Por JOÃO PEDRO MARQUES*
A disputa pelo controle e financiamento do SUS revela uma batalha entre a manutenção de um sistema público e gratuito e as pressões por privatizações e cortes orçamentários que ameaçam sua sustentabilidade
1.
Nas últimas décadas, a ascensão do neoliberalismo redesenhou profundamente as relações entre Estado, mercado e sociedade, com impactos diretos sobre as políticas sociais em todo o mundo. Sob o discurso de eficiência, racionalidade fiscal e liberdade individual, consolidou-se um modelo que privilegia a lógica de mercado em detrimento da garantia de direitos, promovendo privatizações, desregulamentações e cortes de gastos públicos.
No Brasil, esse processo tem se expressado na austeridade fiscal permanente, iniciada com a Emenda Constitucional 95/2016 e aprofundada pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que impõe severos limites ao crescimento das despesas primárias.
No campo da saúde, essas mudanças resultaram em subfinanciamento crônico, ampliação da terceirização e precarização das relações de trabalho, ao mesmo tempo em que fortalecem a mercantilização dos serviços e a transferência de recursos públicos para o setor privado. Tal cenário contraria os princípios da Reforma Sanitária brasileira e os fundamentos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), construído como um sistema universal, integral e equânime.
A Atenção Primária à Saúde (APS), reconhecida internacionalmente como eixo estruturante de sistemas de saúde resolutivos, sofre especialmente com o desfinanciamento e a lógica gerencialista que prioriza metas e resultados imediatos em detrimento do cuidado integral. Nesse contexto, os Agentes Comunitários de Saúde e de Endemias (ACS e ACE) representam uma peça-chave do SUS, atuando como elo entre as equipes de saúde e as comunidades, estabelecendo vínculos, escuta qualificada e produção de cuidado territorializado.
Entretanto, a valorização desse trabalho essencial esbarra em condições precárias de contratação, falta de investimentos estruturais e políticas fiscais que inviabilizam a expansão e a consolidação de uma APS robusta. Ao mesmo tempo, a fragilidade do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) evidencia a dependência externa do país em relação a medicamentos, insumos e tecnologias, limitando a soberania sanitária brasileira.
Compreender como a austeridade e a lógica neoliberal impactam a APS, a atuação dos ACS e ACE e o desenvolvimento do CEIS é fundamental para debater o futuro do SUS. O presente texto analisa a trajetória dos ACS, as transformações recentes no mundo do trabalho em saúde, os efeitos da terceirização e o papel estratégico da APS e do CEIS, defendendo a necessidade de romper com o regime fiscal imposto pelo NAF e de construir um projeto de desenvolvimento que assegure financiamento adequado, autonomia técnica e soberania sanitária para o Brasil. Por isso, cabe aqui uma breve contextualização.
2.
A partir da década de 1970, o mundo assiste a uma profunda inflexão econômica, política e social, isto é, a ascensão do neoliberalismo como projeto de reestruturação do capitalismo. Diferentemente do liberalismo clássico do século XIX, que defendia mínima intervenção estatal para garantir a liberdade de mercado, o neoliberalismo consolida-se como racionalidade totalizante, atuando não apenas como teoria econômica, mas como regime de produção de subjetividades e formas de governar.
No Chile, a ditadura de Augusto Pinochet (1973–1990) tornou-se o primeiro laboratório do neoliberalismo radical, implantado sob violência militar com apoio dos “Chicago Boys”, economistas ligados a Milton Friedman. Privatizações massivas, desmonte da seguridade social e abertura irrestrita ao capital estrangeiro marcaram essa experiência pioneira.
Nos Estados Unidos, Ronald Reagan (1981–1989) promoveu cortes drásticos em programas sociais e desregulamentações; no Reino Unido, Margaret Thatcher (1979–1990) atacou o Estado de Bem-Estar e as organizações coletivas, como os sindicatos. Sob sua liderança surgiu a máxima emblemática: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families” (“Não existe essa coisa de sociedade. Existem homens e mulheres individuais, e suas famílias”).
A frase expressa a ontologia neoliberal de negação da coletividade como categoria legítima de organização social, substituída pelo ideal do sujeito empreendedor de si, plenamente responsável por seus êxitos e fracassos. Conforme analisam Pierre Dardot e Christian Laval, essa racionalidade constitui uma “nova razão do mundo”, em que o homo economicus se torna o modelo universal de sujeito.
Nesse sentido, o neoliberalismo ecoa a visão hobbesiana da natureza humana essencialmente competitiva e egoísta. Para Thomas Hobbes, no Leviatã (1651), o estado natural da humanidade é a guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), em que a vida é “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. O neoliberalismo contemporâneo ressignifica esse princípio como norma de conduta, transformando todos em concorrentes, inclusive em campos tradicionalmente solidários, como a saúde.
3.
Nesse cenário, os sistemas de saúde passam por grandes transformações. A concepção de saúde como direito – presente na Declaração de Alma-Ata (1978) e na Constituição brasileira de 1988 – é confrontada por políticas de austeridade, desmonte de sistemas universais e introdução de mecanismos de mercado nos serviços públicos. O resultado é a crescente mercantilização da saúde, reduzida a mercadoria submetida às leis de oferta e demanda.
Essa lógica manifesta-se na ampliação da terceirização de serviços, na contratação por organizações sociais, na fragmentação das redes de atenção e na expansão de planos privados subsidiados com recursos públicos. A gestão passa a ser guiada por critérios de eficiência e produtividade, frequentemente à custa da integralidade e da equidade do cuidado. Profissionais de saúde são transformados em “empreendedores de si”, submetidos a metas, contratos temporários e vínculos precários.
A atenção primária, embora seja o eixo estruturante de sistemas públicos resolutivos, como preconiza a OMS, é constantemente subfinanciada e preterida em favor de grandes hospitais e serviços especializados. Nesse contexto, a atuação dos Agentes Comunitários de Saúde representa uma fissura no modelo neoliberal, pois seu trabalho baseia-se no vínculo, na escuta e na produção do cuidado em rede. Em uma sociedade marcada pela fragmentação, o ACS é, por excelência, o agente do comum.
A figura do ACS surgiu em um momento decisivo para a saúde pública brasileira, vinculada às disputas sobre a universalização do cuidado. Sua origem remonta a uma experiência inovadora no Ceará, em 1987, durante grave crise social provocada por mais uma seca no sertão nordestino.
A proposta estadual, inspirada em iniciativas locais de organização comunitária, consistia em formar moradores das próprias comunidades como promotores de saúde, orientando famílias sobre higiene, vacinação, aleitamento materno e prevenção de doenças. Diferentemente de medidas assistencialistas ou emergenciais, o programa investia na criação de vínculos territoriais e na valorização dos saberes populares como instrumentos de cuidado e transformação social.
O sucesso da iniciativa levou o Ministério da Saúde, em 1991, a criar o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), consolidando o ACS como elo entre serviço de saúde e comunidade. Em 1994, com a criação do Programa Saúde da Família – posteriormente rebatizado como Estratégia Saúde da Família (ESF) –, o trabalho dos agentes foi incorporado de forma definitiva à Atenção Primária à Saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Essa mudança representou uma virada na política de saúde, orientada pela descentralização, territorialização e integralidade do cuidado.
Inspirada nos ideais da Reforma Sanitária e da Constituição de 1988, a ESF redefine o modelo assistencial, deslocando o foco do hospital para o território, da doença para a promoção da saúde e do médico-especialista para equipes multiprofissionais inseridas no cotidiano da população. Nesse cenário, os ACS têm papel estruturante como elo entre os saberes técnicos do SUS e os modos de vida da população, articulando política pública e condições concretas de existência.
Entre suas principais atribuições estão as visitas domiciliares periódicas; a educação em saúde, por meio de orientações individuais e ações coletivas; a identificação precoce de riscos sanitários e sociais, como violência, fome, gravidez de risco e surtos de doenças; o registro e a coleta de dados epidemiológicos, essenciais para o planejamento em saúde; e a mediação cultural e política entre a população e as unidades básicas, garantindo acesso e traduzindo a linguagem institucional.
Também participam de associações locais, grupos de mães, comitês escolares e movimentos populares, fortalecendo formas de convivência solidária que contrariam a lógica neoliberal.
A presença territorial dos ACS tornou-se uma das maiores fortalezas da APS brasileira. Em 2012, segundo o Ministério da Saúde, 87,6% das unidades básicas contavam com agentes comunitários em suas equipes, evidenciando a capilaridade dessa política. Essa cobertura não é apenas quantitativa, já que representa uma presença qualitativa que molda o cotidiano da saúde nos territórios populares.
O ACS conhece o nome, o rosto e a história das famílias que acompanha, sendo muitas vezes a única referência estatal em áreas marcadas pela ausência de serviços públicos e pela violência estrutural. Seu trabalho ultrapassa os limites biomédicos e se inscreve em uma ética do cuidado cotidiano, do afeto e da escuta, mobilizando tanto saberes técnicos quanto experiências vividas. Esse papel fundamental, porém, é tensionado por condições precárias de trabalho, contratos instáveis, metas excessivas e pela crescente tentativa de subordinar a lógica do cuidado à racionalidade empresarial.
4.
A terceirização dos serviços públicos de saúde no Brasil tem provocado mudanças na forma de contratação, nas condições de trabalho e na proteção social dos profissionais. Estima-se que cerca de 73% dos serviços públicos de saúde estejam atualmente sob gestão de Organizações Sociais (OSs) ou entidades privadas, segundo dados recentes do IBGE e do IPEA.
Esse modelo, frequentemente adotado para contornar limitações orçamentárias e burocráticas, abriu caminho para formas flexíveis de contratação que fragilizam direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores da saúde. Em vez do concurso público, previsto constitucionalmente como forma preferencial de ingresso, as OSs utilizam contratos temporários, celetistas ou até vínculos informais, sem estabilidade, garantias previdenciárias sólidas ou representação sindical efetiva.
Assim, ACS – e demais profissionais – contratados por essas instituições exercem as mesmas funções dos concursados, mas em condições mais precárias, com menor remuneração e proteção legal.
A contrarreforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017), aprovada no governo Michel Temer, contribuiu com esse cenário ao flexibilizar diversos aspectos da CLT. Entre os retrocessos destacam-se a ampliação da terceirização irrestrita, inclusive para atividades-fim; a prevalência do negociado sobre o legislado; a fragilização da Justiça do Trabalho; e a permissão de contratos intermitentes e temporários com menor proteção. Tais mudanças serviram de respaldo jurídico e político para a expansão das terceirizações no SUS, inclusive em áreas que demandam vínculos estáveis e formação continuada, como no caso dos ACS.
O discurso de “eficiência da gestão” das OSs, sustentado por argumentos tecnocráticos, encobre um processo mais amplo de mercantilização da saúde pública. Na prática, a lógica das “parcerias público-privadas” (PPP’s) resulta em desresponsabilização do Estado, perda de controle social e enfraquecimento da política pública como direito universal. Essa lógica precarizante impacta diretamente trabalhadores e população, gerando descontinuidade do cuidado, alta rotatividade, quebra de vínculos comunitários e restrição da autonomia profissional, com metas e exigências desconectadas das realidades locais.
Nos últimos meses, o governo Lula avançou com medidas que ampliam significativamente o uso das Parcerias Público‑Privadas (PPPs), elevando-as ao status de despesa prioritária na Lei de Diretrizes Orçamentárias – o que reduz o risco de contingenciamento nesses contratos. Simultaneamente, tramita no Congresso a modernização do marco legal das PPPs, que prevê garantias estendidas às empresas participantes – inclusive permitindo que ofereçam como garantia os próprios bens reversíveis dos contratos – e a adoção de concessão por adesão, modelo que pode burlar regras de licitação.
Para o governo e parte do setor empresarial, essas alterações oferecem maior segurança jurídica e capacidade de destravar investimentos – especialmente em infraestrutura social, como escolas e hospitais. Entretanto, essas iniciativas consolidam um processo de privatização velada de serviços públicos essenciais, deslocando o protagonismo estatal para o setor privado e ampliando a lógica empresarial sobre áreas como saúde e educação.
Ao priorizar os pagamentos às empresas concessionárias como despesa preferencial, o Estado confere tratamento privilegiado a contratos de longo prazo, enquanto políticas públicas de caráter universal, como a Atenção Primária à Saúde (APS) e o CEIS, permanecem submetidas às limitações orçamentárias e ao espectro de austeridade fiscal. Essa escolha reforça justamente o estrangulamento impresso pelo Novo Arcabouço Fiscal, pois enquanto o orçamento público é rigidamente contido, os compromissos com empresas privadas se tornam prioridade.
É preocupante notar que, embora as PPPs venham sendo apresentadas como solução para a falta de recursos públicos, o mecanismo pode gerar opacidade, fragilizar controles sociais e jurídicos e comprometer a qualidade dos serviços em saúde. A adoção de contratos por adesão, por exemplo, abre brechas à dispensa de novas licitações, retirando do público o controle sobre a efetividade e a transparência dos contratos.
Ademais, entidades como o Sinduscon‑SP alertaram para o risco de corrupção e insegurança jurídica em razão da flexibilização dos critérios licitatórios e da ampliação do acesso às PPPs por autarquias, fundações e fundos sem a mesma accountability dos órgãos tradicionais.
5.
Em síntese, apesar do discurso de que as PPPs representam “eficiência” e desatarão o nó fiscal, sua expansão neste momento histórico parece reforçar a lógica de financeirização e mercantilização dos serviços públicos. Ao mesmo tempo em que intensifica a dependência de capitais privados para execução de políticas públicas, impede que haja financiamento robusto em setores estratégicos como a APS e o CEIS, cuja consolidação é condição para autonomia sanitária, desenvolvimento científico e garantia de direitos.
Não obstante, relatos de ACS contratados por OSs em diferentes regiões do país evidenciam a materialidade dessa precarização, tais como ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), falta de insumos básicos, não fornecimento de fardamento ou transporte para visitas, atrasos salariais e ausência de apoio da gestão. Além disso, muitos agentes terceirizados temem denunciar as condições de trabalho por receio de retaliações, demissão ou não renovação de contrato, o que produz insegurança, autocensura e sensação constante de substituibilidade.
Como a atuação dos ACS exige confiança, continuidade e vínculo com a comunidade, a precarização não compromete apenas os trabalhadores, mas a própria efetividade da APS. A perda de direitos, somada à intensificação do trabalho e à escassez de recursos, transforma seu cotidiano em um espaço de conflito permanente entre a missão de cuidado e as condições adversas impostas pela gestão.
A pandemia de COVID‑19 evidenciou ainda mais essas contradições. Na linha de frente da orientação e acompanhamento domiciliar, os ACS enfrentaram escassez de EPIs, falta de capacitação e apoio institucional. Relatos frequentes incluíam distúrbios do sono, esgotamento emocional, medo de contaminação, sensação de abandono ansiedade e depressão. Apesar disso, desempenharam papel essencial ao orientarem famílias, monitorarem casos suspeitos e confirmados, mapearem contatos, apoiarem pessoas em isolamento e garantirem acesso de populações vulneráveis – como idosos, moradores de favelas e indígenas – aos serviços de saúde.
O reconhecimento desse trabalho resultou em conquistas legislativas importantes, como a Emenda Constitucional nº 120/2022, que estabeleceu piso salarial nacional de dois salários mínimos e adicional de insalubridade com recursos garantidos pela União, e a Lei Federal nº 14.536/2023, que regulamentou a profissão de ACS e ACE, reconhecendo sua natureza técnica e autorizando o acúmulo de cargos públicos com compatibilidade de horários. Esses avanços, porém, dependem da implementação local, de fiscalização e de políticas complementares que garantam condições dignas de trabalho, contratação direta e formação continuada.
A relevância estratégica dos ACS para o SUS expressa-se também em sua ampla presença nos territórios. Em julho de 2024, o Brasil contava com 402.777 agentes comunitários e de combate às endemias em atividade. As regiões com maior cobertura de ACS apresentaram indicadores significativamente melhores, como queda na mortalidade infantil, redução de internações por doenças evitáveis e aumento na resolutividade das unidades básicas. A atuação dos agentes esteve associada à ampliação do acesso a vacinas, exames preventivos e acompanhamento de doenças crônicas.
Apesar dessa importância, os ACS convivem com riscos ocupacionais que afetam seu bem-estar físico e mental, frequentemente invisibilizados pela gestão e pela sociedade. Por atuarem diretamente em domicílios e ruas, lidam cotidianamente com vulnerabilidade social, violência e carências estruturais. Muitos, por residirem nas mesmas comunidades onde trabalham, relatam dificuldades para se “desligarem” do serviço, o que agrava o desgaste emocional e compromete a separação entre vida profissional e pessoal.
A trajetória dos ACS no Brasil é marcada por lutas por reconhecimento, direitos trabalhistas e valorização profissional, e nesse contexto, destacam-se duas propostas em tramitação no Congresso: a PEC 14/2021, que propõe a formalização do vínculo empregatício dos agentes com os gestores locais do SUS, aposentadoria especial após 25 anos de serviço e sistema de proteção social específico; e a PEC 18/2022, que estabelece piso salarial diferenciado para ACS e ACE com formação técnica, fixado em três salários mínimos.
Ambas têm amplo apoio da categoria, sindicatos e movimentos sociais, que realizam mobilizações, audiências públicas e campanhas de sensibilização. A aprovação dessas emendas representaria avanço histórico para a valorização do trabalho em atenção primária, consolidando o papel dos ACS e ACE como pilares do SUS.
O modelo brasileiro de atenção primária, estruturado pela ESF e fortalecido pelos ACS e ACE, constitui um avanço singular rumo a um sistema universal e equânime. Contudo, essa conquista está ameaçada pela precarização do trabalho, pela expansão da terceirização, pelo desmonte de políticas públicas e pelo subfinanciamento estrutural.
As recentes conquistas legislativas são passos fundamentais, mas insuficientes para resolver problemas crônicos da categoria. A valorização plena dos ACS exige concursos públicos, fornecimento adequado de EPIs, transporte, insumos e fardamento, oferta de formação técnica e continuada, reconhecimento do adicional de insalubridade, aposentadoria especial e estabelecimento de piso salarial compatível com a complexidade do trabalho.
Fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS) é condição indispensável para consolidar um modelo de cuidado baseado na promoção da saúde, na prevenção de doenças e na redução efetiva das desigualdades sociais e territoriais. Isso pressupõe não apenas a ampliação do financiamento público, mas também a garantia de autonomia técnica e política das equipes de saúde, o fortalecimento da participação social e a implementação de mecanismos de gestão e avaliação que priorizem as necessidades da população usuária do Sistema Único de Saúde.
6.
Contudo, tais avanços permanecem severamente ameaçados pela política de austeridade fiscal que orienta o Estado brasileiro desde a Emenda Constitucional 95/2016 de Michel Temer, continuada por Jair Bolsonaro-Paulo Guedes e que encontra no Novo Arcabouço Fiscal (NAF) sua atualização. O NAF, ao impor limites rígidos ao crescimento das despesas primárias, reforça o estrangulamento orçamentário das políticas sociais e reitera a lógica de subordinação das necessidades coletivas às exigências do mercado financeiro e do pagamento da dívida pública.
Essa escolha política, apresentada como medida de “responsabilidade fiscal”, na prática, transfere para a população trabalhadora – sobretudo a mais pobre, negra e periférica – os custos de uma economia marcada pela financeirização e pela concentração de renda. Ao bloquear a expansão real dos investimentos públicos, o NAF inviabiliza a consolidação de uma rede de APS robusta e integralmente articulada com os demais níveis de atenção, favorecendo a mercantilização da saúde e a captura de parcelas crescentes do orçamento por planos privados e prestadores lucrativos.
Além disso, a limitação dos gastos compromete diretamente o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), setor estratégico que movimenta parcela expressiva do PIB e cuja fragilidade estrutural gera um déficit anual de cerca de 20 bilhões de dólares na balança comercial brasileira. A dependência externa de medicamentos, vacinas, equipamentos e insumos compromete a soberania sanitária do país e nos torna vulneráveis a crises globais, como evidenciado na pandemia de COVID-19.
Investir no CEIS significa, portanto, gerar inovação, emprego qualificado, capacidade produtiva nacional e, sobretudo, assegurar o direito à saúde como política de Estado e não como mercadoria.
Entretanto, tais medidas são incompatíveis com o regime fiscal imposto pelo NAF, que cristaliza a austeridade como política permanente e retira do orçamento público a flexibilidade necessária para atender demandas sociais urgentes.
A narrativa de que não há recursos para a saúde, educação e assistência social esconde o fato de que a prioridade segue sendo o pagamento de juros e amortizações da dívida – que só em 2024 devorou 998 bilhões do orçamento público federal –, em detrimento do bem-estar coletivo. Ao não enfrentar essa contradição, o Brasil perpetua um ciclo de subfinanciamento e desigualdade, inviabilizando avanços estruturais na consolidação do SUS e na construção de uma base produtiva nacional autônoma no setor da saúde.
Assim, defender a valorização dos ACS e ACE – e demais profissionais de saúde –, o fortalecimento da APS e do CEIS implica questionar frontalmente o NAF e a lógica de austeridade que o sustenta. Somente com a ampliação real dos investimentos públicos, a revogação das amarras fiscais e uma política de desenvolvimento voltada para a soberania sanitária será possível garantir um SUS universal, integral e de qualidade, capaz de atender às necessidades da população e reduzir as históricas desigualdades sociais e regionais do país.
*João Pedro Marques é graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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