Por JOSÉ LUÍS FIORI*
Considerações sobre teoria, história, e decisão política
A história contemporânea sugere que Karl Polanyi tenha razão: os grandes avanços da internacionalização capitalista promovem grandes saltos econômicos e tecnológicos, mas ao mesmo tempo aumentam geometricamente as desigualdades na repartição da riqueza entre as nações e as classes sociais. E como consequência, no final dos grandes “ciclos de globalização”, aumenta e generaliza-se a insatisfação das grandes massas, e multiplicam-se as revoltas sociais e reações nacionalistas, ao redor do mundo. O que ele chamou exatamente de “duplo movimento” das sociedades de mercado.[1]
Mas se isto parece ser verdade, não é verdade que estas “inflexões reativas” tenham sempre um viés progressista ou revolucionário. Pelo contrário, elas nunca foram homogêneas, e podem tomar direções radicalmente opostas, sendo impossível deduzir teoricamente e prever de antemão a orientação ideológica e o desdobramento concreto que tomará cada uma destas revoltas, e destas explosões nacionalistas.
Basta olhar para o que aconteceu nas primeiras décadas do século XX, quando as grandes massas saíram às ruas de toda a Europa, como reação contra o aumento da desigualdade e da miséria que cresceram à sombra da acelerada internacionalização capitalista das últimas décadas do século XIX, ao que se somaram as catástrofes sociais provocadas pela Primeira Guerra Mundial, pela Gripe Espanhola, e pela crise financeira e econômica que começou no final dos anos 1920 e se prolongou até o início da Segunda Guerra Mundial. E logo se constatará que a revolta social e a explosão nacionalista daqueles anos, assumiram formas muito diferentes, e as vezes diametralmente opostas, em distintos países, e por vezes, dentro de um mesmo país.
Neste período, a polarização das classes e das nações e o aumento generalizado da miséria contribuíram para a explosão de inúmeras revoltas e/ou revoluções comunistas, na Alemanha, na Hungria, na Polônia, na Itália, na Espanha, na Rússia e em vários outros países, dentro e fora da Europa, incluindo evidentemente a Revolução Soviética, em 1917. Mas neste mesmo período, esta mesma miséria, e esta mesma polarização entre as nações, contribuíram igualmente para a multiplicação de outras tantas paralelas de tipo “fascista” ou “nazista” que se multiplicaram por toda a Europa, alcançando sua trágica vitória na Itália e na Alemanha, mas também em Portugal e na Espanha, onde os fascistas se mantiveram no poder durante 40 anos, mesmo depois da IIGM.
Em todos estes casos, a ascensão fascista contou com o apoio da grande burguesia, mas também contou com o apoio de grandes massas de miseráveis e de “excluídos sociais” de todo tipo, revoltados contra o fracasso social da globalização capitalista e do imperialismo colonialista da segunda metade do século XIX. E todos esses casos culminaram com a formação de governos autoritários movidos pelo mesmo ódio contra as minorias, os estrangeiros, e seus opositores que foram exterminados, como foi o caso notável dos judeus, mas também, dos comunistas, dos ciganos, dos deficientes físicos e de todos que se opuseram ao regime e que foram mortos e exterminados aos milhares até o momento de suas derrotas na Segunda Guerra, no caso da Itália e da Alemanha.
E agora de novo, nesta terceira década do século XXI, pode-se dizer que o mundo está atravessando uma nova onda de revoltas e rupturas sociais e nacionais, alimentadas, uma vez mais, pelo aumento da desigualdade, do desemprego e da miséria que se multiplicaram de forma exponencial a partir da década de 90, mas sobretudo depois da crise financeira de 2008. Neste ponto Polanyi acerta de novo, mas agora também é impossível prever o futuro exato e o desfecho desta nova “era das rebeliões”.
Assim mesmo, desde já, e até aqui, o que mais surpreende nessas novas revoltas, são duas coisas que se destacam dentro do espaço eurocêntrico, mas também, de uma forma um pouco diferente, no próprio caso dos Estados Unidos:
(i) a primeira, tem sido a fragilidade das forças de esquerda, e a baixa participação das forças progressistas na liderança dessas revoltas, com exceção do caso da Grécia, em 2013, e do Chile, Equador e Colômbia, em 2019. Sendo que no caso da Grécia, a revolta foi rapidamente domesticada pela União Europeia, e foi finalmente derrotada pela própria direita grega; (ii) a segunda, tem sido a força e a agressividade generalizada das novas lideranças e ideias da extrema direita, associadas ao fundamentalismo e ao nacionalismo religioso, seja ele cristão, ortodoxo, judeu ou islâmico, dependendo de cada país e de cada grupo social. Na Hungria e na Polônia, sem dúvida alguma, mas também em Israel e em vários países islâmicos do Oriente Médio; na Inglaterra e na Holanda, sem dúvida alguma, mas também nos Estados Unidos e na Rússia; na Itália e na República Checa, sem dúvida alguma, mas agora também na Suécia, que foi uma espécie de Vaticano da social-democracia europeia durante todo o século XX.
Poderia se falar de algumas outras vitórias da social-democracia nos países ibéricos e nórdicos, ou mesmo na Alemanha, mas mesmo estas vitórias eleitorais tem sido revertidas em alguns casos, ou estão sendo atropeladas e dispersas pela nova guerra europeia entre a Rússia e a OTAN, que está mobilizando os piores instintos e ódios nacionalistas da longa história de guerras do Velho Continente, e da sua prolongada disputa de suas “potencias ocidentais” com a Rússia, começando pela invasão dos Cavaleiros Teutônicos do Papa, em 1240; a invasão das tropas de Bonaparte, em 1812; e finalmente, a invasão da Alemanha nazista, em 1942.
É muito difícil resumir em poucas linhas, uma história tão longa, e uma conjuntura tão complexa. Mas se for necessário apressar a análise e escolher um fator mais importante para explicar o enfraquecimento dos socialistas e dos social-democratas europeus frente às novas revoltas sociais, diríamos que foi sua perda de sintonia com a esperança de futuro dos europeus, em particular de suas grandes massas de desempregados e excluídos sociais.
Essa limitação da social democracia tem raízes mais profundas e antigas, porque os social-democratas sempre tiveram dificuldade de enfrentar e incorporar a “questão nacional” dentro do seu projeto para a Europa, e nunca conseguiram conciliar o seu internacionalismo dos períodos de paz, com seu nacionalismo das horas de guerra entre seus próprios estados, e contra suas colônias. Por isto mesmo, os socialistas e os social-democratas europeus não participaram nem apoiaram a ideia inicial, nem nunca tiveram nenhuma identificação popular com o projeto de unificação europeia. Mas apesar disto, apoiaram incondicionalmente o projeto de expansão da OTAN dentro e fora da Europa, depois do fim da Guerra Fria.
Por isto hoje, na hora desta grande crise atual da União Europeia, eles tampouco conseguem se posicionar, seja a favor de uma integração meramente econômica, como propõem os liberais, seja a favor da criação de um novo Estado europeu, como propõem os nacionalistas. Além disto, na década de 1990, abandonaram seu próprio projeto de aprofundamento do “estado de bem-estar social”, ao aderir ao novo receituário econômico neoliberal da austeridade e da diminuição do papel social do estado, e por isto hoje tampouco tem nada de novo para dizer sobre esta nova onda de desemprego e de miséria dos europeus.
Foi assim que os socialistas e os social-democratas europeus acabaram perdendo sua própria identidade ideológica e política, e o que é pior, perdendo sua capacidade secular de mobilização das “grandes massas” que hoje estão aderindo às ideias, soluções e distopias propostas pela nova extrema-direita europeia, que está assistindo de camarote a desintegração do continente, acelerada pela Guerra da Ucrânia. Seria muito importante, mas não cabe analisar em tão poucas linhas o processo paralelo e similar que os democratas norte-americanos estão enfrentando no seu próprio país.
Mas o panorama europeu que foi traçado já é suficiente para compreender a importância crucial da batalha que está sendo travada no Brasil, neste momento, entre esta nova direita global e o conjunto das forças políticas locais que se uniram para barrar o avanço do velho “fascismo” de tipo europeu que se uniu ao novo “nacionalismo cristão” de direita, de origem norte-americana, que vem sendo injetado há longos anos na sociedade brasileira. Uma verdadeira guerra entre duas visões da humanidade, absolutamente antagônicas e, ao mesmo tempo, no caso brasileiro, entre duas concepções opostas, de estado, de sociedade, de economia, de sustentabilidade, de cultura, de civilização e de futuro.
Neste momento é fundamental que os progressistas apresentem à sociedade brasileira um projeto de futuro que seja inovador e que seja diferenciado, combinando uma verdadeira estratégia de guerra contra a desigualdade, com um projeto simultâneo de construção de uma nação, popular e democrática, e de uma grande potência pacificadora capaz de influenciar as gigantescas transformações mundiais que estão em pleno curso.
É fundamental neste momento conscientizar e conquistar o apoio de todos os brasileiros para um novo projeto de futuro solidário e compartido por todos, capaz de vencer a distopia teológica e ultraliberal da salvação de cada um por si, mesmo que seja contra todos os demais, com a benção de Deus e a mão invisível do Mercado. Nesta hora, mais do que nunca, é preciso inovar e apresentar com coragem e absoluta claridade, ideias e projetos, mas sobretudo, um ”sonho de futuro” capaz de sintonizar com a imaginação e a esperança de todos os brasileiros.
*José Luís Fiori é Professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
Nota
[1] Teoria discutida no artigo, “A conquista da soberania”. Disponível em A Terra é Redonda.
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