Por ROBERTO BUENO*
Quando o teatro desce a cortina os responsáveis pelos massacres humanos haverão de descer do palco e, logo, ser apresentados para prestar contas de seu horrendo desempenho, de suas responsabilidades por genocídio
O icônico julgamento por crimes de guerra e prática de genocídio encontrou o seu ápice em Nuremberg no prédio do Palácio da Justiça que tampouco deixara de ser atingido pelos bombardeios aliados, mas que, mesmo assim, tinha melhores condições, assim como a cidade, do que Berlin, que era da preferência do Procurador-Chefe soviético, Iona T. Nikitchenko. Nuremberg havia sido o notável espaço de concentrações de massa e congressos (1933-1938) do partido nacional-socialismo utilizando para tanto o Reichsparteitagsgelände, a área para desfiles de massa projetada pelo arquiteto do III Reich, Albert Speer. Malgrado este caráter histórico, Nikitchenko manteve reticências e preferia Berlin, que foi abandonada como objeto de consideração para a realização do julgamento, sendo depois também München, rechaçadas igualmente devido ao seu estado ruinoso e falta de condições para o desenvolvimento dos trabalhos do julgamento.
Imediatamente após o cessar das hostilidades bélicas na Segunda Grande Guerra Mundial (SGGM) os aliados avaliaram ser o momento adequado para acertar as contas com os perpetradores dos gravíssimos crimes de guerra até então desconhecidos pela humanidade em sua íntegra. Inicialmente foram enfrentadas duas posições entre os aliados, a de impor processo político com imediata execução dos altos comandos nacional-socialistas e a segunda que apontava para a realização de processo judicial sob a égide dos conceitos jurídicos comuns da legislação ocidental que, logo, teriam de ser compartilhados com os soviéticos. Venceu a ideia de evitar execuções sumárias tão ao gosto dos britânicos e soviéticos sem o devido processo legal e assim constituir um tribunal, que era a de Harry S. Truman (1884-1945), ex-juiz e então Presidente da República – que substituíra o falecido Roosevelt (1882-1945) –, que através da Ordem Executiva em 02.05.1945 formalmente designou Robert Jackson para desempenhar as funções de Procurador-Chefe no Tribunal de Nuremberg.
O decorrer do julgamento permitiu que, paulatinamente, fosse apresentada pela acusação a real dimensão da tragédia, malgrado notícias de extermínio já corressem durante o embate bélico, mas que iriam ganhando conhecimento público desde os primeiros momentos do julgamento com a veiculação das cruas bestialidades praticas nos campos de concentração. Os réus eram homens que em curtíssimo espaço de semanas, quando não de dias, transitaram do Olimpo do poder e do luxo para as condições espartanas das prisões controladas pelos aliados que os supriam com o devido mínimo alimentar e condições de higiene e roupas. Era trânsito do poder total à submissão em condições que não haviam oferecido aos milhares de corpos que haviam tomado como cativos.
Quando cessaram os canhões tornou-se imperativo acessar a razão. Determinar as responsabilidades dos altos dirigentes do regime nacional-socialista, militares e altos cargos políticos na condução de práticas de extermínio durante a SGGM é tema cujo interesse não se esgota naquele momento histórico, senão que carece de contínua análise. É imperativo regressar à sua consideração continuamente, recordando e propondo renovadas análises sob a perspectiva das cambiantes circunstâncias históricas, de sorte a apresentar aos potenciais novos perpetradores as condições de desestímulo a práticas similares de desprezo pela vida humana encontre personalidades com tendências a concretizá-las, apresentando-lhes a forca unida e reconhecimento da desonra como alternativa que o mundo civilizado imporá tal como foi o caso em Nuremberg de hierarcas nazistas como Hermann Göring (1893-1946), Karl Dönitz (1891-1980), Wilhelm Keitel (1882-1946), Alfred Jodl (1890-1946), Hans Fritzsche (1900-1953), Ernst Kaltenbrunner (1903-1945) e Alfred Rosenberg (1893-1945) que considerados como indivíduos não passaram de representantes de tragédia inaudita (ver SMITH, 1979, p. 68). Eram homens deste tipo, e não o Estado, que deveriam estar no banco dos réus, pois, entendia Jackson, apenas aqueles, e não ente abstrato, podem responder por suas ações. Aquele foi o primeiro momento da história em que homens que haviam abusado do poder tiveram de responder por seus atos em tribunal especialmente criado com a competência para avaliar e responder por suas condutas em guerra (cf. HARRIS, 1999, p. 496).
O esforço para colaborar na compreensão de quão profunda pode ser a miséria dos humanos é desenvolvido brevemente neste artigo. Restrito em espaço e propósitos, a análise será centrada nos referenciais teóricos do direito e sua conexão com o direito internacional público sobre o objeto aqui proposto em claros termos no título, e utilizará como fonte direta e eixo condutor da análise serão mobilizados os argumentos da acusação realizada pelo Procurador norte-americano Robert Jackson no Julgamento de Nuremberg. A razão para este recorte é a objetiva delimitação do vasto problema que deveria ser enfrentado e julgado quando, como naquele caso, estão em causa acusações de genocídio. Jackson ofereceu com clareza os fundamentos da acusação contra os réus considerados criminosos de guerra assim como por práticas que logo seriam apresentadas em seus mais sórdidos detalhes no curso do processo através das provas apresentadas.
Nuremberg foi palco de julgamento histórico ancorado em órgão jurisdicional especial. Inexistindo jurisdição natural, os vencedores constituíram foro especial para julgar condutas praticadas pelos vencidos durante a SGGM às quais já então se classificava como criminosas. À falta de tribunal internacional e de precedentes para o enquadramento legal das condutas que se pretendia sancionar, sem embargo, como sublinhava Jackson, as atividades do Tribunal estavam solidamente ancoradas e não eram produto de abstrações nem tampouco estava ali em funções para reivindicar alguma versão de legalismo jurídico (cf. OWEN, 2007, p. 47). Rigorosamente, todos os fatos que levaram a constituição do tribunal restariam comprovados até mesmo pelo uso de documentos, imagens e filmes realizados pelos próprios personagens que haviam praticado os fatos assim como a justiça dos vencedores não impediu a absolvição de alguns dos réus.
A interpretação dos eventos era aperfeiçoada quando emergiam informações sobre os recentes fatos da guerra. Isto ia ficando claro a partir do correr dos primeiros dias do juízo, quando eram publicados nos jornais diários o acúmulo de imagens, documentos e entrevistas até então represadas. Era dever histórico imposto pelos aliados para o Tribunal cumprir o papel de trava histórica para evitar futura ocorrência de desastrosos fatos similares. Para tanto Jackson sugeria tratamento a ser dispensado aos nazistas, já então homens comuns e correntes, desconectados das cadeias de poder e de comando, cujos pesados antecedentes não os tornavam merecedores de manifestação de “ternura”, pois representaria nada menos que o reconhecimento da “[…] vitória e o referendo dos males que estão unidos aos seus nomes”. (apud OWEN, 2007, p. 47).
Jackson reconhecia o peso daqueles dias e o papel histórico daqueles sobre quem recaía a responsabilidade do julgamento e, assim, o quão indispensável seria que sua geração brecasse o ímpeto de ocultamento dos amplíssimos crimes de guerra. Para Jackson era preciso reconhecer e adequar à prática do Tribunal que “A civilização não pode permitir-se o luxo de negociar com as forças sociais que recobrarão força se tratamos de modo ambíguo ou laxo aos homens nos quais estas forças agora sobrevivem de maneira precária” (apud OWEN, 2007, p. 47-48). Estava em causa imperativo de tratar adequada e impiedosamente as forças transgressoras de todos os referenciais civilizacionais, sob pena de profundas repercussões políticas futuras. Um dos objetos do julgamento, o Estado Maior e os Altos Comandos das Forças Armadas Alemãs, ao final da SGGM foram considerados em sua composição por grupo de “personas [que] fueron una vegüenza para la profesión militar y se mofaron de la obediencia debida. Constituyeron una casta militar despiadada y fueron culpables de crímenes que deberían llevarles a ser juzgados uno a uno”. (OWEN, 2007, p. 395).
Jackson tinha claro que o desafio de sua geração de juristas era o de impor-se à marginalidade de lideranças de massa capazes de capturar todas as estruturas de Estado e de seduzir massas para a trituração de grande quantidade de indivíduos. Enfrentar o desafio histórico supunha evitar a laxidão, tarefa que ia acompanhada de dificuldade imposta pelo problema jurídico-institucional em face da ausência de direito positivo e tribunal constituído com regras internas definidas. O Tribunal de Nuremberg começou atuou sob a raiz do direito comum das nações calçado em categorias de ordem moral compartilhados com noções básicas inerentes à civilização humana e ao direito internacional público então consolidado (ver HARRIS, 1999, p. 496).
A manifestação inicial de Jackson no tribunal ocorreu no dia 21.11.1945 expressando ter consciência tanto de seu papel histórico, da Corte e na condição de representante indicado pelos EUA. Não se tratava tão somente do julgamento de horrendos crimes de guerra, senão de traçar possíveis horizontes políticos. Esta perspectiva apontava para a necessidade do julgamento correr segundo os estritos limites da legalidade, legitimado aos olhos da opinião pública mundial que estaria atenta, mas comprometido com punição exemplar das atrocidades praticadas, das quais, aliás, o próprio Jackson inicialmente dizia não ter dado integral crédito a real dimensão da barbárie (cf. TUSA;TUSA, 1985, p. 157). O julgamento das inauditas práticas de morte em escala industrial colocava em perspectiva o dever dos aliados de realizar julgamento exemplar. Os aliados deveriam mostrar compromisso com os termos do triunfo civilizacional contra o genocídio praticado sob condições singularmente bárbaras contra indefesos seres humanos por motivos cuja vileza era sem par na história.
Este cenário impunha ao Tribunal tratamento judicial de difícil matéria especial mas orientando ações para que evitasse a mera vendetta por parte dos vencedores ao tempo que firmes para sancionar condutas chamando a atenção a ponto de evitar que a barbárie, e os perpetradores, pudessem encontrar rumos para cair no esquecimento. O julgamento daqueles acusados representava a forma histórica inaugural do parâmetro segundo o qual passariam a ser julgados os homens que, acaso, algum dia viessem a ponderar a hipótese de sequestrar estruturas de Estado para impor a barbárie como régua política e instrumento de domínio total para provocar a morte massiva.
A alegação acusatória inicial de Jackson abriu ao descortinar o leque de condutas expôs igualmente os limites das pretensões punitivas. Jackson apresentou como pano de fundo as ações calculadas dos réus, o fato de que tinham sido projetadas tão perversamente que repercutiram profundamente não apenas naquela quadra histórica em escala mundial como as suas implicações diretas e devastadoras incidiriam também sobre o futuro da civilização. Jackson argumentou ser imperativo para aqueles dias o processamento daqueles homens que tinham organizado e perpetrado graves crimes para evitar, assim, que a roda da história pudesse girar e registrar a repetição do horror (cf. OWEN, 2007, p. 46). Aqueles indivíduos haviam sido naqueles dias e, hoje, os seus renascidos espíritos, radicais inimigos do Estado democrático de direito, dispostos e plenamente disponíveis para mobilizar os seus instintos mais selvagens e deste modo impor-se aos limites legais revogando quaisquer constrangimentos morais (cf. TUSA;TUSA, 1985, p. 155).
A barbárie alemã não poderia ter ocorrido sem a captura e compressão absoluta das estruturas do Estado alemão para, paralelamente, realizar a tarefa de submissão total do povo. Este processo de domínio foi viabilizado através da prática do terrorismo de Estado sob a rotinização do extermínio de dissidentes. Este projeto vinha acompanhado da imposição de crueldade sob régia planificação (cf. OWEN, 2007, p. 51.) segundo os parâmetros do direito nacional-socialista, cujo eixo e sustentáculo era resumido na vontade do Führer (cf. HARRIS, 1999, p. xxxi). Os seus auxiliares foram os líderes do extermínio e, na ausência do Führer, estavam a sós no banco dos réus de Nuremberg, qualificados por Jackson como incitadores, planejadores e executores, sem os quais, admitia, a arquitetura do mal seria impossível, e “[…] world would not have been so long scourged with the violence and lawlessness and wracked with the agonies and convulsions of this terrible war’. They were not alone in guilt, Jackson said. Nor would they be alone in punishment […]”. (TUSA;TUSA, 1985, p. 155).
Uma das debilidades legais era a insuficiência da teoria jurídica para aquele modelo massivo de homicídios, tendo sido o crime de genocídio foi inicialmente concebido pelo acadêmico judeu Rafael Lemkin (1900-1959), algo que o direito internacional público igualmente a desconhecia. A construção teórica do tipo legal do crime de genocídio partiu da concepção situada na esfera da geopolítica, das relações internacionais e de que havia sido organizada ampla conspiração para mutilar o desenvolvimento de nações inteiras ou destruí-las completamente (cf. OVERY, 2003, p. 71). A definição da raiz do crime de genocídio era importante para englobar a amplitude do crime contra massa de indivíduos contabilizados na casa de vários milhões, mas tal definição supunha problema na ordem da teoria jurídica com importante impacto prático.
A inexistência de teoria jurídica e de prévia arquitetura legal a respeito do crime de genocídio impôs restrições ao Tribunal que estava em posição de elaborar construção jurídica para aplicá-la ex post facto. Trazido ao debate o acadêmico harvardiano Edmund E. Morgan, da Faculdade de Direito, negou recepção ao fulcro da acusação realizada em Nuremberg precisamente devido a criação de tipo legal ex post facto (cf. OVERY, 2003, p. 72), algo que, alegava, era contraditória com o princípio fundamental do direito anglo-saxônico e também com o direito penal moderno ancorado no princípio da legalidade e da anterioridade da lei penal previsto por Feuerbach, resumível na máxima Nullum crimen, nulla poena sine lege. Segundo a máxima restando a legitimidade da imposição da pena estava conectada a previsão de conduta como transgressora da lei e, logo, punível, de onde, inexistindo tipo legal e bem jurídico a proteger, por conseguinte, não haveria lesão possível a bem não classifica como tal. Recorrer aos princípios gerais do direito, aos princípios orientadores dos direitos dos povos civilizados típico do direito internacional público e ao fundamento de moralidade de que se revestia o direito, tal como era claro para a concepção filosófica nutrida por Jackson, seriam instrumentos para vencer a dificuldade imposta pela teoria feuerbachiana.
Definido o crime de genocídio, os acusadores e os julgadores teriam de enfrentar-se com o problema das provas, no primeiro caso para construir o caso e, no segundo, para avaliá-las (cf. OVERY, 2003, p. 75), enquanto a defesa dispunha de parcos recursos técnico-científicos e econômicos para produzir as suas, desenhando cenário que sequer longinquamente seria qualificável como de paridade de armas. Era um Tribunal constituído pelos vencedores para julgar os vencidos, e dentro das condições históricas a crítica de Goering de que um “[…] país estrangeiro não tem o direito de processar o governo de um Estado soberano”. (apud GOLDENSOHN, 2005, p. 174).
As provas cabais dos crimes praticados foram reforçando a tese jacksoniana do conteúdo moral que perpassa o direito. Relativamente ao tema importa destacar que há sentimento de justiça entre os homens ordinários acerca da necessidade da imposição de punibilidade aos crimes corriqueiros, mesmo estes que tem menor potencial ofensivo, e para isto Jackson chama a atenção apontando a necessidade de castigar as graves ofensas físicas e morais impostas a vastos coletivos humanos por homens que detém amplos poderes e a voluntas orientada a consecução do mal em grande escala (cf. OWEN, 2007, p. 47). Jackson destacava que o real motivo para levar o conjunto de homens que organizaram e perpetraram inauditos crimes ao banco dos réus não eram simples “debilidades normais do ser humano”, senão algo mais, e muito intenso, a saber, a sua “conduta anormal e desumana”. (apud OWEN, 2007, p. 50).
Qual a ancoragem para solicitar a condenação dos acusados sentados no banco dos réus do Tribunal de Nuremberg? Sem alinhar aqui as minudências da concepção formal, Jackson apontou para a conjunção de agravos morais e legais praticados pelos acusados, apontando que suas condutas haviam sido realizadas de forma premeditada (cf. OWEN, 2007, p. 50), sob estrito planejamento e, em seu momento, sempre que necessário, mas realizando qualquer tipo de improvisação sob o império da necessidade prática compatível para alcançar os resultados previamente delineados. Exemplo disto foi a criação das câmaras de gás, que foi sendo desenvolvida e sofisticada até ganhar escala e ser construída nos campos de concentração, superando a etapa da morte de dezena de pessoas em furgões para alcançar a casa das várias centenas delas concomitantemente. Esta etapa foi alcançada por descoberta casual da aplicação do gás Ziklon B (patente da poderosa IG Farben), pesticida à base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio, cuja aplicação inicial nos campos de concentração era para a desinfecção de piolhos e evitar a proliferação do tifo, cuja casual observação de seus efeitos fatais por oficial do campo de Auschwitz foi levada ao diretor do campo, Heinrich Himmler (1900-1945), que ordenou o seu uso para impor massivamente a morte nas câmaras de gás nazistas, dado ser potente o suficiente para impô-la entre 20m. e 30m., em substituição ao processo anterior bem mais lento.
A importância de impor punição às personalidades que impingem o mal em grande escala, eventualmente concretizando-o segundo linhas de força antes inimagináveis pelo legislador, reclamam por punição em face do desenho de futuro, da garantia de que opções políticas supostamente inovadoras para transgredir os limites da humanidade não poderão ser brandidas como instrumento para servir como pretexto para a imposição de dor, sofrimento e morte em nenhuma escala, muito menos de forma abrangente e industrial de coletivos humanos inteiros. A este respeito o Promotor Jackson corretamente destacava que “O significativo deste processo é que estes réus são a personificação de influências sinistras que sobreviverão no mundo muito depois de que seus corpos se tenham transformado em pó”, e também neste aspecto revelava a apreensão correta da natureza do mal na humanidade, vale dizer, as ideologias, sejam quais forem os seus signos, das utopias mais auspiciosas às versões mais nefastas e letais que despertam o mal em sua versão crua que habita a natureza humana, em nenhum caso podem ser tratados como se sepultados estivessem de uma vez por todas, pois as ideologias não perecem, tão somente hibernam. Jackson assumia a tarefa coletiva para aquele momento histórico dos tribunais, vale dizer, que “Demonstraremos que são símbolos que encarnam o ódio racial, o terrorismo, a violência, a arrogância e a crueldade do poder”. (apud OWEN, 2007, p. 47.).
Mas se Jackson e os demais procuradores aliados cumpriram a tarefa imperativa imposta por aquele momento histórico ao Tribunal, é indiscutível que as gerações posteriores falharam em realizar a sua indispensável tarefa de manutenção da obra a cada geração e contínua reorganização e recepção daquela cultura antifascista. Esta obra de realização da justiça e contenção da evolução do fascismo reclama sucessiva atividade de ancoragem do sistema político em aceitáveis padrões civilizatórios, reconhecendo valor ao humano, cuja desconexão implica a ruptura com o melhor teor do legado de Nuremberg. A solidez desta articulação pavimenta a via para prevenir riscos e agressões à civilização, indispensável para fazer frente a tipologia dos crimes dos réus em Nuremberg, cujas práticas transcenderam os limites dos corpos de suas vítimas e superando as fronteiras de seu tempo. Tal como destacou Jackson em Nuremberg, se tratava de atos que afetaram a toda a humanidade, e assim ocorrendo, a neutralidade axiológica deixava de ser opção válida (cf. OWEN, 2007, p. 49.).
Na atividade do Tribunal de Nuremberg é possível observar o referencial a piso moral comum que poderia ser classificado como expectativa de consagração de estágio civilizacional comum para a humanidade. Este patamar civilizacional comum precisa ser analisado à luz das diferenças sociais, culturais e religiosas, paralelamente às absolutamente idênticas necessidades básicas que a condição biológica impõe aos seres humanos. A resposta eficaz a estas demandas mínimas incluem aspectos como providenciar calorias diárias e cuidados mínimos que foram absolutamente desprezados pelo regime nacional-socialista e, especialmente, em sua organização dos campos de concentração, passagem que torna observável que a organização para a morte pode ocorrer tanto através da ação positiva (retirar diretamente a vida) como por ação omissiva (organizar a ocorrência da morte por ausência de condições básicas para a vida), estruturas concebidas sob a articulação direta com a macroestrutura econômica, que dela aproveita em escala sistêmica global. O enfrentamento desta escalada do mal em dimensões inauditas encontra abordagem legal em Jackson apontando aos fundamentos de ordem moral do direito, especialmente denotativos do ponto nevrálgico daquele julgamento que era a responsabilidade moral individual (cf. TUSA; TUSA, 1985, p. 155) pela comissão da morte em grandeza industrial.
Relativamente aos procedimentos e regras internas de funcionamento do Tribunal de Nuremberg, os vencedores finalmente chegaram ao consenso de evitar julgamento sumário desejado por alguns aliados. O Promotor-Chefe Jackson legitimava as atividades do Tribunal recordando que em Nuremberg eram garantidos aos réus todos os favores de que a legalidade dispõe, os quais, imperioso apontar, haviam sido concedidos a muito poucas de sua multitudinária quantidade de vítimas, mesmo que dispusesse de posição e poder para fazê-lo (cf. OWEN, 2007, p. 50). A ordem nacional-socialista era essencialmente avessa e marcava ponto de ruptura com as garantias típicas do direito construído sob os alicerces da cultura política ilustrada, desconectado de seus desdobramentos na filosofia política e jurídica alemã moderna.
As sociedades modernas perpassadas por reais pretensões democráticas devem necessariamente estar orientadas pela mediação de conflitos através das instâncias judiciais e a devida submissão aos preceitos de calibragem da culpa de cada um dos atores intervenientes nos atos cujo caráter delinquente esteja sob análise, posterior imposição da devida fixação individual das sanções cabíveis (cf. HARRIS, 1999, p. 491). A individuação das penas foi realizada em Nuremberg, tocando a alguns poucos a absolvição, a outros, altas penas de décadas de prisão, enquanto a grupo não desprezível a gravidade de seus crimes foi avaliada compatível com a aplicação da pena de morte, e o enforcamento não foi reservado apenas a militares, mas também a civis que trabalharam nos mais altos postos ministeriais do III Reich sob o mando direto de Hitler, mas também a nefastos personagens como Julius Streicher (1885-1945).
Streicher serviu imensamente aos propósitos do regime ao envenenar a população alemã com seu antissemitismo durante mais de duas décadas através de seu meio de comunicação, o Der Stürmer, mas também perversos livros infantis antissemitas como Der Giftpilz (O cogumelo venenoso). Tendo o nacional-socialismo alcançado o poder, Streicher passou a estimular o assassinato de judeus, sendo finalmente condenado à morte em face de sua disseminada retórica, sendo a mera incitação ao extermínio o elemento constitutivo do crime contra a humanidade que sustentou a que lhe fosse aplicada a pena de morte (cf. OWEN, 2007, p. 383). Junto a eles foram incluídos no rol dos acusados dois representantes do capitalismo alemão que articularam a dimensão econômica que viabilizou o regime totalitário, a saber, o banqueiro Hjalmar Schacht (1877-1970) e Walther Funk (1890-1960), além de Gustav Krupp (1870-1950), representando a face da indústria pesada alemã que utilizara vastamente a mão de obra escrava, esgotando-a completamente e assim induzindo às circunstâncias provocadoras da morte.
Há relevância em promover a releitura dos termos do Julgamento de Nuremberg, pois estará sempre em causa a análise de que as condutas consideradas graves e puníveis em tempos de guerra, tal como matar ou deixar morrer (por inanição, sede ou falta de auxílio médico) serão ainda mais graves quando ocorram de forma similar em tempos de guerra não declarada, posto que propomos que as ações deste gênero designam a guerra mais claramente do que a declaração formal ou o soar dos canhões, substituídos pela gélida e surda letalidade de códigos, togas politizadas e apoio armado. Nestes termos, quando deparamos com genocídio, estamos a tratar, tanto no primeiro caso de guerra declarada como também neste segundo caso, de que neste a gravidade é ainda superior em face da não declaração de guerra e, por conseguinte, da supressão de qualquer meio de alerta eficiente para permitir a defesa das vítimas.
Após a SGGM os hierarcas nazistas buscaram ocultar-se, fugiram por todas as rotas possíveis, algumas conduzindo a distintas áreas geográficas como a América Latina, enquanto outros optavam pelo suicídio (como Hitler e Goebbels), visando eludir as suas responsabilidades perante o seu povo e o mundo, embora grande parte terminara em mãos dos aliados, como Himmler, que se suicidou à primeira chance já em poder dos britânicos com cápsula de cianureto que carregava oculta. A covardia foi a nota daqueles homens que praticaram o mal inaudito em escala industrial quando, finalmente, a responsabilidade bateu à porta. A pretensão dos aliados era de impor penas exemplares àqueles homens que haviam praticado atos de inaudita selvageria, pois esta seria a única condição para a restauração do Estado democrático de direito, ao tempo em que serviria para cumprir o caráter de desestímulo à futura comissão de delitos, função básica de que está dotada a pena no âmbito do direito penal.
A era que se inicia facultará a realização de julgamentos que terão como objeto crimes que guardam similaridade com aqueles que foram objeto do Tribunal de Nuremberg no que concerne a crueldade. Embora inexista até o momento disposição por parte do poder global para a imposição da morte em escala industrial em espaços territoriais restritos como eram os campos de concentração, começam a ser desenhados espaços territoriais bem mais amplos, de países inteiros, nos quais ocorre a organização ativa para a morte (retirar diretamente a vida através da indiscriminada ação de forças de extermínio disfarçadas de segurança interna) ou através de ação omissiva (organizar a ocorrência da morte por ausência de condições básicas para a vida), portanto, idênticos crimes mascarados pela aplicação de diferentes meios, mas que certamente não dispensarão recursos biológicos.
Os executores do extermínio carregam em seu âmago espírito idêntico ao encarnado historicamente por Hitler, que ao deparar com a iminente derrota ao som dos canhões russos nas ruas de Berlin, não hesitou atribuir a culpa ao próprio povo alemão, alegando sua debilidade e insuficiente força para impor-se aos inimigos no curso daquela cruenta guerra. Os derrotados mereceriam, então, a pior versão das piores derrotas, o massacre total, como forma de purificar o povo pelo sofrimento radical e pudesse renascer com intensa força a partir dos sobreviventes, deduz-se, que por mais fortes, poderiam levar a Alemanha a cumprir o seu destino histórico de grandeza.
Sob esta perspectiva de mundo a doentia mente genocida de Hitler ordenou a destruição de todos os meios de produção e recursos ainda restantes na já devastada Alemanha, tamanhas as perdas impostas pelos severos bombardeios que afetaram cidades importantes como Dresden, Berlin, Stuttgart, München etc. Para empanar a vitória e o proveito econômico dos aliados, Hitler ordenou que fossem destruídas pontes, indústrias e usinas, absolutamente tudo, algo que não foi obedecido pelos seus mais diretos comandados como Albert Speer. Isto exemplifica o grau de corrosividade e destruição que o nacional-socialismo carregou em si e que potencialmente as suas versões históricas cegamente podem aplicar contra qualquer ser vivo. É este o tipo de densidade do mal com o qual o Julgamento de Nuremberg teve de enfrentar-se, e cuja condenação legou à história, humanidade cujas sucessivas gerações, sem embargo, não raro encontra vias para livrar-se das melhores heranças que recebe.
Quando os altos mandos militares são presos e os seus horrendos crimes são expostos ao grande público em toda a sua real dimensão, então, sobem as cortinas. Quando se retira o bastão de mando a estes mandos militares torna-se visível que a farda repleta de insígnias apresenta apenas falsas honrarias ocultadoras de reais manchas de sangue humano inocente e, então, é chegado o tempo de realizar o julgamento da barbárie aliada à covardia que os detentores do poder e das armas impingem à gente desarmada. No momento em que a função finalmente é concluída a humanidade pode enfrentar os seus carrascos, e todos eles devem ser trazidos à luz do dia e expostos aos seus crimes e responsabilidades.
Quando o teatro desce a cortina os responsáveis pelos massacres humanos haverão de descer do palco e, logo, ser apresentados para prestar contas de seu horrendo desempenho, de suas responsabilidades por genocídio que durante o processo de execução é sucessivamente negado. Quando indisfarçável, admitem pontuais atividades de extermínio de indivíduos, buscando justificativas as mais diversas, mobilizando paixões, mas sempre com seus baixos interesses econômicos a mobilizá-los, como os mais vis ladrões associados em quadrilha para roubar a sua gente apresentam supostos fins superiores. Naquela específica quadra histórica, quando finalmente tudo terminava, restava, como sói, nada mais do que o pó dos militares e demais responsáveis pela barbárie. Vivos ou mortos, estes personagens foram (e serão) reduzidos à pó, submergindo voluptuosamente a instituição militar que os abriga sem reação em profundo e histórico opróbrio.
*Roberto Bueno, professor universitário, é doutor em Filosofia do Direito pela UFPR.
Referências
GOLDENSOHN, Leon. As entrevistas de Nuremberg: conversas de um psiquiatra com os réus e as testemunhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HARRIS, Whitney R. Tyranny on Trial. Dallas: Southern Methodist University Press, 1999.
OVERY, Richard. Interrogatorios. El Tercer Reich en el banquillo. Barcelona: Tusquets, 2003.
OWEN, James. Nuremberg. El mayor juicio de la historia. Barcelona: Crítica, 2007.
SMITH, Bradley F. O Tribunal de Nuremberg. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979.
TUSA, Ann Tusa; TUSA, John. The Nuremberg Trial of Major German War Criminal. New York: McGraw-Hill Book Company, 1985.