Saudades do português

Imagem: Andreea CH
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PEDRO PENNYCOOK*

Uma língua que me abraça e, com a mesma força, me empurra para fora

Lembro do lançamento de meu primeiro livro.

Era uma pequena coletânea de poesias, agrupadas sem revisão e bancada a custos pessoais. Foi lançado numa livraria de shopping. Adquiria sua dignidade literária artificialmente. Uma mesa deslocada, cortando o que cotidianamente cumpria função de corredor, um terno comprado às pressas, uma caneta-tinteiro emprestada de colegas. Seriedade que, à sua forma, buscava camuflar as palavras mal escritas que eram celebradas ali. A dignidade possível.

Nunca havia visto minha avó com um livro em mãos. O meu era o primeiro. Ela o olhava sem saber muito bem o que fazer com aquele objeto estranho. Segurava-o com um misto de zelo e estranhamento, apego profundo ao mesmo tempo em que distante. Ela o segurava com as mesmas mãos que me abraçava.

Era uma extensão de mim, meu corpo enfim folheado, misto de quem precisa agarrá-lo pelas palavras para que não a escape e empurrão para confluí-las ao inevitável. Minha infância toda eram aquelas mãos me abraçando como objeto estranho. Família era não saber o que fazer exatamente de mim. Amor como pertencimento indecifrável.

Meu primeiro trabalho de filosofia saiu em língua estrangeira.

Era necessário que fosse assim. E me espantava saber que, embora tecnicamente desconhecesse o inglês, a familiaridade com a qual minha avó impunha-o era a mesma que a vi segurar aquele folheto de poemas. Quinze anos atrás. Ela o segurava com a segurança de quem não precisava ler para entendê-lo, uma segurança que jamais tive mesmo quando os escrevi. Lia-me com as mãos.

Aprendi com minha avó que se lê com as mãos.

Como cafuné.

Era a gratuidade com a qual aquela língua me despossuía que me assombrava. Meu primeiro “trabalho de verdade”, estreia em filosofia, e não falava a língua em que nasci. Espantava que aquele livro me lembrava não falar a língua da minha família. Talvez nunca tê-la falado.

Dépaysement.

Agora somente sua estrangereidade exacerbava em letras o que sempre me foi experiência solitária e interna. Como sonhei com aquele dia, como perscrutei aquela língua. Obstinadamente. Eu a desejei todos os dias, sentindo seus ritmos, encostando em seus gestos, desenhando seus sons. Fazia de minha boca terra arrasada da qual ela pudesse finalmente brotar.

Aprendi inglês como quem conquista para si uma voz.

Foi preciso aprender outra língua para tal.

Minha.

Não era conquistá-la a lembrança de ter em mãos aquilo que por tanto tempo sonhei? E, no entanto, ainda era a mesma sensação das mãos que há quinze anos as carregavam. Era o mesmo estranhamento e, de certa forma, eram as mesmas palavras que ali se continham. Continuavam a nascer numa língua permanentemente estranha. Nasce-se sempre como membro duma língua. Família é saber falar uma língua que não lembramos de aprender. As mãos me entendiam.

Talvez sempre tenham entendido.

Falavam numa língua estranha que entendia perfeitamente.

Uma língua que me abraça e, com a mesma força, me empurra para fora.

*Pedro Pennycook é doutorando em filosofia na University of Kentucky.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Como funciona a cabeça de um entreguista?
Por JEAN PIERRE CHAUVIN: A reeleição de Donald Trump voltou a atiçar sem-corações e dementes entreguistas. Certamente haverá quem defenda o “tarifaço” trumpista, como se confirmasse a virtude de um estadista
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES