Por SAMUEL KILSZTAJN*
O estandarte da democracia, ostentado pelo ocidente, sempre foi usado como um mero instrumento de dominação
A Revolução Francesa, para um ocidental, é algo muito distante, mesmo para os adultos. Para os jovens, então, até o Império americano é antediluviano (embora exista há apenas um século). Mas, quando se pergunta para um oriental o que ele acha da Revolução Francesa, a resposta é “Ainda é muito cedo para se falar do assunto”.
A Revolução Francesa pôs fim à monarquia absolutista há pouco mais de duzentos anos e a reação da aristocracia da Europa continental levou Napoleão Bonaparte a exportar a revolução. Mesmo no interior da sociedade francesa, a revolução deu passos à frente e passos atrás, brilhantemente traçados pela pena de Honoré de Balzac em La Comédie humaine.
Na Inglaterra, contudo, o fim da monarquia absolutista precedeu a Revolução Francesa em mais de um século. Sob a liderança de Oliver Cromwell, o Rei Carlos I da Inglaterra foi julgado e decapitado em 1649. Após a Restauração em 1660 e a Revolução de 1688, a monarquia foi constitucionalmente submetida ao Parlamento Inglês, que passou a deter o poder real. A sujeição da pragmática monarquia inglesa ao parlamento, monarquia que perdura até os nossos dias, neutralizou uma possível lamentação pela execução de Carlos I, ao contrário das execuções de Louis XVI pela Revolução Francesa e do Czar Nikolai II pela Revolução Russa.
Até a Revolução Industrial na segunda metade do século XVIII, o oriente ficava muito longe da Europa, em grande parte administrado pelos impérios russo, otomano, indiano e chinês. Alexandre I derrotou o exército de Napoleão em 1812, mantendo o Império Russo refratário às conquistas liberais que dominaram a Inglaterra e a Europa Continental. A Índia foi submetida à Inglaterra no início do século XIX e a China durante as Guerras do Ópio em meados do mesmo século. O Império Otomano só ruiu no início do século XX, após a Primeira Guerra Mundial.
Os russos, particularmente, depois de enfrentarem Napoleão, o mundo ocidental por ocasião da Revolução de 1917 e Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, continuam sendo desafiados com a sedução da Ucrânia pelo ocidente. O mundo ocidental também se empenhou em modernizar os xiitas do Irã, que se insurgiram em 1978. Então, para combater os persas, resolveu armar o Iraque, que saiu de controle e acabou sendo invadido. A seu capricho, o ocidente subverte as culturas orientais e, depois, retira-se de forma inconsequente, abandonando os nativos “modernizados” à própria sorte, como fez há pouco tempo no Afeganistão.
A Índia só ganhou sua independência com a desobediência civil em meados do século XX. O Império Chinês, depois da intervenção ocidental em meados do século XIX, ruiu em 1911. Chiang Kai Shek ocidentalizou o país, mas foi derrotado por Mao Tsé Tung em 1949. A Índia e a China estão agora se preparando para se vingar do ocidente – que achou que tinha destruído as suas culturas milenares – utilizando as próprias ferramentas do ocidente: o mundo da mercadoria (sem esta coisa chamada direitos trabalhistas).
O avanço destes países em seu projeto pode ser sentido nas polêmicas reações dos Estados Unidos para a proteção de seu mercado, reações que, entretanto, afetam a sua própria economia. César, Kaiser, Czar, a história da humanidade já assistiu ao desmoronamento de muitos poderosos impérios. O sintoma da decadência dos Estados Unidos pode ser conferido na ascensão de um político emotivo, fanfarrão grotesco que esbraveja ao vento, com uma postura muito pouco apropriada para um estadista.
Liberté, égalité, fraternité sempre foi, no máximo, um lema com validade restrita às populações de origem europeia (a vizinha Argélia e a longínqua Nova Caledônia que o digam). Com a Revolução Industrial, a selvageria dos europeus, que já havia se manifestado em sua conquista anterior aos continentes americano, africano e oceânico, se estendeu à Ásia, do Oriente Próximo ao Extremo Oriente. A ganância dos ocidentais levou-os a querer abraçar o mundo, ou melhor, colocar o mundo de joelhos aos seus pés.
O estandarte da democracia, ostentado pelo ocidente, sempre foi usado como um mero instrumento de dominação. Mais recentemente, durante a Guerra Fria, o Ocidente fomentou ditaduras sangrentas na América Latina. Lutou com unhas, dentes e napalm para “garantir a democracia” no Sudeste Asiático, mas, até hoje, não está minimamente interessado em apoiar o avanço da democracia nos países do Oriente Médio que lhe são subservientes, preferindo lidar com regimes autocráticos e monarquias.
O ocidente dominou o oriente, mas a Revolução Francesa nunca atingiu a Rússia, o Islão, a Índia e a China. Os sagazes e traiçoeiros ocidentais consideram que a sua cultura é sinônimo de civilização – prezam o livre-arbítrio, a individualidade e a sua “identidade” – e não conseguem entender minimamente a cultura e os valores das sociedades orientais, que consideram folclóricas, esotéricas e bárbaras. Do ponto de vista ocidental, a China produz autômatos, a Índia marginaliza castas inferiores, o Islão produz fundamentalistas e a Rússia agrega um bando de alcoólatras.
O ocidente, em sua postura missionária altruísta, como se não tivesse nenhum interesse escuso a defender, está sempre pronto para socorrer o oriente, para impedir que facções mortíferas se aniquilem umas às outras. Só a título de ensaio, não é possível sequer imaginar algum dos impérios orientais ter invadido o ocidente para se imiscuir nas desavenças entre católicos e protestantes durante a Reforma, ou se prestado a apartar ingleses, franceses e alemães em suas históricas querelas.
Mas não se preocupem, porque os ocidentais sabem mais e, com a melhor das intenções, estão empenhados em sacrificar seus nobres cidadãos para salvaguardar o mundo, levar os valores humanistas e a democracia para livrar a humanidade dos fabricantes de androides, elitistas, sanguinários e bêbados que infestam o planeta. A seu favor, os ocidentais, em seu curriculum e no peito, ostentam as medalhas que angariaram por terem transformado fogos de artifício em armas de fogo, salvado as almas dos letárgicos habitantes originários das Américas e da Oceania e propiciado trabalho para esses vagabundos africanos subsaarianos.
Embora a crise da civilização ocidental seja patente no meio acadêmico, crítico ao colonialismo, reproduzimos a postura colonialista ao nos apegarmos ao paradigma ocidental de pensamento como se fosse universal, com manifesto desprezo ao milenar pensamento oriental. Ao que tudo indica, vamos ter que lidar com questões sobre livre-arbítrio, antropocentrismo, gênero etc. em um mundo totalmente ininteligível para um ocidental. O que será que a China e o Islão pensam de Spinoza?
Ou seja, o ocidente está cego e sem conserto. Se você estiver achando este artigo algo catastrófico, então não assista à entrevista do José Arbex Junior, que beira a humor negro. Ah, eu estava esquecendo da crise climática e da inteligência artificial. É que a modernidade me traz desconforto. Mas, se você estiver muito interessado, consulte a Eleonora Albano.
Em tempo: para os chineses, viver momentos interessantes é uma maldição, uma praga.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, Do socialismo científico ao socialismo utópico. [amz.run/7C8V].
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