Por OTAVIO ALMEIDA FILHO*
A identidade baiana forjada no mito da alegria é desvelada como uma fina camada de verniz sobre uma profunda crise civilizatória. O barulho dos trios e a fervorosa economia da fé não conseguem calar o silêncio ensurdecedor da miséria e do abandono que definem o estado real
“A ti trocou-te a máquina mercante, / Que em tua larga barra tem entrado, / A mim foi-me trocando, e tem trocado, / Tanto negócio e tanto negociante” (Gregório de Mattos).
1.
A Bahia não é a terra da felicidade. A Bahia, no conjunto dos estados da federação brasileira, é uma tragédia monumental. É dotada de um sem número de poetas com a capacidade fascinante de fingir que é dor as dores que deveras vivem. Afinal, o Brasil nasceu aqui. Dizer isso, que o Brasil nasceu aqui, é evidentemente forçar uma barra, um porto da barra cheio de caravelas colonizadoras, que logo descobriram que aqui, em se plantando tudo dá.
Nos meus dias de ócio e melancolia tropical vejo, pela janela do meu quarto, a Ilha do Medo, que fica entre as cidades de Salinas da Margarida e Itaparica, na Ilha de Itaparica. Sem muito esforço, diante da beleza resplandecente das águas tropicais destes mares do sul, é possível imaginar caravelas portuguesas, francesas, holandesas ou inglesas navegando por suas águas que provocavam inveja aos europeus quando por aqui chegavam e ainda aportam, vez por outra. Com um pouco mais de esforço, e pequenos delírios, é possível ver transitar os carros da BYD que em breve atravessarão a ponte que os chineses estão construindo unindo a cidade do Salvador à Ilha de Itaparica.
A Bahia de Todos os Santos, Kirimurê como a chamavam os povos originários, é uma baía de baías. Com suas 56 ilhas, guarda no seu ventre, duas outras baías: a de Aratu e a do Iguape, e integra o que se conhece como o Recôncavo Bahiano. Tristes Trópicos, Triste Bahia, oh quão dessemelhante! O poeta Gregório de Matos escreveu esse trágico poema para que outro grande poeta, Caetano Veloso, séculos depois, o musicasse revivendo, com sua voz maviosa, a dor das tragédias que se abatem sobre essa terra que deu “tanto açúcar excelente pelas drogas inúteis”.
Desde então a Bahia só conhece tragédias! Mas claro, não sejamos assim tão pessimistas. Aqui brotou tanta beleza, tanta poesia, literatura, tantos deuses e diabos em terras do sol e em terras do sem fim. Gabrielas em sabores de cravos e canelas e navios negreiros perguntando “Deus oh Deus onde estás?”.
Falar da Bahia é peregrinar entre poesias e mortes, entre peles morenas de cravos e canelas, e procissões se arrastando feito cobra pelo chão esperando aqui na terra aquilo que Jesus prometeu. Ah! Mas Jesus se esqueceu que prometeu coisas melhores e permitiu que Edir Macedo, esse enviado do Satanás, escrevesse o livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? que, após ter vendido três milhões de cópias foi alvo de uma Ação Civil Pública do Ministério Público Federal (MPF) em 2005, mas não totalmente proibido, pois pode ser encontrado nas boas casas do ramo.
A cidade do Salvador tem uma igreja católica para cada dia do ano. Hoje, no entanto, esse número é, certamente, bem maior. E para completar, agora, além dessas, os evangélicos, na trilha dos roqueiros, criaram as igrejas de fundo de garagem, que nascem pequenas e logo se transformam em mega templos alimentados pelos PIXes dos fiéis sedentos de retornos dos seus investimentos na bolsa das ações religiosas. Isso sem falar dos Terreiros de Candomblé que, num exótico sincretismo, convivem com padres pais de santo e de pais de santo devotos de Santas Bárbaras e outras Iansãs espalhadas pelas folhas dos banhos purificadores. E como somos a terra da felicidade, de acordo com o clichê da Sec de Turismo do Estado, não poderia deixar faltar o dia da FreiJoada: o dia em que os freis do Mosteiro de São Bento promovem uma lauta feijoada regada à agúa benta. “Oh Deus salve o oratório…”
2.
Na cidade de Itabuna, lembro bem, um outdoor gigantesco no pátio da igreja de São José, que estava em obras, estampava a intrigante “poesia”: Igreja de São José, abençoada por Deus, impermeabilizada pela Vedacit. Gregório de Mattos deve, do além, sorrir ao ver essas tiradas de singela beleza poética.
E assim caminhamos nos benzendo enquanto os atabaques fazem suas revoluções identitárias promovendo a ancestralidade que clama por cotas e reconhecimentos negados pelos brancos escrotos de olhos azuis esverdeados que habitam o olimpo dos alphavilles.
Pois bem, é nesse caldo cultural regado a dendê, penitências e investimento na bolsa das ações religiosas, que a alegria se instala. A alegria, esse estado de júbilo e felicidade, na Bahia é algo um tanto misterioso. Com isso quero dizer que, considerando o nosso entorno caótico, violento, miserável e exasperador torna-se um desafio compreender por quais razões a Bahia é conhecida como “le pays du bonheur“. Não aceito pacificamente quando afirmam que o carnaval é um promotor dessa felicidade. Acredito mais é que o carnaval é que torna possível suportar o caos da miséria e da violência. Penso nos Paralamas cantando… “Alagados, Trenchtown, Favela da Maré | A esperança não vem do mar | Nem das antenas de TV | A arte de viver da fé | Só não se sabe fé em quê…”
Às vezes penso que na Bahia a música devia ser criminalizada. Calma, sei que parece um absurdo. Explico: todos sabemos que música é uma palavra de conceito elástico e de volumes estridentes. Por música entendemos de marchas fúnebres a cantos gregorianos, jazz, blues, sinfonias e o 4’33 de John Cage. Platão, o velho e emblemático Platão, já lá atrás chamava atenção para os riscos da música e como ela devia ser objeto da leis da República.
O assunto é vasto. Aqui e agora quero dizer que na Bahia a música, ou – mais precisamente – o volume em que ela é ouvida é assunto de segurança pública, de saúde pública. Os músicos baianos, desses que tocam em trios elétricos, estão quase todos surdos. O volume faraônico do som é uma coisa criminosa. Aqui, nesta pacata cidade de 5.000 hab de Salinas da Margarida, a educação pública está comprometida por conta dos paredões que impedem os pobres estudantes de se sentarem para fazer seus deveres de casa. Claro que existe a lei do silêncio. Mas quem faz cumprir a lei do silêncio. A Polícia? Esqueçam! Não existe polícia para isso.
Nesse particular trágico da presença irresponsável do volume criminoso, a Bahia tem seu lugar de destaque. A terra da felicidade é uma mentira, um engodo, uma tragédia que define nosso destino como atraso, trilhando o caminho mais abjeto que se possa imaginar.
3.
Santo Amargo da Putrefação é uma ironia com a cidade de Caetano Veloso e sua irmã Maria Bethania. Santo Amaro da Purificação também é a cidade de Assis Valente. Esse atormentado ser sabia, muito bem, que nas dobras dos sinos e das palavras, a nossa dor se revela na desesperança das Boas Festas do Natal.
Anoiteceu
O sino gemeu
E a gente ficou
Feliz a rezar
Papai Noel
Vê se você tem
A felicidade
Pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem
Oh, anoiteceu
A canção “Boas Festas“, de Assis Valente, foi composta em 1932 e gravada pela primeira vez em 1933, com arranjo de Pixinguinha e gravação de Carlos Galhardo.
*Otavio Almeida Filho é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
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