Starlink e a soberania nacional

Imagem: SpaceX
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Por LISZT VIEIRA*

Para defender a soberania nacional, as Forças Armadas do Brasil dependem de uma empresa estrangeira que viola a soberania nacional

O escândalo do Elon Musk e do seu Twitter, agora X, trouxe à luz do dia uma informação que permanecia oculta ou muito pouco divulgada. Como se sabe, da sua empresa Starlink e de suas antenas dependem as Forças Armadas brasileiras para suas comunicações.  Ou seja, para defender a soberania nacional, as Forças Armadas do Brasil dependem de uma empresa estrangeira que viola a soberania nacional.

Este é mais um dos inúmeros exemplos de enfraquecimento histórico do Estado Nação e do conceito de soberania nacional. A partir da segunda metade do século XX, principalmente, uma série de fenômenos surgiram contrapondo-se aos princípios básicos do conceito de Estado Nação criado pelo Tratado de Westfalia em 1648: territorialidade, soberania, autonomia e legalidade.

Os Estados Nacionais se enfraquecem porque não podem mais controlar dinâmicas que extrapolam seus limites territoriais. As comunicações eletrônicas passam por cima das fronteiras nacionais, os capitais entram e saem de um país deixando muitas vezes como legado uma crise econômica e financeira, a mão de obra, apesar das proibições, emigra para outros países, empresas transnacionais têm orçamento maior do que a maioria das nações, transformadas na prática em províncias. O crime organizado, como o comércio ilegal de drogas e armas, passa por cima  das leis nacionais.

A destruição ambiental em um país afeta outros e a crise climática global não respeita as fronteiras nacionais. O patrimônio comum da humanidade entra em conflito com a dimensão nacional-territorial. Os ecossistemas compartilhados constituem um patrimônio comum que excede o marco das soberanias nacionais.  E para esses e outros problemas existem acordos e normas internacionais de regulação, nem sempre respeitadas. Além das dimensões acima mencionadas, há outras afetando a autonomia do Estado Nacional, como questões culturais e sociais. Atividades culturais em um país, como cinema ou música, por exemplo, impactam comportamentos sociais em outros.

Uma visão artística brilhante da relação homem-natureza encontra-se no diálogo final do filme A Grande Ilusão, de Jean Renoir (1937). Fugidos de um campo alemão de prisioneiros durante a Primeira Guerra Mundial, dois soldados (um deles representado pelo ator Jean Gabin) chegam à fronteira suíça e se deparam com um campo de neve. Um soldado pergunta: Onde está a fronteira? O outro responde: ‘Les frontières sont une invention des hommes, la nature s’en fout’.

Todos esses problemas foram objeto de uma vasta literatura de análise dos processos de globalização de dominância neoliberal. Anos atrás, trabalhei com esses temas e publiquei dois livros: Cidadania e Globalização (13ª ed. 2016) e Os Argonautas da Cidadania – A Sociedade Civil na Globalização (2001). Entre os principais livros de referência publicados no Brasil, encontra-se o livro de Otavio Ianni, Teorias da Globalização (1995). Para ele, “a sociedade global tem subsumido, formal ou realmente, a sociedade nacional”.

Assim, não é nenhuma novidade ver surgir mais um caso concreto de enfraquecimento da soberania nacional. Mas, sempre que surge, causa impacto.

A Starlink é um braço da SpaceX, a companhia de exploração espacial de Elon Musk. A empresa fornece serviços de internet por meio de uma enorme rede de satélites. Ela é voltada para pessoas que vivem em áreas remotas, onde não há infraestrutura local como cabos e postes — caso de boa parte da Amazônia. Estima-se que mais de 6 mil satélites Starlink já foram lançados no espaço. Segundo a própria empresa, trata-se da maior constelação de satélites do mundo, com uma base de usuários em 37 países. Segundo a empresa, seriam 3,3 milhões de assinantes em 99 países.

O Deputado Coronel Meira (PL-PE) publicou um documento mostrando que Exército e Marinha dependem das antenas da Starlink. Apresentou o documento como “prova” de que não podemos mexer com a empresa. Ou seja, a comunicação das operações militares brasileiras passa pelos satélites de Elon Musk. Segundo o Exército, “o contrato se justifica pela facilidade, flexibilidade e rapidez que o equipamento da Starlink confere ao estabelecimento dos enlaces de Comando e Controle, proporcionando a devida prontidão estratégica àquele Grande Comando Operacional para ser empregado em todo o território nacional”.  Diz ainda o Exército que, em caso de “um eventual cancelamento de contrato com a referida empresa, poderá haver prejuízo para o emprego estratégico de tropas especializadas”. O Exército pretende ainda celebrar novos contratos com a Starlink para atender os Pelotões Especiais de Fronteira (PEF), situados em locais de difícil acesso (Leandro Demori, “Musk, o Queijo e os Vermes”).

A soberania nacional, golpeada de todo lado, sofre mais uma ameaça com o uso da Starlink pelo Exército e pela Marinha. Para escapar dessa dependência, a União Europeia lançou em novembro de 2022 um sistema próprio chamado IRIS para fornecer aos Estados membros ligações seguras, designadamente para uso militar, e a internet “em todo o lado, incluindo nas regiões mais recônditas da UE e da África”.  Os primeiros serviços devem ser fornecidos no final do ano 2024 e a IRIS estará plenamente operacional em 2027.

A Starlink conseguiu contratos sem licitação nas esferas municipal, estadual e federal, e seu bloqueio deixaria populações sem serviços essenciais. O Brasil se tornou dependente da conexão via satélite da companhia em áreas críticas como postos de saúde, escolas em locais isolados, as Forças Armadas e o policiamento de fronteiras e de estradas. “A Starlink tem antenas instaladas em 90% dos municípios da Amazônia e esse número só tende a crescer”, diz o professor e pesquisador no Departamento de Estudos de Mídia da Universidade da Virgínia David Nemer. A Starlink tem 7,5% dos seus clientes no Brasil. A expansão global da Starlink dá a Musk poder político. Ele pode controlar os conteúdos a serem divulgados. Enquanto a empresa X é inviável economicamente, é usada apenas como arma política, a Starlink é um grande negócio que conta com apoio direto dos EUA.

Em pouco mais de dois anos de operação, a Starlink se transformou em líder de um segmento estratégico no setor de telecomunicações do país, como é o caso da internet via satélite. Nesse período, a empresa passou a ser fornecedora para diversos órgãos públicos e estatais como o Exército, a Marinha, os Ministérios da Saúde e Educação, além da Petrobras. Um levantamento feito pela BBC News Brasil, com base no Portal da Transparência e no Diário Oficial da União, apontou que o contrato para uso da tecnologia da empresa de Musk prevê a instalação de equipamentos para conexão de internet em pelo menos 70 bases, plataformas e navios da Petrobras.  Entre elas, estão as bases de exploração de petróleo e gás de região de Urucu, no interior do Amazonas e as plataformas de exploração de petróleo que atuam na Bacia de Campos. E, em maio deste ano, o Comando do Exército disponibilizou 100 pontos de internet da Starlink para comunidades localizadas no Rio Grande do Sul durante as enchentes de maio último. E, no norte do país, como assinalado, o Exército passou a adotar a tecnologia da empresa Starlink na Amazônia.

Musk é um homem poderoso. Apoia a extrema direita, como Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, com o objetivo de ganhar o compromisso para barrar qualquer tipo de regulação das big techs. É um exemplo perfeito e acabado do capitalista neoliberal.

Com a tendência atual à multilateralidade e à perda da hegemonia unilateral dos EUA no mundo, teremos pela frente terremotos políticos – como sugerem as atuais guerras de invasão na Ucrânia e na Palestina – que irão sacudir os princípios tradicionais das instituições nacionais hoje ainda existentes. Guerra de invasão não é novidade. Diante da impotência da ONU, só os EUA invadiram e bombardearam dezenas de países depois da segunda guerra mundial. Mas o contexto geopolítico global agora é diferente. O que teremos pela frente são provavelmente guerras de movimento pós nacional e não a tradicional guerra de posição ou enfrentamento entre Estados nacionais.

Diante disso, como fica a soberania nacional? Um dos alicerces do conceito de Estado Nação, ela sobrevive na literatura política e jurídica clássica da democracia e da formação do Estado Nacional. Na prática, porém, foi abalada e, em alguns casos, engolida pela globalização. A soberania nacional funciona hoje, em geral, como reivindicação e protesto. Tornou-se um dogma doutrinário, mas na realidade só funciona quando não há interesse do capital global que transformou a grande maioria dos países em províncias.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


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