Ser antissionista é ser antissemita?

Imagem: Ron Rov
image_pdf

Por GUSTAVO ALVES LIMA*

O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel

Em geral, quando se inicia um debate crítico a respeito da política do Estado de Israel, suas ações militares e de intervenção em território da Palestina ou mesmo em outras regiões do Oriente Médio, surgem diversos comentários de seus apoiadores em sua defesa, para explicar e justificar as barbáries cometidas pela “única democracia do Oriente médio”. Dentre esses comentários, surgem diversas acusações, sendo a mais grave acusar de antissemita todos os que se opõem ao Estado e a política de Estado de Israel.

Toda crítica política ao sionismo é tomada como sinônimo de antissemitismo, segundo intelectuais sionistas e apoiadores. De fato, dentre algumas críticas ao Estado de Israel, existem manifestações antissemitas de organizações neonazistas e, entre outras, de organizações que se declaram islâmicas. O ponto central é contextualizar ao leitor como cada conceito se encaixa nessa discussão, para não serem mal interpretados ou tirados de contexto como comumente tem ocorrido.

De acordo com Santos (2018, p. 12) “Sionismo é um movimento político com aspirações nacionalistas, que afirma o direito à existência de um Estado Judaico” e que historicamente propõe a erradicação da diáspora judaica, tendo como seu principal teórico o judeu Theodor Hetz (1860-1904). Dentro do movimento sionista, três locais foram pensados para construção do Estado: Argentina por ter uma das maiores comunidades judaicas do mundo, Uganda por estar sob mandato britânico na época de negociações com o movimento sionista e a Palestina por também estar sob mandato britânico e ser uma região historicamente importante para os judeus.

Hetz teorizou e concentrou essas ideias em sua principal obra O Estado Judeu (1896). Essa ideia ganha força frente aos violentos atentados e perseguições contra judeus no ocidente sobretudo na Inglaterra, Alemanha, França e Rússia que se intensificaram durante os séculos XVIII e XIX. Essas perseguições a judeus ficaram conhecidas como pogroms.[i]

Antissionismo é um termo utilizado por ativistas sociais dos Direitos Humanos, movimentos que se opõem à ideia de criação de um Estado nacional judaico na Palestina histórica e sobretudo que se opõem à política do Estado de Israel. Antissemitismo é o preconceito e discurso de ódio contra semitas, englobando principalmente o ódio contra judeus. Os Semitas englobam várias etnias como judeus, árabes hebreus, arameus, fenícios e assírios.

Durante o século XX a máquina de propaganda israelense se apropriou do termo “antissemita” como preconceito cometido apenas contra judeus excluindo os outros povos semitas. Em protesto a isso alguns autores preferem utilizar o termo “judeofobia”. Um judeu étnico, por lógica, nunca poderá ser antissemita, mas pode manifestar oposição política e religiosa ao sionismo. Muitos judeus étnicos e religiosos ortodoxos rejeitam veemente o Estado judeu ou como preferem chamar o Estado sionista. A comunidade judaica no pós-Segunda Guerra Mundial passou por uma de suas maiores rupturas da história quando se tratou de apoiar a criação do Estado de Israel e consequentemente a política de imigração para a Palestina onde se tornaram colonos.

A ideia de que durante 2000 anos os judeus anseiam retornar à Terra Santa é falso e desmentido pela comunidade judaica tradicional. Rabinos fiéis a interpretação da Torá afirmam constantemente em seus protestos contra o sionismo que o retorno à Terra Santa, segundo o livro sagrado, só poderia ocorrer por ocasião do advento do Messias.

“Os judeus piedosos que criticam publicamente o sionismo crêem que devem agir assim por causa de obrigações impostas pela Torá. A primeira é impedir a profanação do nome de Deus. Como o Estado de Israel pretende atuar em nome de todos os judeus do mundo, inclusive em nome do judaísmo, esses judeus sentem-se obrigados a explicar publicamente, principalmente aos não judeus, o que consideram uma interpretação fraudulenta. A segunda obrigação deriva do preceito de preservar a vida humana. Ao ressaltar a rejeição judaica ao sionismo, eles esperam afastar os judeus da animosidade que, em sua opinião, o Estado de Israel provoca entre as nações. Desejam evitar que os judeus de todo o mundo se transformem em reféns das políticas israelenses e de suas consequências. Afirmam que o Estado de Israel deve ser conhecido como o “Estado sionista” e não como “o Estado judeu” ou “Estado hebreu”.[ii]

Essa tentativa de assimilar antissionismo a antissemitismo é uma grande ferramenta por parte do Estado de Israel e seus aliados para silenciar qualquer crítica direcionada aos mesmos como se fossem críticas ao judaísmo e aos judeus. Isso não passa de uma forma discursiva genial para silenciar os críticos do sionismo israelense. Interessante observarmos que esse tipo de silenciamento tem se tornando uma política por parte do Estado sionista e seus apoiadores.

Podemos utilizar como exemplo de silenciamento o professor Steven Salaita[iii] que em 2014 teve sua oferta de emprego rescindida pela universidade de Illinois após uma série de tweets que direcionaram críticas ao Estado de Israel. Após muito lobby por parte do movimento sionista americano o professor não foi aceito em qualquer outra universidade, tempos depois o professor entrou na justiça e conseguiu reverter a situação entrando em acordo com a universidade e recebendo cerca de US $ 600.000.

A associação dos judeus com o Estado de Israel é quase que automática quando mencionada em mídias ou meios acadêmicos. Quando quaisquer opositores ferrenhos do sionismo gritam pelo fim do Estado de Israel e pedem a autodeterminação do Estado Palestino pluri étnico e laico logo são associados como inimigos do povo judeu espalhados pelo mundo. Os sionistas fizeram algo muito bem além de expulsar os palestinos de suas terras e serem responsáveis pela diáspora do povo descendente dos filisteus, souberam criar e reforçar a ligação da comunidade judaica mundial com o Estado de Israel se apresentando como a vanguarda dos judeus. A escola de pensamento e propagação das ideias sionistas não deve de modo algum representar o judaísmo, assim como a Al-Qaeda e o ISIS-Estado Islâmico não representam o Islã.

A filósofa judia Judith Butler vê nessas associações consequências extremamente negativas para o movimento judeu: “Nos Estados Unidos, fiquei alarmado com o número de judeus que, desanimados com a política israelense, incluindo a ocupação, as práticas de detenção por tempo indeterminado, o bombardeio de populações civis em Gaza, buscam negar sua condição de judeu. Eles cometem o erro de pensar que o Estado de Israel representa o judaísmo para nossos tempos, e que, se alguém se identifica como judeu, apoia Israel e suas ações. E, no entanto, sempre houve tradições judaicas que se opõem à violência estatal, que afirma a coabitação multicultural e defendem princípios de igualdade, e essa tradição ética vital é esquecida ou marginalizada quando qualquer um de nós aceita Israel como base da identificação judaica”.[iv]

Antissionismo não é de modo algum antissemitismo, pelo mesmo fato de ser antinazista não significa ser contra o povo alemão. Ser contra o sionismo israelense e sua política de apartheid, segregação, violação dos direitos humanos, limpeza étnica contra os palestinos, não pode ser considerado um ato “antissemita”. O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel.

Gustavo Alves Lima é graduado em história pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Notas


[i] Pogroms (em russo “destruição”): Eram massacres organizados para o aniquilamento de qualquer grupo ou classe, especialmente com a conivência do governo russo contra os judeus. O termo foi usado pela primeira vez fora da Rússia ao tempo dos levantes antijudaicos organizados pelas Centúrias Negras na Rússia no ano de 1905, mas é frequentemente aplicado às insurreições russas anteriores, a partir de 1881 (ROTH, 1966, p. 976).

[ii] Rabkin, Yakov M. Judeus contra Judeus – a História da Oposição Judaica ao Sionismo. Cotia, SP: Acatu, 2009. p.17

[iii] professor e intelectual palestino-americano que ficou conhecido por ganhar um processo contra a universidade de Illinois. https://www.thenation.com/article/archive/why-unhiring-steven-salaita-threat-academic-freedom/

[iv] Judith Butler responds to attack: ‘I affirm a Judaism that is not associated with state violence’ Judith Butler on August 27, 2012 – Mondoweiss, Disponível: <http://mondoweiss.net/2012/08/judith-butler-responds-to-attack-i-affirm-a-judaism-that-is-not-associated-with-state-violence/>


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES