Por JEAN MARC VON DER WEID*
Como explicar a queda de popularidade do governo e do presidente Lula?
Três pesquisas de opinião coincidiram nas suas avaliações, acendendo a luz vermelha para os membros do governo e para a militância dos partidos progressistas e dos movimentos sociais. Não vou comentar aqui o conjunto de dados publicados, mas quero ressaltar aquele que me parece o mais preocupante: entre os eleitores de Lula em 2022, 8% retiraram o seu apoio entre dezembro e março, acentuando uma perda significativa desde a eleição.
Lula conta hoje com o apoio (ótimo e bom) de apenas 61% dos seus eleitores de 16 meses atrás. Não consegui os dados completos desta pesquisa (no caso a do Ipec) e das anteriores para saber a evolução desse apoio desde as eleições. Imagino que nem no dia das eleições Lula teria 100% de apoio entre os seus eleitores, já que uma parcela importante lhe deu o voto para barrar Jair Bolsonaro, mas sem qualquer cacoete petista ou progressista. Mas para ligar as sirenes de alarme os dados acima são suficientes.
Por outro lado, o energúmeno que nos “governou” por quatro anos de incessantes ações visando minar a democracia, mostrou sua capacidade de mobilização na manifestação do dia 25 de fevereiro, levando 180 mil vociferantes militantes para a Paulista. Foi a maior manifestação do bolsonarismo até agora, maior até do que aquelas em que ele usou recursos públicos e a máquina governamental para seus propósitos. A manifestação mostrou duas coisas importantes: (i) que Jair Bolsonaro está acuado e com medo e (ii) que seus seguidores estão com a faca entre os dentes e prontos para o combate.
¿Como explicar este fenómeno? A aposta de Lula no seu primeiro ano de governo foi uma réplica brasileira da consigna dos democratas americanos nas eleições que levaram Bill Clinton à presidência dos EUA: “é a economia, estúpido!”. Retomando seus programas sociais dos anos 2004/2010, Lula acreditou que as benesses trariam uma maioria confortável da opinião pública para apoiar seu governo. Por outro lado, várias iniciativas no campo da promoção do desenvolvimento, necessárias para angariar recursos para investimentos públicos assim como para garantir mais empregos e ampliação da renda das famílias ao longo do seu mandato, ficaram muito aquém do necessário.
Sim, houve uma recuperação do emprego, mas queda nos investimentos. Houve uma pequena recuperação nos gastos das famílias, mas ainda limitada pelo extremo endividamento herdado do período anterior (que começa no segundo governo de Dilma, é bom não esquecer), parcialmente enfrentado pelo programa Desenrola. A inflação caiu para o centro da meta e o dólar está um pouco mais fraco, mas os preços dos alimentos seguem em patamar alto e os consumidores ainda não sentiram no bolso a bonança estatística. E os empregos reconquistados são de baixa remuneração e centrados na informalidade. Em resumo, para que a economia chegue a definir positivamente o sentimento do eleitorado falta muita coisa ainda, embora este começo tenha sido melhor do que a Faria Lima esperava.
Por outro lado, é preciso constatar um outro fenômeno na opinião pública: temas identificados como ideológicos (“costumes”) foram muito importantes nas últimas eleições e deram a um governo desastroso na economia um fôlego eleitoral inesperado pelos analistas e a campanha permanente nas mídias sociais do bolsonarismo vem batendo bumbo e acentuando as críticas nesta vertente.
Há também velhos temas que ressurgem com força, em particular a percepção da opinião pública do desmonte dos dispositivos de controle da corrupção. Embora abundem os fatos que demonstram uma disseminada corrupção no governo do energúmeno (incluindo vários processos acusando o presidente, sua família e seus apaniguados) e a contribuição do bolsonarismo para o desmonte do combate à corrupção, a opinião pública dirige sua ira a Lula e seu governo. E um tema nada novo, mas que se exacerba a cada dia, veio trazer desgaste ao governo, mesmo sem que ele tenha poderes diretos para enfrentá-lo: a questão da segurança, vivida dramaticamente pelos mais pobres (base do eleitorado de Lula), submetidos ao controle de amplos territórios urbanos e rurais por milícias e traficantes e assolados por polícias violentas que perseguem preferencialmente os negros.
Finalmente, dois fatos impactaram a opinião pública neste começo de ano, ambos relativos às ações de Lula no campo internacional. O primeiro foi a comparação descabida feita por Lula, equiparando a política homicida do governo de Israel com o Holocausto promovido por Hitler antes e durante a segunda guerra mundial. A diplomacia brasileira e o próprio Lula estavam bem na fita até esta declaração, mas o “deslize” verbal abriu uma frente de debates que permitiu uma contraofensiva de Benjamin Netanyahu e do sionismo, distraindo a atenção dos horrores perpetrados por seu governo e exército.
Em qualquer circunstância, a comparação seria um equívoco, mas no quadro político brasileiro, onde a massa de evangélicos, fustigada pela indignação (hipócrita) dos pastores bolsonaristas, percebe a frase como um ataque a israel. Não deixa de ser estranho, para mim, esta defesa cega do governo de Israel pelos evangélicos. Ouvi uma explicação surpreendente, não me lembro a fonte: a segunda volta do Messias foi profetizada para ocorrer no reino de Israel, hoje identificado como este estado sionista belicoso. Ou seja, para que o reino de Deus possa descer à terra, este Estado tem que existir. E a pregação deste fim do mundo e vinda do mundo perfeito da redenção é uma marca do neopentecostalismo. Seja qual for a rezão, o fato é que foi entre os evangélicos que Lula perdeu mais pontos.
O segundo tema a impactar a opinião pública foi a declaração de Lula afirmando o seu apoio ao governo de Nicolás Maduro, a mais notória ditadura do continente americano. Declarar que confia nas promessas do ditador venezuelano de que as eleições serão limpas, não foi um deslize de Lula. Esta posição tem sido assumida por ele desde sempre, contra todas as evidências denunciadas no Brasil e no mundo.
Admitir uma “relatividade” do conceito de democracia para passar o pano nas violações cometidas contra os direitos humanos e políticos dos venezuelanos é um insulto aos democratas aqui no Brasil e fragiliza a postura de defensor da democracia assumida por Lula na sua difícil peleia com o energúmeno nas últimas eleições. E o mais espantoso é ver a militância de esquerda apoiando Lula neste quesito. Lula já tinha dado declarações inacreditáveis em favor da outra ditadura perversa das Américas, a Nicarágua de Ortega. Este padrão de dois pesos e duas medidas na avaliação destes regimes ditatoriais lembra o cinismo dos governos americanos desde sempre, apoiando governos militares criminosos em todo o mundo, inclusive no Brasil, desde que rezassem pela cartilha da guerra fria.
Ainda estou por entender a lógica de Lula e de boa parte da esquerda brasileira no tratamento do tema da democracia. Fica a impressão, amplamente disseminada pela direita, de que a adesão de Lula e da esquerda à democracia é apenas conjuntural, quando convém aos seus desígnios políticos. É claro que os críticos de Lula, sobretudo os bolsonaristas, não tem qualquer compromisso com os valores democráticos, mas usam este ponto fraco de Lula para afastar o apoio dos democratas e republicanos que deram ao nosso presidente o voto que o levou a ganhar as eleições.
Sem este centro e até a uma parte da direita, comprometidos com a democracia, Lula teria perdido as eleições e estaríamos com Bolsonaro reeleito e preparando o golpe final nas instituições. Mas a perda de confiança em Lula neste quesito pode ter um efeito fatal nas eleições de 2026, trazendo ao governo os herdeiros políticos de Jair Bolsonaro; Tarcisio de Freitas, Michelle Bolsonaro ou outro Belzebu liberticida.
Para completar esta avaliação parcial deste primeiro ano do governo é preciso lembrar que estamos amarrados e cada vez mais tolhidos por múltiplos fatores que eu abordei em uma série de artigos intitulados “A armadilha”, em março/abril do ano passado. Não vou, aqui, retomar todos os temas dos artigos, mas quero lembrar que todos os perigos que eu assinalei estão sendo confirmados e até agravados ao longo deste quase um ano. Sinteticamente e sem ordem de importância vou tratar de apenas alguns dos temas:
A questão ambiental continua sendo tratada mais como propaganda e declarações de intenção do que de forma concreta. O governo se empenha em promover a venda de automóveis e caminhões e ampliando o uso de combustíveis fósseis no país. Isto é ignorar o mundo científico, que cobra a redução das emissões de gases de efeito estufa oriundos dos transportes como elemento central do controle do aquecimento global. A pressão sobre a Petrobras para reduzir os preços de gasolina e diesel vai na mesma direção. O aquecimento global em aceleração descontrolada agradece.
O governo apregoa a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia como um sucesso para chamar de seu. Apesar do recuo, o patamar dos números de quilômetros quadrados devastados era tão alto no último ano de Jair Bolsonaro que o quadro atual ainda está longe do desejável. Por outro lado, a retirada de madeira de lei segue descontrolada e, sobretudo, o desmatamento e as queimadas se expandiram em todos os outros biomas, sendo que no Cerrado o aumento foi de 50%. Para quem prometeu zerar os desmatamentos em todos os biomas, na COP de Sharm-el-Sheik em dezembro de 2022, o resultado é decepcionante.
(ii) A situação dos Yanomami continua no mesmo nível trágico que precedeu a intervenção do governo federal na reserva, em janeiro de 2023. Como sempre acontece, os garimpeiros ilegais se retiraram parcialmente da terra indígena sem serem incomodados, apenas abandonando a infraestrutura dos garimpos, que foi queimada. Mas já estão de volta, com novas dragas financiadas pelos traficantes que usam a venda ilegal de ouro para lavar o dinheiro das drogas e de outras atividades ilícitas. Os indígenas continuam morrendo de doenças e subalimentação, com números similares aos dos anos Bolsonaro. Era só encenação, aquele grande aparato da operação Yanomami?
(iii) O governo tem a seu favor a aprovação da Reforma Tributária, mas este sucesso tem que ser avaliado com um grão de sal. O que foi aprovado resumiu-se à (necessária e importante) simplificação dos impostos sobre produtos e serviços. Mesmo isto teve um alto preço cobrado pelas negociações com as duas casas do Congresso, estendendo um sem-número de isenções a diferentes setores da economia, notadamente o agronegócio. Estas concessões enfraquecem o resultado e obrigam o governo a aumentar a taxa do IVA, penalizando duplamente os setores não beneficiados. E esta foi a parte da reforma mais fácil de ser conseguida, por contar com a simpatia do setor industrial e de serviços. O que falta, e é muito mais difícil de ser conseguido, é a redefinição dos impostos sobre a renda e as fortunas.
(v) O mais importante dos programas sociais do governo, o Bolsa Família, hoje muito mais turbinado do que nos governos Lula I e II, é apresentado como um super sucesso, mas carece de uma análise mais cuidadosa. 20 milhões de famílias beneficiadas (em números arredondados), ou quase 60 milhões de pessoas, recebendo, no mínimo, 600,00 reais por mês, deveria garantir um forte impacto na condição alimentar e nutricional dos mais carentes. No entanto, os altos custos da alimentação e uma série de outras necessidades dos beneficiários reduziram o efeito do programa. Concretamente, o “Bolsa Família” poderia ser renomeado como “Enche Barriga” e, se o governo quiser efetivamente melhorar a nutrição do povo, vai ser preciso alterar profundamente o programa. Lendo-se as muitas páginas do plano Brasil Sem Fome, podemos contar com muitas propostas, algumas bastante radicais e importantes, mas há pouca definição sobre o como tudo isto vai ser realizado. Mais ainda, em vários programas não há previsão de metas e orçamentos e fica-se sem saber o que e quanto realmente vai ser feito.
Em particular, a produção necessária para garantir a segurança alimentar e nutricional dos mais carentes (para não falar de uma ampla camada de menos carentes, mas ainda malnutridos) está sendo prometida através da repetição dos programas do Ministário do Desenvolvimento Agrário entre 2004 e 2016. Sem uma avaliação do impacto destas políticas aposta-se na sua repetição e pode-se esperar um fracasso igual ao do passado quando elas levaram a uma diminuição relativa da oferta de alimentos e um aumento da produção de commodities.
A esta altura do artigo, os defensores acríticos do governo já devem estar afiando as machadinhas para me cortar em pedaços. O principal argumento contra as críticas aqui alinhavadas é o evidente problema da minoria governamental no Congresso e não tenho dúvida de que este é um entrave muito significativo para o governo. No entanto, para além dos gigantescos desperdícios de recursos públicos exigidos pela compra de votos de parlamentares voltados para suas paróquias, através dos vários tipos de emendas, mantidas sem transparência apesar das injunções do STF, fica a impressão de que o governo gasta mal o pouco que tem sob o seu controle.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
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