Por WOLFGANG LEO MAAR*
Num país com séculos de escravagismo, a questão social se sobrepõe como prioridade à experiência política
No clima eleitoral há quem queira fazer crer que ocorre uma disputa entre dois polos extremos, polarizados. Seriam duas narrativas igualmente distantes da democracia, duas faces de um mesmo autoritarismo radical.
Mas não é assim. Não são duas narrativas. Há uma sociedade que é real efetiva e fatual contraposta a uma narrativa ideológica protofascista e autoritária, antidemocrática, excludente, sustentada numa falsa experiência da realidade que é doutrinada pelas redes.
Há uma verdade objetiva, disponível e visível. A própria pandemia ajudou a esclarecer o caminho: fez com que as pessoas voltassem sua prioridade à vida, para além de sua participação no mercado, na meritocracia etc. Assim se oferece o critério para questionar a narrativa de direita que é disposta como se fosse sociedade, mas a rigor é um sucedâneo ideológico da mesma, dotado de uma “verdade pós-fática” tal como a terra plana.
Afinal 670 mil pessoas perderam a vida em parte imensa em função do negacionismo que gerou falta e atrasos de vacinas e equipamentos essenciais, fora os falsos tratamentos e as corrupções de plantão.
Há, portanto, uma verdade não ideológica: a vida, a permitir diferenciar narrativa de sociedade real a partir de uma constatação fática. A morte não é uma opinião formada num discurso narrativo.
Existe uma verdade não ideológica, que tem inclusive uma prática e uma casa institucional, que nessa situação vigente são carentes de defesa: a ciência e a universidade. Não são à toa, portanto, os ataques feitos a essas instituições. Mas mesmo assim a Terra não se tornou plana; enganaram-se apenas aqueles cujas visadas não alcançam além de suas próprias opiniões preconceituosas e mesquinhas, engrandecidas nas redes midiáticas pelos mal-intencionados que não resistem à luz da democracia.
Em uma conferência recém reeditada e de grande repercussão, Theodor Adorno afirma que a ideologia da extrema direita evita culpar pelas mazelas do povo o próprio aparato socio-político-econômico de super expropriação e destruição das políticas sociais do capitalismo. Em vez disso, incrimina aqueles que denunciam, que criticam o mesmo e procuram construir alternativas.
Essa posição da extrema direita, continua Theodor Adorno, é substancialmente falsa, falsidade baseada numa obstrução da aptidão à realização de uma experiência viva da realidade, obstrução construída mediante a manipulação da mesma. A experiência assim é disposta autoritariamente ante os indivíduos em sua vida social e política, num quadro de referência desprovido de autonomia para os sujeitos da sociedade. O que confere ao problema um alcance objetivo e político, muito além da dimensão subjetiva, psicológica ou ideológica.
E por isso não basta simplesmente contrapor-se a essa falsidade, mas, com toda a força incisiva da razão vinculada a uma verdade efetivamente não ideológica, cabe enfrentar a questão da experiência efetiva e verdadeira da realidade.
Isso significa uma proposta de construção social, em acerto com a realidade material e fatual e dotada das condições de sua experiência possível. Que possibilite diferenciar com clareza verdade e falsidade fatuais. Num país com o presente tão submerso nos séculos da ordem social escravagista, a questão social se sobrepõe como prioridade à experiência política; ela garante a estrutura econômica em sua objetividade e sua subjetividade. É isso que foi preciso aprender.
Quando houve o afastamento fraudulento da presidência de Dilma Roussef, todo ele baseado em falsidades fáticas, muito se especulava sobre porque as elites dominantes fariam um golpe, já que afinal “nunca haviam ganho tanto dinheiro do que com os governos do PT.” A questão não era diretamente econômica: estava em pauta a construção de uma sociedade inclusiva e tendencialmente igualitária, consciente e apta à experiência da injustiça de sua exclusão. Havia embutida nessa construção uma perspectiva crítica crescente e transformadora de longo curso, avessa ao vigente racista, machista, de exclusão e repulsa aos pobres e miseráveis. Logo ela iria corroer a forma da sociedade desigual que sustenta entre nós a estratosférica concentração de riqueza, tal como a abolição minou a economia do Império. Essa perspectiva precisava ser interrompida preventivamente. O que foi feito.
Por tudo isso o lado da democracia hoje é Lula. Lula significa uma reconstrução inclusiva e com tendência igualitária da sociedade brasileira. Foi feita a experiência concreta e verdadeira disso. Foi inexorável e percebida por todos, verdade não ideológica agora novamente disponível. Excluídos, pobres, miseráveis, desabrigados, mulheres, negros, trans, travestis, trabalhadores expropriados etc.: em suma, o povo não é problema, mas solução.
Dotada da força de uma hegemonia já previamente presente no apoio maciço sustentado agora na experiência verdadeira, fática, dos terríveis danos causados pela quebra do estado de direito, mas que não conseguiu destruir a aptidão à experiência da terra redonda, embora para alguns, equivocados, a tenha chutado à frente por um par de anos.
*Wolfgang Leo Maar é professor titular sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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