Por MARCELO BARREIRA*
Há grupos fundamentalistas e líderes religiosos inescrupulosos que se confundem com Deus para confundirem incautos e ameaçarem a democracia
Diante dos ataques terroristas acontecidos na França no dia 29 de outubro de 2020, lembremos do atentado terrorista contra a produtora Porta dos Fundos nas vésperas do Natal de 2019, dia 24 de dezembro. Ao escancarar a escondida porta dos fundos, a Porta dos fundos incomoda poderosos e nos exige pensar sobre nossa concepção “moral”, avessa à diversidade das visões “minoritárias”, qualificadas assim não por causa da demografia – daí, “maiorias minorizadas” –, mas por sua pouca representatividade institucional. A tentativa autoritária de tutelar e silenciar falas divergentes e minoritárias enseja uma possível ação violenta aos ouvintes dessas falas.
Os especiais de Natal de 2013 a 2017, cada um deles eram vídeos com 15 minutos de duração. Em 2018, já na Netflix, o Especial de Natal durou 45 minutos, sempre com igual verve humorística, sendo premiado com o Emmy Internacional de melhor comédia com o filme Se Beber, Não Ceie. A nosso ver, esse Especial de Natal de 2018 apresentou menor potencial reflexivo do que “A Primeira Tentação de Cristo”, veiculado no ano passado. Apesar disso, em 2020, como o interesse do Porta dos Fundos é fazer piada e não polêmica – sem fugir da luta a favor da liberdade de expressão –, a Netflix não o colocou para concorrer a esse mesmo prêmio que venceram em 2019.
O humor é para rir, e rir sobretudo de hierarquias, civis ou religiosas, autorreferenciadas como “sagradas”. Afinal, o fenômeno cultural do religioso é ambíguo. Há um cristianismo fundamentalista e outro libertador e a favor da vida. Sabemos de cristãos sem hipocrisia com a sexualidade – cito o movimento Católicas pelo Direito de Decidir – e pastores evangélicos sem a obsessão pelo dinheiro dos fiéis, basta lembrarmos do pastor Henrique Vieira. Ao lado dessas pessoas e movimentos, há grupos fundamentalistas e líderes inescrupulosos que se confundem com Deus para confundirem incautos e ameaçarem a democracia.
E essa ameaça é séria! Como não se lembrar das ameaças contra cartunistas após a publicação de charges de Maomé no dia 30 de setembro de 2005. Da necessidade de explicar a religião muçulmana para crianças dinamarquesas, houve um concurso para se desenhar Maomé e a atrocidade de uns 250 mortos em ataques fundamentalistas islâmicos. Inclui-se nessa contagem os 17 mortos do ataque ao semanário Charlie Hebdo e de um supermercado judaico no dia 07 de janeiro de 2015 em Paris. Uma ameaça persistente, como mostra o relatório de março do serviço de inteligência dinamarquês, exemplificado nos dois feridos do ataque realizado em Paris no dia 25 de setembro de 2020e nos três mortos em Nice no dia 29 de outubro.
Em tempos sombrios de neofascismo, infelizmente, não estamos distantes dessa situação. O discurso estratégico e eleitoreiro de Jair Bolsonaro contra a “cristofobia” cria um clima belicoso inexistente para uma religião tornada consciência comum de grande parte dos brasileiros. O risco é de ela deixar de ser um “fundo musical” de nossa cultura para se resgatar seu sentido muscular e antidemocrático com o “cristifascismo”. Neste sentido, o atentado sofrido pelo Porta dos Fundos nos preocupa, mas também nos motiva em nossa solidariedade a essa produtora em sua coragem por acreditar na liberdade de expressão.
*Marcelo Barreira é professor do Departamento de Filosofia da UFES.