Por OSAME KINOUCHI*
Lugares comuns e estereótipos associados ao termo “evangélico”, que nublam a capacidade de análise social da esquerda brasileira
O artigo “O voto dos evangélicos”, de Rubens Pinto Lyra, publicado no site A Terra é Redonda, não parece atingir o cerne da questão sobre o voto evangélico em Bolsonaro. Infelizmente o autor parece não ter um conhecimento sociológico nem de primeira mão sobre os assim chamados “evangélicos”. Neste artigo pretendo desmontar alguns lugares comuns e estereótipos associados ao termo “evangélico”, que nublam a capacidade de análise social da esquerda brasileira.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer a clara distinção entre protestantes, anglicanos, evangélicos, pentecostais e neopentecostais. No Brasil, se contaria como protestantes (vindos da Reforma no século XV) os Presbiterianos, Luteranos, os Anglicanos (século XVI).Evangélicos strictu sensu seriam os Metodistas, Batistas, Congregacionais, Pietistas e outras denominações menores, surgidas a partir do século XVII. Pentecostais seriam, por exemplo, as Assembleias de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras igrejas surgidas entre 1900 e 1960, bem como o Movimento Carismático Evangélico. Finalmente, os Neopentecostais surgiriam a partir de 1970 inspirados nas Megachurchs televisivas da Coréia do Sul. Os Adventistas, Mórmons e Testemunhas de Jeová não são considerados nem protestantes nem evangélicos, mas sim grupos paracristãos.
Englobar todas essas diversas correntes sob o mesmo rótulo de “Evangélicos”, como faz a mídia e o senso comum, não só é sociologicamente errado, mas também produz confusão. Em termos organizacionais (o que reflete muitas vezes uma ideologia política), temos todo um espectro, de hierarquia vertical (episcopal) até organização anarquista horizontal com ênfase no poder dos leigos. Do ponto de vista religioso, as ênfases vão da tradição institucional (anglicanos, similar à Católica) versus ortodoxia bíblica (protestantes e evangélicos) versus experiência mística (carismáticos, pentecostais e neopentecostais). Para uns, Deus fala através do magistério eclesiástico tradicional, para os protestantes, Deus fala pela Bíblia e para os pentecostais Deus fala diretamente ao coração do fiel ou através de profetas carismáticos (algo que poderia ser descrito como um transe mediúnico onde quem fala é o Espírito Santo). Obviamente, todas essas diferenças produzem conflitos incontornáveis.
O estereótipo do evangélico hoje no Brasil seria a mulher pobre, faxineira das classes médias, que não corta o cabelo, não se depila, não usa maquiagem nem calças compridas. Curiosamente, esses costumes ocorrem em apenas uma denominação, a Congregação Cristã do Brasil, não sendo usuais entre as Assembleias de Deus e muito menos entre os neopentecostais (Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Bola de Neve Church etc.). A teologia da Prosperidade, de inspiração neocalvinista, não explica exatamente o voto neopentecostatal: a IURD e outras igrejas neopentecostais apoiaram os governos petistas, e mesmo a bispa Sonia, da Renascer, foi impor suas mãos sobre Dilma para a cura de seu câncer, em cerimônia pública.
A mudança de direcionamento dos votos dos “evangélicos” se dá a partir de 2013 (em um movimento sociológico maior, quando a extrema direita sai do armário). Um possível motivo seria o uso instrumental pela extrema-direita de ansiedades ligadas às pautas identitárias assumidas pelo PT e demais esquerdas. Lembremos que a rejeição às pautas identitárias não ocorre apenas entre evangélicos, mas também católicos, espíritas e mesmo ateus conservadores.
Outra insuficiência do artigo O voto dos evangélicos é ignorar que a teologia calvinista da predestinação é minoritária nesse grupo. Grande parte dos evangélicos, senão em teoria mas na prática, seguem teologias Arminianas, que enfatizam o livre-arbítrio e não o fatalismo Calvinista. Arminianos como os Metodistas e muitos outros, são anti-Calvinistas. É possível que isto explique a adesão dos Metodistas (além dos Luteranos e Anglicanos) à Teologia da Libertação (TL) na década de 80. Lembremos que o primeiro congresso da UNE pós ditadura é realizado com apoio de lideranças estudantis metodistas na UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba) e que até hoje o bacharelado em teologia na Universidade Metodista de São Paulo (UMSP) é fortemente influenciado pela Teologia da Libertação.
Ou seja, o voto “evangélico” na extrema direita (mas Marina Silva e Benedita da Silva não são “evangélicas”?) não pode ser explicado por teologia antiquadas que, às vezes, os próprios fiéis ignoram. Lembremos o batista Martin Luther King, o metodista Nelson Mandela e o “evangélico” Obama. Uma dica interessante para o confinamento é assistir o filme O Grande Desafio (com Denzel Washington e Forest Whitaker, baseado em fatos reais), onde um pastor metodista se une a um professor comunista na luta pelos direitos civis dos negros. Já dando um spoiler, o desafio estudantil final é ganho por uma citação de Santo Agostinho: Uma lei injusta não é Lei. Nada mais antigoverno, anticalvinista e antifatalistado que esta frase na boca de “evangélicos”.
A doutrina de obediência cega às autoridades não tem base histórica entre os protestantes, que se revoltaram contra o domínio do Papa, autoridade designada por Deus. Um exemplo clássico é a revolta camponesa dos protestantes Anabaptistas (ala radical da Reforma e iniciadores distantes e esquecidos do ramo evangélico Batista), descritos de forma minuciosa por Friederich Engels em seu livroAs Guerras Camponesas na Alemanha (1850). Da WIKIPEDIA: “Na sua origem uma revolta contra a opressão feudal, tornou-se debaixo da liderança de Müntzer, numa guerra contra todas as autoridades instituídas, e uma tentativa de estabelecer pela força o seu ideal de irmandade cristã, com a igualdade absoluta e o comunismo dos bens. A derrota total dos insurgentes em Frankenhausen (15 de Maio de 1525), seguida da execução de Müntzer e de vários dos seus líderes, foi apenas uma derrota provisória do movimento Anabaptista.”
Uma recente pesquisa do Datafolha revela que as mulheres representam 58% do segmento “evangélico”, com pardos e pretos correspondendo a 59% dos fiéis. No segmento, metade vive com dois salários mínimos e apenas 2% têm renda acima de dez salários mínimos (Cara típica do evangélico brasileiro é feminina e negra, aponta Datafolha, Folha de São Paulo 13/01/2020). Outra pesquisa do Datafolha revela que, ao contrário de certos líderes, a grande maioria dos “evangélicos” prefere uma social democracia com estado de bem-estar social em vez de uma economia liberal (‘Igrejas evangélicas são estado de bem-estar social informal’, diz antropólogo. Juliano Spyer diz que elite brasileira tem visão estereotipada e arrogante sobre evangélicos, Folha de São Paulo, 17?10/2020). Finalmente, os “evangélicos” ajudaram a derrubar o decreto da política de armas de Bolsonaro, e são radicalmente contra a defesa da tortura ou da pena de morte.
Outro fator a ser discutido é o pretenso conservadorismo dos “evangélicos” quando comparados ao resto da população. É verdade que os evangélicos praticantes (já existe uma parcela deles que não é praticante) são mais conservadores que os católicos não praticantes, mas talvez esta não seja uma base correta de comparação. Deveríamos compará-los com os católicos praticantes que seguem fielmente os comportamentos e costumes recomendados por sua Igreja.
Assim, devemos lembrar que a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) ainda discrimina divorciados e suicidas, e não recomenda o uso de preservativos e outros métodos de contracepção. A ICAR não aceita sacerdotes mulheres e a centralidade do culto a Maria não implica em atitudes feministas. Do mesmo modo, ainda existem práticas autoritárias como a Monarquia Absoluta eletiva teocrática do Vaticano. Dos cinco dogmas católicos relativos ao Papa e a Igreja, temos (Dogmas da Igreja Católica – Wikipedia):
1) O Papa possui o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda Igreja, não somente em coisas de fé e costumes, mas também na disciplina e governo da Igreja: “Conforme esta declaração, o poder do Papa é: de jurisdição, universal, supremo, pleno, ordinário, episcopal, imediato.”
2) O Papa é infalível sempre que se pronuncia ex cathedra: “Sujeito da infalibilidade papal é todo o Papa legítimo, em sua qualidade de sucessor de Pedro e não outras pessoas ou organismos (ex.: congregações pontificais) a quem o Papa confere parte de sua autoridade magistral.”
3) A Igreja é infalível quando faz definição em matéria de fé e costumes.
Assim, não surpreende a existência de conservadores católicos como a TFP, a Opus Dei e os Integralistas Católicos, que certamente votaram em Bolsonaro e que agora pedem o Impeachment do Papa Francisco.
Já os evangélicos não têm autoridade central e seus costumes são bem mais modernos: aceitam o divórcio, enterram suicidas com dignidade, prescrevem o controle da natalidade por qualquer meio (menos pelo aborto, embora a IURD defendeu a regulamentação do aborto, dado que a mãe do Bispo Macedo realizou abortos). Em São Paulo, existem pelo menos quatro Igrejas “evangélicas” que realizam o casamento gay religioso, e temos pastores e bispos gays. Também existem pastoras e bispas, algumas lésbicas, e mesmo uma reverendanegra e transexual candidata a vereadora de São Paulo (Alexya Salvador –PSOL 50321, ex-deputada estadual) nas próximas eleições.
Com este último exemplo fica claro a inadequação de querer examinar os “evangélicos” como bloco político único. A constituição de uma bancada “evangélica” direitista é fruto da onda Bolsonarista, não o contrário. Ao fazer isso esquece-se toda a esquerda “evangélica” e toda a movimentação de evangélicos contra Bolsonaro em 2018. Por exemplo, havia um grande movimento de mulheres dentro da IURD a favor de Fernando Haddad, movimento que foi torpedeado pela declaração do mesmo de que o Bispo Macedo era um charlatão. Quantos votos Haddad perdeu com essa declaração extemporânea?
Quantos votos Haddad perdeu ao colocar no seu plano de governo de 2018 as bolsas de estudo extras para os transexuais? Não ganhou nenhum voto LGBT a mais, pois essa comunidade iria votar nele de qualquer jeito, com ou sem este item no programa. Mas com esse item perdeu votos em todo o segmento heterossexual, não apenas “evangélico”) mas também católico e espírita, e mesmo ateu de centro-direita, onde uma propaganda ardilosa espalhou que, fazendo isso, Haddad considerava os transexuais como “superiores” e merecedores de “privilégios” em relação aos heterossexuais. Afinal, as bolsas poderiam ser dadas sem problema algum após se vencer as eleições, mas porque colocar este item específico na propaganda eleitoral? Apenas para dar munição aos Bolsonaristas?
Ou seja, com os dados demográficos apontando que os evangélicos alcançariam em 2032 a marca dos 39,8% da população, superando os 38,6% de católicos nesse ano (Evangélicos podem desbancar católicos no Brasil em pouco mais de uma década, Folha de São Paulo de 14/01/2020), temos um grande problema para a Esquerda brasileira. E, se compararmos os “evangélicos” praticantes com os católicos praticantes, ou seja, não apenas nominais, talvez essa ultrapassagem já tenha ocorrido.
Sendo assim, a Esquerda precisa, usando as ferramentas das Ciências da Religião (Sociologia da Religião, Psicologia da Religião, História da Religião etc.), conhecer melhor este segmento demográfico, se não quiser repetir a polarização política dos EUA, onde espertamente se proclama que o Partido Republicano é o partido de Deus e o Partido Democrata é o partido dos ateus LGBT comunistas. Como se uma grande fração da comunidade LGBT não tivesse religião ou espiritualidade, se sentindo órfãos em um discurso de esquerda apenas laico ou mesmo ateu.
Uma sugestão básica para qualquer comentarista de esquerda: tente não usar o estereótipo do “evangélico” em suas reflexões (sua faxineira evangélica, único contato da classe média laica com o segmento). Primeiro, leia alguns tópicos da WIKIPEDIA sobre o Protestantismo, o Evangelicalismo, o Pentecostalismo e o Neopentecostalismo. Esta informação está disponível a todos, e apenas uma preguiça intelectual injustificável pode justificar a ignorância sobre os “evangélicos”. Vamos elevar o nível do debate para o nível mínimo da WIKIPEDIA. Se não fizermos isso, estaremos entregando 30% do eleitorado para a extrema direita nas eleições de 2022, e a maioria religiosa em 2032.
*Osame Kinouchi é professor do Departamento de Física da FFCLRP-USP.