970 o setor industrial para de remunerar adequadamente os capitalistas, com a queda da sua taxa de lucro, o setor financeiro, com o capital portador de juros, sugere níveis de remuneração individuais maiores. A migração dos investimentos para o mercado de capitais, por meio do crédito, realimenta a espiral da crise, com o capital fictício liderando a economia mundial. A problemática se insere, entretanto, em conceber como o capital fictício se entrelaça com uma produção de mercadorias que conta com menos valor em cada unidade produzida, organizando a economia mundial a partir da lógica do colapso.

No artigo A produção do espaço na região do MATOPIBA: violência, transnacionais imobiliárias agrícolas e capital fictício (2017), os autores concebem como a terra se transformou em um ativo financeiro em busca de valorização dos capitais com a produção de commodities. A expansão da fronteira agrícola no Brasil a partir da década de 1970, se caracteriza, nos dias atuais, pela busca, por parte do mercado financeiro, de remunerar seus capitais com a produção agropecuária, aumentando a produção e produtividade. O nó gerado, síntese da acumulação de capital no estágio atual do capitalismo, é que sua expansão se baseia na diminuição do capital variável do processo produtivo, simulando um processo de acumulação que não possui suas bases para se reproduzir.

Podemos compreender que a economia brasileira, entrelaçada com a economia mundial, possui dificuldades de passar por mudanças que alterem sua estrutura produtiva quando a lógica atual de produção de mercadorias se enquadra na sua crise de valorização.

E enfim, o extrativismo

A crise da dívida externa na década de 1980 alterou a balança de pagamentos do país, intensificando o processo inflacionário que corroía a tentativa de modernização periférica que se sustentava desde a década de 1930. As soluções encontradas para o novo problema nacional partiram da redefinição da acumulação de capital no país, com a adoção de políticas econômicas ortodoxas que estimulavam a produção mineral e agropecuária para formar as divisas internacionais necessárias para reestruturar a sua dívida externa.

Saskia Sassen (2016), em seu livro Expulsões, apresenta a relação entre o pagamento da dívida externa dos países do Sul Global e o aprofundamento do extrativismo. Para ela, são dois vetores que explicam esse funcionamento: o enfraquecimento dos Estados Nacionais, com a lógica globalizadora distribuindo mundialmente as cadeias produtivas, e a abertura dos mercados nacionais para o pagamento dessas mesmas dívidas como requisito para acessar o crédito dos organismos multilaterais (FMI e Banco Mundial). A autora compreende que “não se trata simplesmente da dívida, mas do uso que se faz do problema da dívida para reorganizar uma economia política” (SASSEN, 2016, p. 108).

O aprofundamento do extrativismo vem de encontro com o início da década de 2000 e a eleição presidencial do primeiro operário a comandar o país. Os 13 anos de administração petista se beneficiaram do boom das commodities para realizar suas políticas sociais. Para além do uso das receitas do Pré-Sal, por exemplo, para o financiamento de algumas de suas políticas, os governos estimularam a extração de recursos naturais e a expansão da fronteira agropecuária pelo país, intensificando o caráter exportador de uma economia periférica.

O Governo Lula III, como reedição do lulismo adaptado às novas condições de correlação de forças nacionais e internacionais, continua promovendo essa realidade econômica. O Plano Safra, contando com 400 bilhões de reais, expressa essa condição que estrutura a atividade produtiva do país.

Para além dos problemas de ordem econômica, as questões sociais e ambientais foram e são penalizadas pelo extrativismo. As comunidades indígenas, quilombolas e de posseiros que ocupam partes do território nacional, vem sofrendo um intenso processo de expropriação causado pela expansão da fronteira agrícola, marcada pela grilagem de terras nas novas áreas de produção agropecuária, como a região do MATOPIBA ou de partes do território amazônico. Essa mesma busca desenfreada por terras férteis, na Amazônia, vem causando estragos que alguns cientistas falam de um ponto de não retorno[viii], com o colapso do bioma amazônico trazendo consequências apocalípticas para o planeta.

Soluções temporárias

As tentativas de modernizar o país por parte do novo Governo Lula, apesar de tímidas, também esbarram nos problemas da acumulação capitalista mundial. Se existe a formulação ou reedição de novos programas de estímulo à produção industrial, como o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) ou o NIB (Nova Indústria Brasil), seus resultados serão frustrados ao buscar solucionar os problemas em uma realidade que impede atingir o tempo industrial médio de produção, isto é, a produtividade dos países centrais, para além da problemática central de crise da reprodução capitalista que, contraditoriamente, se realiza por seus próprios mecanismos de valorização, com a desvalorização do valor.

A administração petista, com seu reformismo fraco, também apresenta dificuldades em solucionar, com os limites lógicos impostos pelo estágio atual do capitalismo, problemas estruturais de comando da economia regida pelo colapso, mas que apresentam fendas de diminuição de impactos, ou seja, de compra de tempo, como a criação de novas fontes de valorização que permitiriam trazer mudanças e fortaleceriam o tecido social brasileiro a médio prazo, como as tecnologias verdes para a transição energética. Aquilo que se diagnostica são soluções temporárias que conservam os problemas estruturais da formação social brasileira, ou em outras palavras, o futuro continua sendo estático.[ix]

*Marcos Paulo Pereira Filho é graduando em geografia na USP.

Referências


KURZ, Robert. O Colapso da Modernização: Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991.

PITTA, F. T., MENDONÇA, M. L., & BOECHAT, C. A. (2018). A produção do espaço na região do MATOPIBA: violência, transnacionais imobiliárias agrícolas e capital fictício. Estudos Internacionais: Revista De relações Internacionais Da PUC Minas, 5(2), 155-179. https://doi.org/10.5752/P.2317-773X.2017v5n2p155.

Notas


[i] Cf.SINGER, André Vitor. Lula’s Return. New Left Review, 139, 2023. Disponível em: https://newleftreview.org/issues/ii139/articles/andre-singer-lula-s-return.

[ii] Cf.SINGER, André Vitor. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos, n. 85, p. 83-103, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0101-33002009000300004.

[iii] Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

[iv] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/10/desemprego-tem-menor-taxa-da-serie-historica-para-terceiro-trimestre.shtml.

[v] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2024/07/24/cai-o-numero-de-pessoas-que-enfrentam-a-inseguranca-alimentar-grave-no-brasil.ghtml.

[vi] Cf. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/hegemonia-as-avessas/.

[vii] Ibidem.

[viii] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/megaincendios-na-amazonia-aceleram-chance-de-colapso-do-bioma.shtml

[ix] Agradeço aos comentários de Julio Tude d’Avila.


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