Por PRISCILA FIGUEIREDO*
Resumo paradidático de um conto de Robert Walser
(Parte I)
Não percam tempo
lendo estas linhas degradantes,
vão direto ao conto[i] —
quanto a mim, a impressão
que me fez azucrina
como as indecisões na vida.
Um golpe duro
ele desferiu nesta leitora,
atordoada tanto quanto ele ficou
com a morte da senhora Wilke.
Esta lhe alugou um quarto —
um dos muitos que ele e seus
personagens viviam a alugar.
Não era uma água-furtada, era a ruína
de uma nobreza antiga,
o quarto e o edifício todo.
O chão e a escada exalavam odor
e som refinado, mas fora de época.
Então ele sentiu que podia se instalar
bem nessa casa. Estava feliz: era um canto
adequado, e nele se revezavam escuridões
claras e escuridões mais sombrias.
A cortina era gasta, mas a qualidade
do tecido e do drapeado mostrava
a elegância insolente de outrora
(a fidalguia que não virou destroço
custa caro, é inviável —
nenhum caminho ela projetou
para pedestres como Walser,
e se oferecesse um, bem, ele veria
o fundo feio de seu fausto,
e correria logo pra estrada).
Para os que amam a beleza
de bolso vazio, o requinte ruinoso é
um contraste que faz sonhar —
nele sentimos certa força moral;
compaixão e respeito é bem o que inspira.
Então ele ficou com o quarto.
Foi quando a senhora Wilke lhe perguntou
o que fazia para viver. “Sou poeta!”, respondeu,
e ela saiu em silêncio — era o que eu
faria também.
Por que a exclamação? Por que o entusiasmo?
Que vexame essa resposta enfática.
Bem, era só o que ele fazia de fato:
escrevia, escrevia, escrevia —
que mais poderia dizer?
Que tinha sido também criado,
(aliás de um conde),
bancário e escriturário,
que por certo disse mil vezes,
mil vezes em dois meses,
(porque mais que isso
não parava empregado)
Prefiro não!, Prefiro não,
martelando qual um passarinho?
Rigorosamente ele era poeta –
mas como não teve vergonha,
não recorreu às meias-palavras?
Não disse: “Mexo com isso, mexo com aquilo”?
Nos anos 20 do século 20
apresentar-se assim já não passava ileso.
Só concluo que devia ser
pura insolência, quem sabe gozação
e um pouco de desprezo.
Tonio Kröger, dando entrada no hotel,
tascou um “escritor?” no campo profissão —
ele não desconhecia que a dignidade
do escritor se extinguia.
A interrogação perguntava:
isso vale ainda? isso vocês reconhecem
como um ganha-pão decente?
Posso dizê-lo em bom som?
Pois eu, famoso escritor, já não sei mais,
não boto a mão no fogo por mim…
Entre mim e um delinquente
não vai um estirão, não.
Virando as costas,
talvez pensasse a Senhora Wilke:
“Ah estou frita, albergando um poeta, imagine —
decerto vive, como eu [logo o saberíamos],
da mão para a boca; isso quando há mão
para levar à boca”.
Mas sua reação não foi para ele
um banho de água fria,
pois logo emendou consigo:
“Neste quarto bem poderia
morar um barão”.
Tão alto, tão baixo!
Barão, poeta e bolso vazio —
ah e melancolia, que o embotava
e derrubava na cama por dias.
Ele nos conta dela, conciso,
pela palavra mais simples e antiga.
Seu pensamento descia
o monte do sublime,
ficava estreito, repetitivo:
o mundo é mau, o mundo é injusto.
De minha parte eu pensava: você tem
um dinheiro guardado, Walser?
Alguma retaguarda?
Em todo caso as florestas que atravessava
o traziam de volta pra vida
sussurrando com desvelo de família:
Ei, Robert, deixe essa acídia,
então por nós e outras maravilhas
não vale a pena estar vivo?
Venha nos ver mais vezes,
A natureza te quer bem.
Uma hora a senhora Wilke,
talvez sem bater na porta,
com a maior franqueza o exorta
a sair logo da cama:
“Não gosto nada dessas coisas,
não quero em minha casa
um homem que só fica deitado!”.
Um pensamento prático tem sucesso às vezes
com aqueles a quem tais pensamentos faltam…
[Daí eu associei, não pude evitar:
nossa, foi quase o que disseram, mas
sem eficácia, a Samsa, ao Gregor,
que nunca mais saiu da cama!]
Walser não fez mau juízo da velha
— de uma duas: ou ele quis passar por bonzinho
nos deixando o trabalho sujo de falar mal dela,
ou ele mal se importou com isso.
Ou pode ser que um fato ainda a narrar
tenha vindo a mudar o que ele
já tomava por fixo.
Então saiu mesmo da cama
e ferrou no trabalho, como se diz —
não sei se então se dizia.
Do resto da narrativa vou dar notícia
na segunda parte. Esse resto merece
a maior atenção de que formos capazes.
*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).
Nota
[i] “Senhora Wilke”, traduzido com competência e sensibilidade por Sergio Tellarolli para a coletânea Absolutamente nada (editora 34, 2014).