Por JOÃO RODRIGO V. MARTINS*
Os núcleos artísticos do teatro de grupo enfrentam desafios significativos ao tentar conciliar princípios éticos, estéticos e políticos no trabalho com editais
“As ongs vem pagando de filosofia, invade a favela falsa teoria, amenizando a luta a rebeldia, cumprindo o papel que o Estado queria[…] terceiro setor se alimenta do regime, miserabilidade é produto pra vender, o governo corrupto envolveu você” (Ba Kimbuta).
Neste texto desenvolvo algumas reflexões com base em minha tese de doutorado com quatro núcleos artísticos do teatro de grupo (Cia. O Grito, A Próxima Companhia, Engenho Teatral e Coletivo Estopô Balaio), atualmente em desenvolvimento, que aborda a gestão do teatro de grupo na cidade de São Paulo, considerando as formas de agenciar as políticas culturais.
Por gestão de grupo entendo não apenas questão administrativas e financeiras, mas também organização do núcleo, relações de trabalho, relação com território e público. Por autogestão compreendo uma prática feita pelos próprios trabalhadores que pressupõe a realização do trabalho de forma independente das insígnias tanto do mercado quanto do Estado. Essa nomeação é reivindicada pela tradição anarquista,[i] mas era amplamente praticada por comunidades contra o Estado,[ii] como indígenas e quilombolas.
A noção de gestão cultural se consolidou como uma ferramenta central do neoliberalismo no setor da cultural. Essa ideia ganha força nos anos 1990 (OLIVIERI, 2004), associada às políticas de isenção fiscal, em um contexto de redução dos investimentos públicos em cultura e de incentivo à adoção de modelos privados no setor, exemplificado, por exemplo, pela Lei Rouanet. Na virada do século, com o primeiro governo Lula e a nomeação de Gilberto Gil como ministro da Cultura, a gestão cultural passou a reconhecer a cultura também em seus aspectos simbólicos e sociais, para além de sua dimensão como ativo econômico, por meio do chamado conceito antropológico de cultura (GIL, 2003).
Essa perspectiva foi sintetizada nos Pontos de Cultura e acompanhada por debates como o da cidadania cultural (CHAUÍ, 2006), além de um conjunto de ações que compreenderam a cultura como uma esfera de participação política e afirmação da cidadania de populações historicamente subalternizadas.
“A Secretaria da Economia Criativa, em âmbito federal, empenhou-se em instrumentalizar produtores culturais e artistas no acesso aos editais, concentrando esforços na capacitação desses agentes para a gestão de recursos, prestação de contas e elaboração de projetos. Para isso, desenvolveu um conjunto de novas estratégias com o objetivo de apoio aos profissionais e empreendedores criativos com a finalidade de promover e fortalecer as redes e arranjos produtivos dos setores criativos brasileiros, por meio de cursos de capacitação para modelos e gestão de negócios, assessoria técnica e jurídica, entre outros serviços” (BRASIL apud MICHETTI; BURGOS, 2016, p. 594)
Nesse contexto observa-se a proliferação de empresas e associações culturais, bem como o aumento do número de trabalhadores da cultura. Taiguara Belo ressalta: “Como se vê, não há, nesse entendimento, qualquer contradição entre uma maior intervenção do Estado e o crescimento de mercados” (2018, p.184). Esse processo é essencial para compreender os paradoxos das políticas culturais formuladas nesse período e a lógica gerencial que as orienta.
Nesse mesmo período, emerge, no âmbito dos projetos e políticas sociais, a noção de afirmação da cidadania e participação política mediada pelo “mercado da cidadania” (ABÍLIO, 2005). Esse modelo passa a incorporar preocupações com questões sociais e busca minimizá-las por meio de fomento de solução individuais de acessos pontuais a editais e projetos, redefinindo a relação entre Estado, sociedade e setor privado, como aponta a autora: “Hoje a cidadania tem público consumidor, propaganda, orçamento. Seu paralelo com o léxico (e em certa medida também com a lógica) mercadológico permite-nos pensar em um mercado da cidadania que se consolida fortemente a partir dos anos 90 e no qual se entrecruzam entidades privadas, interesses privados, parcerias públicas, todos providos pela delimitação e focalização da pobreza. Assim, cidadania, longe de uma dimensão política, toma-se questão de financiamento e de visibilidade (não de quem é “atingido” mas de quem implementa e executa os projetos sociais). Há todo um movimento de financiamentos internacionais, transnacionais, governamentais que rodeiam – e mantêm – as entidades privadas que se tomam executoras da resolução de problemas sociais. E assim, mais do que nunca, a questão social desaparece para dar lugar às políticas e projetos sociais que demandam orçamento, financiadores e propaganda que lhes dê legitimidade e visibilidade, além de consumidores dirigidos – leia-se: públicos-alvo […] Portanto, o mercado da cidadania obscurece o conflito, e de várias maneiras. Primeiramente tomando-se um meio para que o capital agora construa uma imagem de responsabilidade social – aparência que se descola do movimento real da exploração em seu sentido mais imediato. Em segundo lugar, possibilita que a desigualdade social se tome mais suportável, tanto materialmente para os que consomem a cidadania como mais uma forma de sobrevivência e também para os que a consomem como forma de apaziguar a consciência”. (2005, p.178-179)
Assim, o chamado mercado da cidadania associado à noção de cidadania cultural integra um processo mais amplo de cidadania pelo consumo (CANCLINI, 1996), que foi gestado e implementado durante os governos Lula e teve continuidade até o governo Dilma, sendo interrompido pelo golpe jurídico-parlamentar de Michel Temer. Essa lógica passou a orientar a produção cultural, levando os sujeitos a concebê-la não apenas como um mecanismo de participação política e visibilização de pautas, mas também como uma estratégia trabalho, geração de renda e engajamento social.
A noção de assessoria sustenta a relação entre ONG’s e seus públicos-alvo. O pressuposto central não era falar pelas populações, mas criar meios e condições para que elas falassem por si mesmas. Isso representava uma crítica direta à postura de vanguarda de alguns movimentos sociais e à busca por um universalismo, visto que essas entidades sempre operaram com a fragmentação social, definindo recortes específicos de público. Esse modelo alterou significativamente as concepções de organização política e sua gramática, como aponta Virginia Fontes (2006).
A noção de autogestão, por exemplo, deixou de se referir a um modelo de organização social, econômica e política baseado na autonomia, na participação direta e na ausência de hierarquias coercitivas que pressupunha que trabalhadores e comunidades devem gerir suas próprias atividades, recursos e instituições de forma coletiva, horizontal sem a necessidade de um Estado ou de estruturas de poder centralizadas, passando a ser compreendida de forma atomizada e individualizada, centrada na gestão de si e na concorrência dentro do mercado social ou cultural, arrefecendo seu caráter coletivo e contra-hegemônico.
Algo semelhante ocorre com a noção de autonomia, como destaca Taiguara Belo: “Alterou-se com isso a própria concepção de autonomia, que aos poucos deixou de se referir à capacidade da classe trabalhadora produzir uma contra-hegemonia por fora dos enquadramentos corporativos e institucionais para expressar a completa ausência de vínculos de uma grande variedade de grupos organizados com base em demandas específicas. Fato que se torna mais dramático na questão do financiamento. A priorização das demandas urgentes e imediatas, quase sempre impostas pela precariedade da situação, resultava na secundarização de um projeto político maior que ambicionasse formas de prover a existência das próprias organizações, comprometendo a independência financeira, que é pressuposto da autonomia política”. (2018, p 81)
Nesse contexto, o lugar da militância também é ressignificado, passando a se vincular ao exercício profissional remunerado dentro dessas instituições. Assume, assim, a forma de assessoria e prestação de serviços voltados aos públicos-alvo, em vez de se estruturar em torno de programas, estratégias e práticas voltadas para a transformação social, articuladas por movimentos sociais, sindicatos ou organizações políticas.
O trabalho do teatro de grupo se caracteriza por seu caráter artesanal, baseado em processos de pesquisa longos, horizontais e coletivos. Por demandar tempo, vínculos e um acúmulo relacional e de práticas cênicas, ele se torna improdutivo dentro da lógica de mercado. Além disso, os temas abordados pelos grupos, na imensa maioria das vezes, estão à margem dos interesses do mercado cultural e de seus gestores. Tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, o teatro de grupo, de modo geral, trilha um caminho de resistência contra-hegemônica ao neoliberalismo.
Sob uma ótica marxista, na dimensão do trabalho, os grupos de teatro não estão necessariamente alienados de seus meios e objetos de produção, pois são eles próprios os detentores de suas técnicas e, em muitos casos, possuem seus próprios espaços teatrais. No entanto, não exercem controle sobre o modo de produção cultural, que é regulado pela lógica da gestão baseada em editais e projetos, subordinando sua autonomia política às dinâmicas do financiamento e às diretrizes estabelecidas por agentes externos.
As políticas públicas de cultura, majoritariamente executadas via a forma edital, oferecem, por meio de concurso concorrencial, os recursos financeiros necessários para remunerar um processo de trabalho, criação, aquisição de materiais, dentre outros. No entanto, esses processos não buscam a extração de mais valor econômico, ou seja, não têm como objetivo o lucro.[iii] Contudo, muitos núcleos artísticos não veem as políticas públicas como meios para viabilizar o trabalho, mas sim como um fim em si mesmas. Em algumas coletividades, o modo de produção grupo é (re)estruturado apenas quando há acesso aos editais, evidenciando uma dependência à lógica de financiamento, tanto em termos de estruturação de núcleo, quando de produção.
O acesso a esses editais condiciona um conjunto de procedimentos, normas e exigências à dinâmica de gestão dos grupos, afetando desde as relações e organização do trabalho até as atividades administrativas e financeiras, incluindo a relação com o público/território e com a obra em si. Esse acesso ocorre por meio de projetos culturais elaborados pelos grupos, que geralmente seguem uma estrutura composta por: resumo, objetivos, público-alvo, orçamento, cronograma, plano de divulgação, contrapartidas sociais, avaliação e indicadores.
No contexto de um processo de pesquisa e criação artística, essas previsões são muitas vezes irreais, dado que a natureza do trabalho artístico fica enquadrada a um dispositivo administrativo e jurídico da forma edital, o que dificulta a realização de práticas políticas ou estéticas radicalmente contra-hegemônicas, como discorre Taiguara Belo: “Ainda que sempre haja espaço para exceções, a própria noção de projeto pressupõe, assim, um conjunto de expedientes constrangedores ao fazer cultural: a descrição antecipada dos resultados que as ações visam proporcionar, o que as limita em diversos aspectos; esquematização das condições do ato criativo; antecipação de conceitos, leituras, ante a necessidade de justificar as propostas; adequação das ideias e experiências que são por sua natureza inestimáveis, propositalmente imprecisas, em conformidade com a oferta de recursos e os objetivos do edital; delimitação prévia de lugares, sensações e linguagens que podem ser exploradas etc. É então de se supor que o espírito de contestação que eventualmente esteja contido em uma intenção cultural fique ajustado ao que está dado, a um princípio jurídico-formal que não admite improvisos” (2018. p. 134).
Esse modelo de trabalho por projeto não é exclusivo da cultura e nem é uma novidade. Conceituações como capitalismo de plataforma, gig economy e uberização surgem como tentativas de explicar as transformações e a nova morfologia do trabalho. Ricardo Antunes (2018, 2020) argumenta que o neoliberalismo impulsiona o capitalismo de plataforma, pois enfraquece a força dos sindicatos, a atuação do Estado e, consequentemente, as proteções sociais. Nessa nova configuração do trabalho, os trabalhadores não possuem vínculo empregatício nem direitos, sendo informais, prestadores de serviço, contratados por “bicos” ou de forma intermitente.
A ideia transmitida é a de que esses trabalhadores são seus próprios patrões, mas estão, na prática, sempre subordinados aos algoritmos das plataformas, que exigem um trabalhador flexível, polivalente, capaz de se autogerenciar, auto responsável e disciplinado, inserido em um contexto de insegurança, precariedade e instabilidade.
Essa característica se aproxima bastante do trabalho realizado pelos núcleos de teatro de grupo em torno dos editais e projetos. Contudo, acredito que há uma característica ainda mais acentuada nesse contexto, especialmente por se tratar de verba pública: as auditorias. A auditoria é um modelo e prática de gestão social que se baseia em métricas, avaliações e fiscalizações constantes das relações de trabalho e dos processos institucionais (POWER, 1999). No contexto neoliberal, essa lógica incide diretamente nos trabalhadores e tende a enquadrar as atividades em dados mensuráveis e indicadores de performance.
Um exemplo nítido disso é o que ocorre na plataformização do trabalho, em empresas como Uber, 99 Táxi, entre outras, onde motoristas e entregadores são continuamente avaliados por algoritmos e clientes, e fiscalizados pela própria plataforma, criando um ambiente de controle constante.
As auditorias são realizadas em nome da garantia de eficiência, produtividade, transparência nos processos e são propaladas como procedimentos técnicos, neutros e objetivos. O impacto dessa lógica, em termos de subjetividade e na dinâmica concreta das relações de trabalho, se manifesta na autovigilância, na autoresponsabilização, na internalização do controle e na autocensura, com o objetivo de cumprir rigorosamente as metas estabelecidas. Esse processo cria uma estrutura em que os trabalhadores se tornam, em grande parte, seus próprios vigilantes, ajustando constantemente seu comportamento e desempenho para atender às exigências externas, muitas vezes de maneira automática e internalizada.
Paradoxalmente esse novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) é resultando da apropriação de um conjunto de críticas a impessoalidade, burocratização e disciplinarização do trabalho fordista: “A exigência de autonomia, integrada aos novos dispositivos empresariais, possibilitou envolver novamente os trabalhadores nos processos produtivos e diminuir os custos de controle, substituindo-o pelo autocontrole, conjugando autonomia e senso de responsabilidade perante as demandas de clientes ou perante curtos prazos. A exigência de criatividade, feita sobretudo pelos assalariados portadores de diplomas de nível superior, engenheiros ou executivos, teve um reconhecimento inesperado trinta anos antes, quando ficou evidente que uma parte cada vez maior dos lucros provinha da exploração dos recursos de inventividade, imaginação e inovação, desenvolvidas nas novas tecnologias e sobretudo nos setores em plena expansão dos serviços e da produção cultural, o que provocou, entre outros efeitos, o enfraquecimento da oposição entre intelectuais e homens de negócio, entre artistas e burgueses […] A exigência de autenticidade, cujo foco era a crítica ao mundo industrial, à produção de massa, à uniformização dos modos de vida e à padronização […] Por fim a exigência de liberação (que, especialmente no campo dos costumem, se constituíra na oposição à moral burguesa e podia apresentar-se como aliada à crítica ao capitalismo ao fazer referência a um estado já superado do espírito do capitalismo, centrado na poupança, nas virtudes familiares e no puritanismo) foi esvaziada da carga contestadora quando a suspensão dos antigos interditos se mostrou apta a abrir novos mercados” (p. 346-347).
Essas críticas e esses apelos tiveram como corolário novas subjetivações necessárias para acompanhar a nova morfologia do trabalho: “Assim, por exemplo, as qualidades que, nesse novo espírito, são penhores de sucesso – autonomia, espontaneidade, mobilidade, capacidade rizomática, polivalência (em oposição à especialização estrita da antiga divisão do trabalho), comunicabilidade, abertura para os outros e para as novidades, disponibilidade, criatividade, intuição visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade de dar atenção à vivência alheia, aceitação de múltiplas experiências, atração pelo informal e busca de contatos interpessoais – são diretamente extraídas do repertório de maio de 68”. (Idem, p. 130)
Ao traçarmos um paralelo entre essa lógica e as políticas públicas de cultura, o formato de projeto cultural valoriza excessivamente a exequibilidade e os impactos alcançados, dentro de uma esquematização jurídico-administrativa que calcula aspectos financeiros, cronogramas e o alcance do público-alvo. Além disso, na Lei de Fomento ao Teatro, por exemplo, existem relatórios de prestação de contas para o monitoramento do projeto, onde a liberação da verba está condicionada à aprovação dessa prestação, dividindo o financiamento do projeto em três parcelas de 40%, 40% e 20%.
Isso cria uma situação de paralisia nos projetos culturais, onde as coletividades precisam se desdobrar em estratégias para garantir que o projeto não seja interrompido no meio, o que geraria prejuízos tanto na prestação de contas quanto no resultado estético. Isso é ainda mais complexo quando consideramos a natureza imprevisível de qualquer projeto criativo e de pesquisa, que, em certa medida, depende de sua flexibilidade e capacidade de adaptação constante.
O que se observa é que as atividades artísticas e as obras são pensadas a partir de um cálculo complexo entre os desejos dos núcleos, as possibilidades de aprovação e as exigências jurídico-administrativas dos editais. Ao apresentarem um projeto, os grupos precisam considerar esses aspectos, e ao escrevê-lo, os desejos estéticos e políticos muitas vezes são minimizados em relação às necessidades materiais, ao cumprimento das métricas e metas estabelecidas em edital e a operacionalização da execução e prestação de contas.
A relação jurídica com a forma edital se torna uma preocupação constante dos grupos, a ponto de influenciar drasticamente os processos artísticos, impactando as buscas por formas alternativas de criação artística e de gestão de grupo. Nesse sentido, trago três exemplos etnográficos. No Engenho Teatral, durante o espetáculo Uma Festa com temperos teatrais, o núcleo oferece bebidas ao público, incluindo cerveja. Essa ação faz parte da compreensão do grupo em busca do “público ausente no centro”, ou seja, tenta atrair públicos que não estão familiarizados ou habituados a frequentar a cena teatral, que é predominantemente frequentada por uma classe média intelectualizada, como estudantes universitários ou outras pessoas ligadas à própria categoria artística.
Nessa busca, o grupo, por meio da festa, busca fomentar um conjunto de debates sobre as condições da classe trabalhadora na atual fase do capitalismo. E, se estamos falando de festa, é necessário ter comida, bebidas e cerveja. No entanto, isso se tornou um entrave para o grupo quando foram contemplados pelo Fomento, pois, apesar de terem declarado no projeto que comprariam cervejas para o espetáculo, com uma proposta estética clara na relação com o público e com o trabalho do núcleo, ainda há o receio de represálias ou dificuldades na aprovação da prestação de contas, quando as notas fiscais das cervejas forem apresentadas. Isso revela como as exigências administrativas e jurídicas podem impactar e, em certos casos, até limitar as escolhas criativas e estéticas de um grupo artístico.
Outro caso é o da Cia. O Grito, que, após concluir as apresentações e a circulação do espetáculo inédito Cidade Alúvio, precisou organizar-se para realizar a prestação de contas do Fomento pela primeira vez, já que esse era a primeira vez que o núcleo acessava essa política pública. O processo de prestação de contas demorou a ser avaliado e, entre idas e vindas, o elenco e os convidados ficaram meses sem receber o último cachê, mesmo após a finalização do projeto. Essa experiência marcou profundamente o grupo, que, ao término do edital, sentia-se exausto diante da intensa carga de trabalho jurídico e administrativo. A burocracia excessiva dificultou a concentração nos processos artísticos e minou o ânimo e a energia do grupo, tornando a fase final do edital desgastante, com um desejo de encerrar logo o projeto.
Outro caso patente é o de A Próxima Companhia, em que a produtora Catarina destaca: “A verba, o tempo, as autorizações definem os caminhos, né?” (Entrevista em 29 de janeiro de 2025). Ela enfatiza os desafios de conciliar questões orçamentárias com os desejos estéticos do núcleo ao mencionar o último pagamento da parcela do Fomento, correspondente a 20% do projeto todo:
Se eu tenho essa economia lá no final, isso é pensando em dinheiro mesmo, né? Eu tenho uma economia pra fazer lá no final que eu só vou receber quando eu entregar o projeto. Então, a entrega do projeto depende das coisas acontecerem no prazo. As coisas acontecerem no prazo depende de muitas coisas, né? Da dinâmica das pessoas e tal. (Entrevista ao pesquisador, 29 de janeiro de 2025)
Os núcleos artísticos do teatro de grupo enfrentam desafios significativos ao tentar conciliar princípios éticos, estéticos e políticos no trabalho com editais. Como afirmou Rafaela Carneiro, atriz do grupo Madeirite Rosa, “os editais possibilitam, mas também limitam” (Caderno de Campo, 17 de janeiro de 2024). Ao longo da execução de um edital, os grupos lidam com dilemas que emergem dessas dimensões, especialmente diante da complexidade burocrática, jurídica e administrativa desse modelo de financiamento. A forma edital, ao responsabilizar e potencialmente penalizar o proponente e sua representação jurídica por eventuais problemas, tende a favorecer uma postura pragmática. Com isso, muitas vezes, as posições políticas e estéticas, que demandam tempo para amadurecimento coletivo, acabam sendo colocadas em segundo plano diante dos desafios cotidianos das políticas culturais.
Essa postura pragmática está alinhada à lógica da gestão, que se pauta na tecnicidade, objetividade e pretensa neutralidade. O próprio formato do edital exige essa pragmática, pois opera como um dispositivo degovernamentalidade (FOUCAULT, 2006). Dessa forma, os esforços e direcionamentos contra-hegemônicos dos grupos acabam sendo enfraquecidos e, muitas vezes, absorvidos por dentro desse mecanismo.
As proposições de um projeto cultural, assim como um projeto de pesquisa acadêmica, transformam-se ao longo de seu desenvolvimento, podendo até contrariar ou reconfigurar o que foi originalmente proposto. Essa é a natureza de um processo de pesquisa – seja artística ou acadêmica – questionar seus próprios pressupostos e hipóteses à luz da realidade. Quando um projeto se mantém inalterado do início ao fim, ele deixa de ser um processo investigativo para se tornar uma mera execução protocolar. Os editais, com sua rigidez jurídico-administrativa, têm justamente incentivado essa lógica, limitando experimentações radicais e dissidentes, tanto em termos de forma quanto de conteúdo. Na ideia tão propagandeada de “hackear o sistema”, quem está sendo hackeado, muitas vezes, é a própria potência transformadora e dissidente do teatro de grupo.
*João Rodrigo V. Martins é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referências
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SCHULTZ, T. W. O Capital Humano: investimentos em educação e pesquisa. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
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WACQUANT, Löic. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 66, p. 505-18, set/dez.2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/ZkxxQjDk5XZHxxtVdHWvtym/abstract/?lang=pt
ZHANG, Li; ONG,Aihwa (editors) Privatizing China: Socialism from Afar. 1st ed., Cornell University Press, 2008.
Notas
[i] Para mais informações, consultar Felipe Côrrea (2015).
[ii] Para mais informações, consultar Pierre Clastres (2003) e Antônio Bispo dos Santos (2023).
[iii] Pode-se discutir a extração de uma mais valia simbólica dos editais públicos, mas esse assunto não será abordado neste texto.
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