Sobre a Ku Klux Klan

Käthe Kollwitz, Mulher e criança morta, 1903.
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Por JOÃO VICTOR UZER*

A Klan, o nazismo e o fascismo não estão estáticos no tempo, são instituições que estão vivas e atuantes como atesta o professor desfilando com a roupa da KKK em escola de Santo André

No dia 21 de dezembro começou a circular na internet a imagem de um professor de história em Santo André, São Paulo, desfilando no pátio da escola com uma roupa da Ku Klux Klan. A atitude do professor foi repudiada, mas a Ku Klux Klan entrou nos assuntos mais falados daquela manha. Um dos debates dizia que a Klan era, na verdade, uma instituição de esquerda. De fato a Klan nasceu na metade final do século XIX como uma resposta democrata sulista aos “republicanos radicais” que adotavam estratégias políticas de proteção legal e concessão de cidadania a escravos recém-libertos a fim de criar um corpo eleitoral. Mas isso é o suficiente para dizer que a Klan é (ou ao menos foi) uma “instituição de esquerda”?

 

A Klan na história

No pós-guerra de secessão (1861-1865), para os democratas (e racistas) sulistas, a emancipação escravocrata e o plano republicano de transformá-los em eleitorado, significava a mudança de um governo virtuoso e patriótico para um governo corrupto, ignorante e estúpido. Para combater os republicanos e a entrada de negros em seus estados (e ao mesmo tempo, para expulsá-los), os agentes democratas reavivaram a tradição das milícias “reguladoras” e patrulhas de escravos, “associações”, “sociedades” e “clubes de cavalheiros” que vieram a se tornar a Klan.

Esses homens da Klan acreditavam e promoviam a ideia de que os negros eram incitados a estuprar as mulheres nas reuniões republicanas. Acreditavam que os sindicatos republicanos estimulavam assaltos, incêndios e assassinatos. Acreditavam e promoviam em seus jornais que o sul estava em decadência porque juízes republicanos livravam criminosos. A violência da Klan e sua propaganda conseguiu atrasar o voto dos negros em oito estados. Governos estaduais sulistas que não adotaram a segregação entraram em colapso diante de intimidação nas urnas por parte de grupos paramilitares. A Klan havia cumprido seu papel. Pois então, está dito. A Klan nasceu de partidários democratas.

A segunda onda da Klan é marcada em 1915. Inspirado pelo filme Birth of a Nation (que retrata a Klan como protetora dos valores americanos, defensor das mulheres contra os negros burros, brutos e sexualmente agressivos), William Simmons, reunindo amigos e conhecidos, reviveu a KKK. A “nova Klan” não expressava exatamente os mesmos princípios reacionários do início. Não advogava direta e abertamente contra avanços sociais, nem contra os republicanos. Os homens da “nova Klan” tomaram uma postura mais moralista e social que diretamente política. Exigiam um governo aberto e honesto, estruturas de base como saneamento básico e estradas modernas. A ala religiosa, brigava pela aplicação da moralidade protestante conservadora, pela Lei Seca (que proibia o consumo e produção de bebida alcoólica).

Assim, o principal inimigo mudou. Não mais os republicanos e seu plano de construir uma república negra no sul, mas qualquer grupo que representasse alguma ameaça aos valores americanos sulistas (que incluiu os católicos, os judeus, os negros, comunistas e imigrantes). A “nova Klan” passou a promover a ideia de que havia um plano em ação para “catolizar” os Estados Unidos, que o número de católicos havia subido consideravelmente. Lojas católicas foram boicotadas, católicos foram demitidos de escolas. Os judeus foram acusados de tentar tirar a Bíblia das escolas. Entre 1915 e 1940 a Klan teve mais de quatro milhões de membros. Foi nesta época que, em defesa da moral e bons costumes, surgiu o jornal “Cidadão de Bem”.

Durante a crise dos anos 1930, com a miséria e o desemprego, a resposta do governo democrata de intervenção estatal na economia (o New Deal) foi reconhecido pelos Republicanos como uma guinada em direção ao comunismo. Na Klan, o discurso racista e anticomunista foi fundido aos discursos contra as ações intervencionistas do governo federal, associando um poder central ao comunismo. Enquanto o governo redefinia o tradicional liberalismo estadunidense num novo liberalismo keynesiano, a Klan acusou essa mudança como uma violência contra os direitos fundamentais dos Estados Unidos. Mas vale ressaltar que “comunista”, no auge da Guerra Fria, tornou-se no sul um termo genérico para descrever quase qualquer um que não compactuasse com a “ortodoxia racial” da Klan. Qualquer um que defendesse direitos civis, liberdades sexuais ou mesmo casamento “inter-racial”, era um “comunista” que queria destruir a família tradicional.

Ao longo dos anos 1940 e 50, o anti-semitismo voltou a primeira linha dos inimigos da Klan. Nos anos 1960 e 70, o negaciosismo do holocausto e a teoria de que tudo não passava de uma conspiração judaica ganhou notoriedade entre os membros. Mas, apesar disso, a Klan não nutriu nenhuma afeição ao nazismo alemão. Com exceção de um pequeno grupo no norte que se filiou ao Partido Nazista de George Lincoln Rockwell (fundado em 1959), a maioria dos homens da Klan – muitos dos quais chegaram a lutar na Europa – repudiava o nazismo por ser uma forma totalitária e não cristã de tirania.

Mas entre os anos 1960 e 70, o Comitê de atividades Americanas da Câmara declarou que as atividades da Klan eram anti-americanas e terroristas. O FBI, por sua vez, acelerou o programa COINTELPRO – White Hate Group e foi contra a Klan. Em 1972 a United Klans of America declarou em seu jornal: “O governo dos Estados Unidos] foi transformado [em] em uma monstruosidade corrupta, antinatural e degenerada… precisamos colocar uma bala em seu cérebro e martelar uma estaca em seu coração. Se isso significa sangue e caos e lutar contra o inimigo estrangeiro de casa em casa em cidades em chamas por todo o país, então por Deus é melhor continuarmos com isso agora do que mais tarde”.

Foi o início do período que veio a ser reconhecido como a “nazificação da Klan”, em que o grupo tornou-se ainda mais radical. Sustentando a visão de que professores judeus reprimiam a fé cristã de seus alunos; que mulheres judias promoviam o feminismo e o homossexualismo; e que havia uma conspiração judaica envolvendo o governo, a mídia e os bancos, para acabar com a raça branca através de ações afirmativas, casamento inter-racial, promoção da homossexualidade, aborto e mais. Na década de 1980, a Klan descentralizou-se. A ação do FBI fez com que os militantes racistas rejeitassem a organização hierárquica tradicional da Klan e se organizasse em células menores.

Mas o que há mais a ser dito? A Klan foi criada pelos democratas, logo é de esquerda. Bem, essa é uma das afirmações que são ao mesmo tempo tecnicamente corretas e extremamente erradas. A Klan foi sim criada por partidários democratas, mas isso nem de longe faz dela (nem nunca fez) “De esquerda”. A começar pelo fato de que o que entendemos “de esquerda” (ou “liberal” nos Estados Unidos, como o partido democrata é comumente denominado) é uma terminologia do início do século XX, justamente da época do New Deal (de governo democrata) que a Klan foi abertamente contra. Ou seja, quando o Partido Democrata tornou-se “a esquerda” como entendemos, a Klan foi contra.

Por outro lado, além do racismo (como se fosse possível dissociar a KKK do racismo) o que a Klan defendeu e defende até hoje são valores nacionalistas, religiosos (protestante cristã) e morais. Advogando não só contra negros e minorias em geral, mas contra a imigração, ações afirmativas, políticos de esquerda, comunismo e além. A última grande ação da Klan foi em 2017, protestando contra a retirada de uma estátua do general confederado Robert E. Lee, em um parque público em Charlottesville, Virgínia.

Em 2015, no estado da Carolina do Sul, Dylann Roof invadiu a Emanuel African Methodist Episcopal Church, a mais antiga do gênero no sul dos Estados Unidos, e deixou nove mortos num ato de terrorismo domésticos. Autodeclarado supremacista branco e neonazista, Roof exibia a bandeira confederada em diversas fotos. Em 2017, o conselho da cidade de Charlottesville, na Virgínia, decidiu remover uma estátua do general confederado Robert E. Lee. A primeira reação foi da Ku Klux Klan que fez uma manifestação em protesto a decisão. Mas meses depois, com a liderança de Jason Kessler, que se reconhece como uma “nacionalista branco” e alt-right, foi organizado a manifestação que viria a ser denominada como Right United. O movimento foi reconhecido como uma tentativa de unir diferentes grupos da extrema direita a fim de construir uma unidade em torno do presidente Trump. John Spencer (um dos fundadores do que hoje reconhecemos como a Alt-right), durante a marcha, exclamou “Viva Trump, viva nossa gente, viva a vitória”. Os participantes variavam de neo-confederados, neonazistas, Ku Klux Klan (incluindo o ex-Grande Dragão David Duke), alt-rights e mais.

O discurso predominante era de preservação da “história branca” e da “cultura europeia” que estaria sendo atacada pela esquerda cosmopolita e multicultural, pela “grande mídia”, e lideranças do Partido Democrata. Proliferam-se teorias de que a “elite branca” facilita a imigração ilegal pois se beneficia da mão de obra barata.

 

Onde querem chegar?

Sim, a Ku Klux Klan nasceu de uma resposta democrata às políticas abolicionistas republicanas; Sim, o partido nazista denominava-se Nacional-Socialista; e sim, Zumbi viveu numa sociedade escravocrata. Daí fazer afirmações como a Klan foi de esquerda, Nazismo é de esquerda e Zumbi tinha escravos, é levar para o passado visões do presente, é a mais básica forma de anacronismo. Afirmações vazias que em nada contribuem para o debate histórico.

Sobre o professor que se vestiu como um membro da Klan, o profissional foi afastado. Mas, mais importante (e adequado) de se questionar do episódio, não é a discussão sobre o espectro político da Klan, mas sim o quanto objetos históricos (digamos, controversos) podem ser materializados em sala de aula para fins educacionais. Não foi o caso, o professor estava fantasiado numa ocasião festiva, não tinha finalidade educativa, mas fica o questionamento.

Em 2018, no Espírito Santo, um professor de história fantasiou-se com uma farda nazista numa aula temática. Em 2017, no Recife, um professor causou polêmica ao ornamentar a sala de aula com bandeiras nazistas ao lecionar sobre totalitarismo. Esses professores sofrem punições e foram criticados nas redes sociais, mas defendidos por seus alunos. O professor que se vestiu no Espirito Santo foi apoiado pelos num abaixo-assinado, afirmando que não houve apologia ou romantização dos crimes nazistas, mas sim a aplicação de uma didática.

O caso de Dylann Roof, nos Estados Unidos, por si já demonstra os perigos de empunhar símbolos que representam entidades que professam o ódio. Mas não precisamos ir muito longe para ver esse efeito. Em 2021, em Santa Catarina, um homem invadiu uma creche deixando cinco mortos. As investigações revelaram a existência de células neonazistas atuantes no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e mais. Segundo a estimativa, o número de células neonazistas no Brasil cresceu de 75 em 2015 para 530 em 2021. Evidente que existem múltiplas explicações para esse fenômeno. Mas isso só demonstra como é precisamos ser cada vez mais sensíveis ao chamarmos atenção para símbolos de ódio. Mesmo que seja com teor didático.

A Klan, o nazismo e o fascismo não estão estáticos no tempo (seja no século XIX ou XX), são fenômenos e instituições metamórficas que se adéquam aos tempos (e, não que isso importe, mas não são de esquerda!). São instituições que estão vivas e atuantes, não mais queimando cruzes, mas atacando creches, atirando em igrejas e atropelando pessoas. Mais que nunca, na história recente, é preciso ter cuidado com seus símbolos.

*João Victor Uzer é mestre em história social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Referências


Sobre a Klan e o fascismo racial nos Estados Unidos, utilizei principalmente os trabalhos de Tattiana Poggi e o verbete Ku Klux Klan de John Drabble do livro Conspiracy Theories in American History. No mais foram consultados as reportagens abaixo:

JARDINA, Ashley. White identity politics isn’t just about white supremacy. It’s much bigger.. Washington Post. August 16, 2017. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/monkey-cage/wp/2017/08/16/white-identity-politics-isnt-just-about-white-supremacy-its-much-bigger/>

LEMOS, Vinícius. ‘Um ídolo para eles’: investigação sobre neonazistas revela admiração a autor de massacre em Suzano. BBC. 22/12/2021.. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59733205>

MELLO. Igor. Investigação de massacre em creche de SC revelou células nazistas no Rio. Uol. 16/12/2021. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/16/investigacao-de-massacre-em-creche-de-sc-revelou-celulas-nazistas-no-rio.htm>

PALMEIRA, Fran. Professor do Recife causa polêmica ao decorar sala com bandeiras nazistas.  Folha de Pernambuco. 11/04/17: Disponível em: <https://www.folhape.com.br/noticias/professor-do-recife-causa-polemica-ao-decorar-sala-com-bandeiras-nazis/24050/>

QUEIROGA, Lius. Professor de História se veste de nazista para dar aula no Espírito Santo. O Globo. 25/09/2018: Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/professor-de-historia-se-veste-de-nazista-para-dar-aula-no-espirito-santo-23096443>

REUTERS. Klan members rally against removal of General Lee statue in Virginia. Reuters. July 8, 2017: Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-virginia-klan-idUSKBN19T142>

 

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