Por MAURO BAPTISTA*
A teoria de cinema percebe os gêneros como processos, não como formas fixas e pré-estabelecidas
Introdução
Há décadas que o termo gênero é empregado tanto pela crítica como pela teoria de cinema. No entanto, não existe consenso sobre seu significado, nem sobre sua utilidade para a análise. O termo gera várias perguntas: O que é um gênero? Quais são seus elementos constitutivos? Qual é a função dos filmes de gênero dentro da indústria cinematográfica? Como se originam os gêneros ꟷ o que os causa?
Como outros conceitos da teoria do cinema, o termo gênero provém da teoria literária, o que gerou várias confusões. Como princípio metodológico, vamos nos limitar ao estudo dos gêneros no cinema americano, apesar do conceito ser universal e poder aplicar-se a cinematografias de outros países. Por que esta opção? Em primeiro lugar, os filmes de gênero se originaram em Hollywood e continuam associados ao cinema produzido nos grandes estúdios; em segundo lugar, porque é nos Estados Unidos que os gêneros possuem maior importância entre os cineastas, o público, a indústria e a crítica. Talvez essa seja a razão de que a maioria da reflexão teórica sobre gênero procede de Estados Unidos e do Reino Unido.
De uma perspectiva histórica, a noção de gênero tem evoluído de definições baseadas na localização de elementos temáticos e estruturais para definições que remarcam a importância da relação desses elementos com a audiência e a indústria. Os primeiros ensaios sobre gênero costumavam pensar o conceito de forma ahistórica. Os gêneros eram estudados como estruturas fixas, isoladas do contexto econômico, social e cultural. Os trabalhos mais recentes (como os de Steve Neale na década de 90[i]) rejeitam essa concepção de gênero como obra fechada, para pensar o conceito como obra aberta em contínua interação com o público, a indústria e a imprensa.
A polêmica sobre o significado da noção de gênero nasce da existência de duas acepções do termo: a popular, a do sentido comum; e a teórica e acadêmica. A primeira é a versão pragmática, pouco rigorosa e ampla de gênero utilizada pela indústria, pelo público e pela imprensa, para classificar os filmes. A segunda, própria à análise e teoria do cinema, possui um significado mais específico e tende a abranger uma quantidade menor de filmes. A concepção pragmática de gênero leva a considerar uma ampla lista de filmes que correspondem a uma definição tautológica do conceito ꟷ, por exemplo, o western é um filme cuja ação ocorre no Oeste americano. A concepção acadêmica conduz críticos e teóricos a definir uma lista limitada de filmes, que serão mencionados repetidamente por representar o paradigma de um gênero particular; exemplo: Out of the Past (Jacques Tourneur, 1947) no film noir; Stagecoach (John Ford, 1939) no western. Rick Altman assinala que dessa contradição surge o problema do status relativo da teoria e da história dos gêneros[ii]. Altman lembra que até a chegada da semiótica, os termos genéricos e as definições eram retirados da própria indústria: a pouca teoria existente tendia a se confundir com a análise histórica[iii]. Com a forte influência da semiótica na teoria do gênero, o vocabulário crítico e estruturalista substituiu o vocabulário do senso comum. No entanto, Altman afirma que as contribuições de Vladimir Propp, Claude Lévi-Strauss, Northrop Frye e Tzvetan Todorov não foram totalmente produtivas por causa do lugar que o projeto semiótico reservou ao estudo dos gêneros. Altman sublinha que um dos aspectos mais notáveis da teoria de linguagem de Saussure é sua ênfase na impossibilidade de que um indivíduo isolado possa fazer mudanças numa linguagem.
“A estabilidade da comunidade linguística serve, deste modo, como justificativa para o enfoque principalmente sincrônico de Saussure, da linguagem. Quando os semióticos da literatura aplicaram este modelo linguístico a problemas da análise textual, eles nunca levaram em conta a noção da comunidade interpretativa implicada na comunidade linguística de Saussure[iv]”.
Segundo Altman, esse é o contexto no qual devemos considerar o trabalho de Propp, Lévi-Strauss, Todorov e outros teóricos dos gêneros. Sem querer comprometer seus sistemas com a noção histórica de comunidade linguística, estes pensadores trocaram o conceito de comunidade linguística pela ideia de contexto genérico, como se o peso de vários textos similares fosse suficiente para localizar o significado de um texto, independente da existência de uma audiência específica. Do começo, e por definição, a análise semiótica dos gêneros ignorou a história.
“Porque trataram os gêneros como a comunidade interpretativa, eles foram incapazes de perceber o papel importante dos gêneros na prática de influenciar a comunidade interpretativa[v].”
Portanto, a análise semiótica, no lugar de estudar como Hollywood utilizava os gêneros para abreviar o processo normal de interpretação, assumiu o efeito ideológico de Hollywood como uma causa natural e ahistórica.
Neste ponto, devemos sublinhar como este problema ꟷ a ahistoricidade, a análise dos gêneros fora do contexto ꟷ permanece ainda nas teorias contemporâneas mais avançadas, que imaginam o texto genérico em permanente negociação entre um sistema de produção específico e uma audiência determinada. Nosso olhar sobre os gêneros ainda é ahistórico e estático.
Problemas da teoria de gênero
Andrew Tudor é um autor que questiona a utilidade teórica do gênero como ele é concebido tradicionalmente pela teoria, ao destacar as dificuldades que a crítica tem para definir o termo (lembrando a anterior origem na indústria e no público). Tudor lembra como, em alguns casos, o conceito gênero supõe a ideia de que se um filme é um western forma parte de uma tradição, de um conjunto de convenções ꟷ temas, ações, elementos[vi]. Outra forma de usar o termo, como por exemplo, filmes de horror, também pressupõem certos temas ou a ideia de filmes que têm a intenção de horrorizar; em lugar de definir gênero por atributos, ele é definido por intenções. Para Tudor, ambos os usos apresentam vários problemas: no primeiro, e mais comum, o termo aparece redundante; no segundo, há uma óbvia dificuldade de tentar isolar intenções. Segundo o autor, quase todos os teóricos e críticos estão presos num dilema: eles definem um gênero, digamos o western, baseados no estudo de um grupo de filmes que não podem ser chamados de western até depois da análise[vii]. Se, por exemplo, os temas e convenções forem o critério definidor de um western, primeiro devemos saber quais são essas características. No entanto, só chegaremos a delimitar os temas e convenções estudando um corpus de filmes previamente definido como western.
“Estamos presos num círculo que primeiro requer que os filmes sejam isolados, para o qual um critério é necessário, mas o critério tem, por sua vez, que surgir das características empíricas comuns dos filmes[viii]”.
Segundo Tudor, este dilema empiricista tem duas soluções. A primeira é classificar os filmes de acordo com um critério definido a priori que dependerá do objetivo teórico. Isto nos leva à primeira posição na qual o termo do gênero é redundante. A segunda é chegar a um consenso cultural do que constitui um western e depois partir para a análise em detalhe. A última é a raiz da maioria dos usos do termo gênero ꟷ como a ideia de convenções num gênero.
Tudor sublinha que falar de um western é falar de um conjunto comum de significados numa cultura. Sua argumentação o leva a afirmar que
“os fatores cruciais que distinguem um gênero são não só características inerentes dos filmes; eles também dependem da cultura particular onde operam. (…) Gênero é o que nós achamos coletivamente que seja[ix].”
É por essa razão que Tudor acha potencialmente interessante as noções de gênero para o estudo da interação social e psicológica entre cineastas, filme e audiência; não para objetivos imediatos da crítica. Segundo o autor, para usar o termo gênero de maneira mais profunda é necessário saber claramente o que os cineastas querem dizer quando fazem um western, ou seja, qual a relação entre um autor e gênero. Se quisermos falar de um diretor que quebra as regras de um gênero, devemos conhecer essas regras. Aliás, falar de quebra de regras não tem sentido se a própria audiência não as conhece bem.
Ao contrário da maioria das abordagens tradicionais, Tudor acha que a formação de um gênero depende mais da recepção (o público) que da enunciação (os filmes em si). A argumentação com que aponta o dilema fundamental do conceito de gênero é totalmente lógica, porém poderia aplicar-se não só a gênero como a outras categorias e conceitos que tem como objetivo classificar e/ou delimitar, grupos de elementos com traços comuns. A amplitude do dilema é muito maior que a teoria do cinema; chega até as raízes das limitações da linguagem e do conhecimento. Como Welleck e Warren lembram em Theory of Literature:
“O dilema da história dos gêneros é o dilema de toda história: para descobrir o esquema de referência (neste caso, o gênero) devemos estudar a história; mas não podemos estudar a história sem ter em mente algum esquema de referência para a seleção[x].”
Outro ponto discutível do artigo de Tudor são as duas soluções do dilema: classificar os filmes de acordo com um critério definido a priori, que dependerá do objetivo teórico; e chegar a um consenso cultural do que constitui um western e depois partir para a análise em detalhe. Não achamos uma diferença substancial entre ambos os caminhos: as duas partem do mesmo princípio de estabelecer um parâmetro a priori antes de escolher o grupo de filmes a serem estudados. No entanto, o ensaio de Tudor é representativo das dificuldades que gera o termo gênero e da falta de consenso sobre sua utilidade. O artigo, publicado em 1973, é também pioneiro na tendência de definir o termo não de uma forma estática, ahistórica, mas na relação dos filmes com a audiência e os cineastas.
Breve história da teoria de gênero
Em The Idea of Genre in the American Cinema, Edward Buscombe faz uma breve história do conceito de gênero na literatura, já que é nesta arte que surgem os primeiros problemas teóricos. A ideia de que há diferentes tipos de literatura, com diferentes técnicas e temas, foi primeiro desenvolvida por Aristóteles. Em Poética, Aristóteles separa o que chamou poesia ꟷ o que nós chamamos literatura ꟷ em várias categorias, como tragédia, épica, lírica, para depois concluir que a tragédia era a forma mais alta da poesia. Na Renascença, as ideias de Aristóteles se tornaram um rígido sistema de regras, e estilos e formas eram prescritos para cada forma. O exemplo mais conhecido é a regra das três unidades dramáticas, os três atos aristotélicos. Essa codificação se estendeu no período neoclássico dos séculos XVII e XVIII, quando a literatura foi dividida ainda em mais categorias, cada uma com seu tom, forma e tema. Como resultado dessa abordagem quase mecânica e ditatorial a teoria da literatura foi perdendo crédito, afirma Edward Buscombe[xi].
Com a revolta romântica contra as regras e tradições, a ideia de categorias literárias, ou gêneros, como depois foram chamadas, foi muito desprestigiada. Com uma escola de Chicago conhecida como neoaristotélica, nos anos de 1930 e 1940 voltou-se a prestar atenção à influência de formas e convenções já presentes. Os neoaristotélicos se colocaram contra o chamado New Criticism, que tinha repudiado todo tipo de abordagem histórica da literatura. A concepção desta última escola era que uma obra literária existe por si mesma e não precisa referências externas, sejam contemporâneas ou históricas. Com o objetivo de resgatar a literatura de seu isolamento, os neoaristotélicos ressuscitaram parcialmente a teoria dos gêneros. Mas, segundo Buscombe, não escaparam do que tem sido sempre uma fonte de confusão: Aristóteles reflexionou sobre os tipos literários em dois sentidos: primeiro, os tipos literários como um número de grupos diferentes de convenções que cresceram historicamente e se desenvolveram em formas como a sátira, a lírica e a tragédia; segundo, como uma divisão mais fundamental da literatura, em drama, épico e lírico, correspondendo a diferenças na relação entre artista, temas e audiência
“Foi empregado mais tempo para determinar a natureza e possibilidades desses três modos de literatura do que em explorar os gêneros históricos. Como resultado, pouco desse trabalho é relevante para o cinema, visto que esses três modos (que correspondem aproximadamente a drama, ficção e poesia) estão presentes de forma equivalente no cinema[xii]”.
Buscombe assinala que muitos tentam evitar toda a questão de gênero por considerarem que isto levará ao estabelecimento de regras que vão restringir arbitrariamente a liberdade dos artistas para criar o que desejam, ou retirar a liberdade dos críticos para falar sobre o que queiram. Mas se a teoria da literatura tem sido geralmente restritiva e normativa, não tem porque ser assim obrigatoriamente: a intenção original de Aristóteles foi descritiva, não normativa.
Apesar do papel central dos filmes de gênero na indústria e no público, o reconhecimento da teoria de gênero na crítica cinematográfica foi tardio, em parte pelos problemas gerados na literatura, em parte pelo apogeu da teoria do autor. Os primeiros ensaios significativos sobre gênero foram os artigos de Robert Warshow sobre filmes de gangster e western ꟷ publicados em 1948 e 1954 ꟷ e os dois artigos de André Bazin sobre western na década. Portanto, cronologicamente, a teoria de gênero no cinema é anterior à teoria de autor, mas se desenvolveu mais lentamente porque não teve a popularização que teve a teoria de autor, criada pela crítica francesa ligada à Nouvelle Vague, e difundida nos Estados Unidos por Andrew Sarris.
Barry Keith Grant sublinha como os artigos de Bazin e de Warshow indicaram o caminho para trabalhos posteriores sobre gênero. Em seu ensaio sobre filmes de gangster, Warshow intui a dinâmica do gênero e o prazer que outorga ao público, antecipando uma das áreas mais sofisticadas da teoria de cinema contemporânea: o papel e a posição do espectador na construção da experiência cinematográfica. Sua observação de que “a cidade verdadeira… produz apenas criminosos; a cidade imaginária produz o gangster”, revela uma compreensão dos gêneros como sistemas de convenções estruturados de acordo com valores culturais, uma ideia próxima ao que os estruturalistas chamaram mais recentemente de “estrutura profunda” do mito[xiii]. A diferenciação de Warshow iniciou a aceitada separação de verossimilhança histórica (diversa de história) e o estudo de gênero.
Nos anos sessenta, uma primeira semiótica ꟷ inspirada nos trabalhos de Lévi-Strauss e Greimas ꟷ concentrou-se no significado dos filmes (na história no sentido de Émile Benveniste). Um exemplo clássico da união desse instrumental semiótico-estruturalista foi o ensaio The Auteur Theory de Peter Wollen, que analisa o trabalho de John Ford e Howard Hawks[xiv]. Wollen concluiu que a obra de John Ford era superior à de Howard Hawks através do estudo das oposições temáticas binárias, que revelaram ser mais ambíguas e variadas em Ford.
Nos anos setenta, o interesse no filme narrativo ꟷ alimentado por uma década de auterismo que defendia os filmes americanos de gênero ꟷ começou a diminuir e cresceram as preocupações da teoria do cinema com a forma. O interesse da crítica passou do significado de um filme para a prática da significação, da história para o discurso (como é construído o relato). Em 1972, Gérard Genette publica Figures III[xv], obra seminal da narratologia literária que trabalha, com precisão, problemas formais da construção do discurso literário anteriormente discutido principalmente por Henry James e o formalismo russo. A obra de Genette criou as bases para o surgimento da narratologia fílmica ꟷ teoria de cinema que estuda como se constrói o relato fílmico ꟷ que terá um significativo desenvolvimento nos anos oitenta e noventa.
Grant destaca como na década de setenta o interesse no discurso fílmico levou críticos e teóricos a concentrar sua atenção em filmes que rompiam de alguma forma, com a linguagem clássica de Hollywood ꟷ que Noel Burch denominou o modo institucional da representação. Ao mesmo tempo, houve um grande interesse sobre a ideologia na arte ꟷ estimulado pela incorporação à teoria do pensamento de John Berger, Louis Althusser, Bertold Brecht, Sigmund Freud ꟷ que debilitou a hipótese de que a compreensão de um diretor e sua obra proveria a chave principal para a interpretação. O significado surgia agora da conjunção de vários códigos discursivos do texto fílmico, dos quais o pertencente ao diretor era apenas um. Esta ênfase na significação e na ideologia trouxe um renovado interesse no filme narrativo clássico, e em conseqüência, nos filmes de gênero, gerando uma nova perspectiva teórica. A nova abordagem achava que os gêneros eram bastante mais do que simples ilusionismo burguês, essencialmente conservador em tema e estilo. Os gêneros eram, sobretudo, edifícios míticos a serem desconstruídos. Agora o estudo dos gêneros era legitimado porque era útil para estudar os contextos econômicos e históricos (condições de produção e consumo), funções e convenções míticas (códigos semióticos e padrões estruturais) e o lugar dos cineastas nos gêneros (a relação entre a tradição e o autor individual[xvi]).
Nesta linha de pesquisa, chamada de abordagem ritual, devemos destacar o trabalho de John G. Cawelty no estudo dos gêneros na literatura e no cinema, com obras como The Six Gun Mistique[xvii] e Adventures, Mystery and Romance: Formulas Stories as Art and Popular Culture[xviii]. Cawelty analisa os gêneros populares através do termo fórmula, que define como síntese da mitologia cultural com os padrões de estórias arquetípicas. Ele prefere o termo fórmula ao de gênero, para evitar as confusões criadas pelas diferentes concepções do último conceito. O trabalho de Cawelty é pioneiro no estudo do papel positivo da relação dos gêneros na literatura e no cinema com a audiência e os artistas individuais.
Thomas Schatz, em The structural influence: new directions in film genre, sugere três razões para o interesse teórico na segunda metade dos anos setenta no cinema de Hollywood: o excesso de auterismo dos anos 60, a influência das metodologias semióticas e estruturalistas, e a inclinação natural da crítica para fazer uma autopsia do sistema dos estúdios uma vez que ele tinha desaparecido[xix]. Esta perspectiva mostra uma crescente preocupação para estudar o filme do Hollywood como um produto não só estético, mas também cultural e industrial.
Anteriormente, ao falar das dificuldades teóricas que gerava o termo gênero, nos referíamos à dupla utilização do termo, em sentidos diversos; um da indústria, público e cineastas; outro da teoria. A outra dificuldade para trabalhar com o conceito é a coexistência, a partir dos anos 70, de duas abordagens irreconciliáveis que apresentam visões totalmente diferentes sobre a função dos gêneros na cultura e na sociedade. Uma é a perspectiva “culturalista”, que chamaremos de abordagem ritual, da qual Cawelty é pioneiro. A outra, menos desenvolvida, é a abordagem ideológica, que apoiada num referencial teórico de base marxista, interpreta os gêneros como formas de entretenimento popular que veiculam a ideologia conservadora das classes dominantes, e no cinema, a ideologia de Hollywood.
4 – A abordagem ritual
Seguindo o trabalho de Claude Lévi-Strauss, a abordagem ritual concentrou-se nas qualidades míticas dos gêneros de Hollywood e na relação da audiência com os filmes de Hollywood. Este enfoque interpretou a necessidade da indústria e de dar prazer, como o mecanismo pelo qual o público escolhia o tipo de filmes que desejava assistir. Através de suas escolhas, a audiência revelava suas preferências e crenças e induzia à Hollywood a produzir os filmes que ela desejava. O cinema oferecia, além da diversão, um ritual, algo parecido com a religião estabelecida. A abordagem ritual tem o mérito de considerar a intensidade das audiências com os filmes de gênero e de estimular a análise dos textos genéricos num contexto social e cultural, mais amplo que a simples análise da narrativa. A noção de gênero desta teoria se apóia em dois aspectos: a função dos filmes de gênero como mitos seculares e o contrato assumido entre cineasta e espectador.
A abordagem ritual, que teve um grande desenvolvimento na década de setenta, principalmente nos Estados Unidos, influenciou as análises históricas do cinema e a análise em geral. Estudos históricos como Movie Made America (Robert Sklar, 1976) e America in the Movies (Michael Wood, 1976), assim como estudos sobre gênero como American Film Genres (Stuart Kamisky, 1974), Sixguns and Society (Will Wrigth, 1975) e Beyond Formula (Stanley Solomon, 1976) tem seu centro conceitual na ênfase do contexto industrial e cultural de Hollywood[xx].
Para Schatz, o trabalho de Will Wrigth, ao analisar o apelo do western como ritual cultural e estudar sua relação com outros gêneros, indica a perspectiva adequada para compreender o sucesso popular e o valor cultural dos filmes de hollywoodianos. Wright sublinha a importância das convenções em qualquer filme comercial, apoiado em estudos de campos como a antropologia, mitologia e lingüística. Schatz afirma que
“A importância destas convenções é mais pronunciada, claro, nos filmes de gênero, naqueles westerns, musicais e filmes de gangster nos quais um contrato táctico tem sido estabelecido através do estudo recíproco da relação da audiência e o público[xxi].
O contrato representa para a audiência o contato com padrões temáticos, narrativos e iconográficos que se tornam, através da exposição e da familiaridade, sistemas de expectativas definidas. É esse alto nível de familiaridade da audiência com o filme de gênero e sua participação indireta na criação que estabelece as bases dos autores que reivindicam o estudo dos gêneros fílmicos como um ritual cultural e lhe outorgam um status de mito contemporâneo.
Gênero como ritual
Thomas Sobchack tem uma perspectiva do filme de gênero como uma forma conservadora, tanto em forma como em conteúdo, ligada a uma visão de mundo clássica: o filme de gênero proveria a experiência de um mundo ordenado através de uma estrutura clássica herdeira da Poética de Aristóteles[xxii]. Segundo Sobchack, as diversas tramas do filme de gênero devem ser fáceis de reconhecer e colocar o conflito básico do bem contra o diabólico; mesmo que a trama seja complicada, o espectador sempre saberá quais personagens são os malvados e quais os bons, e saberá com quem se identificar e por quanto tempo. Dessa forma, o filme de gênero oferece um mundo simples, fechado, sem ambigüidades; um mundo onde as personagens sabem, com facilidade, que ações tomar para solucionar os problemas e achar a felicidade. Estas características facilitam a identificação do público; a identificação nos libera do realismo cotidiano de nossa vida comum. Sobchack conclui que
“enquanto nós possivelmente vivemos quietas vidas de desespero, os personagens dos filmes de gênero não (…). Eles habitam um mundo que é melhor que o nosso, um mundo em que os problemas podem ser resolvidos diretamente, na emoção, na ação” [xxiii].
Para Sobchack,os potenciais catárticos dos filmes de gênero podem ser percebidos na forma como as tensões dos paradoxos sociais e culturais inerentes a experiência humana podem ser resolvidos. Cawelty afirma, em The Six Gun Mistique, que uma função importante do western é cultural e define ritual como um meio de afirmação de certos valores culturais básicos, de resolver tensões e estabelecer uma continuidade entre presente e passado.
4.2 ꟷ Gênero como mito contemporâneo
A visão do filme de gênero como uma fabula folclórica contemporânea nos leva a estudar as relações entre gêneros e mito. Alguns teóricos como Cawelty e Jim Kitses reconhecem a importância do ritual e do mito nas artes populares, e em particular no filme de Hollywood. Mas por influência de Northrop Frye, ambos assumem uma definição de mito denominada por um critério estético ꟷ uma definição clássica. Cawelty sublinha que para Frye os mitos são padrões universais de ação e que isso não pode existir num meio como o cinema, que é culturalmente específico em termos de imagens e ideologia e por isso prefere utilizar o conceito de fórmula[xxiv]. Para Northrop Frye mito é um veículo para conteúdos sagrados e panteístas ꟷ é uma definição clássica que restringe o conceito as histórias sobre os deuses. O autor escreve que o mundo mítico não é afetado pelos cânones da verossimilhança, da experiência comum do ser humano[xxv]. É interessante notar que a concepção dos filmes de gêneros de Thomas Sobchack é muito similar à de Frye em relação ao mito.
Schatz prefere definir mito não como conteúdo, mas como estrutura e função.
“Mito não é definido pela repetição de algum conteúdo clássico ou narrativa universal: ele é definido de acordo à sua função como um sistema conceptual que incorpora elementos específicos para a cultura que o realiza”[xxvi].
Para Sobchack, os filmes de gênero representam o conflito dos dois pólos básicos da conduta humana identificados por Nietsche em A morte da tragédia: o apolíneo e o dionisíaco. O apolíneo é a necessidade de construir um self que, como individuo, o separe dos outros. O dionisíaco é a urgência de submergir o self num grupo, clã ou família. Segundo o autor, como o conflito entre individuo e a comunidade, entre a ansiedade e a solidão criadas pela liberdade do self e a segurança da identificação com a massa, estão muito presentes na vida humana, não surpreende achar esta tensão representada nos filmes de gênero. A tensão é universal e está presente em outro tipo de filmes, mas é nos filmes de gênero que a luta entre os dois pólos será sempre resolvida em favor da comunidade. Sobchack procura legitimar os gêneros destacando seu parentesco a arte clássica, e enfatiza que no pensamento clássico, qualquer coisa que debilite as emoções em conflito e os purgue do individuo é considerada benigna socialmente. Anteriormente, diz o autor, o trabalho era realizado pela religião; depois das reformas da revolução francesa e americana, têm sido o comunismo e o nacionalismo patriótico os encarregados da tarefa na vida real no século XX.
“Mas a única arte se século XX que tem representado consistentemente o ritual de reafirmação de valores grupais tem sido o filme de gênero” [xxvii].
Para Schatz,
“considerar o filme de gênero como um conto folclórico lhe outorga uma função mítica que gera sua estrutura única, cuja função é a ritualização de ideais coletivos, a celebração de conflitos sociais e culturais temporariamente resolvidos e o encobrimento de conflitos culturais que incomodam sobre a aparência do entretenimento” [xxviii].
Analisar o filme de Hollywood como expressão mítica de uma arte popular não deve levar a não considerar as características de um meio eminentemente comercial; característica que afeta a narrativa e os temas. O endeusamento de atores e sua identificação com gêneros específicos ꟷ como Humphrey Bogart no film noir, John Wayne no western, Fred Astaire no musical ꟷ é uma prova de que o cinema de Hollywood oferece um contexto único para a expressão mítica contemporânea. Nessa perspectiva, Edgard Morin desenvolveu seu livro chamado As Estrelas de Cinema:
“Estas semidivindades, criaturas de sonhos resultantes do espetáculo cinematográfico, são aqui estudadas como mito moderno” [xxix].
Schatz sugere que talvez o que separa o cinema comercial das tradicionais formas de ritual é a tendência de rápida evolução de suas formas narrativas populares. Segundo ele, a constante exposição de suas formas narrativas a uma audiência dentro de uma sociedade de mercado cria uma demanda pelo novo.
5 – A Abordagem Ideológica
Nos anos 70, enquanto a abordagem ritual atribuía a qualidade autoral à audiência e, portanto os grandes estúdios apenas interpretariam a vontade da população, a abordagem ideológica demonstrava como as audiências eram manipuladas pelos interesses comerciais e políticos em Hollywood[xxx]. Esta perspectiva, que começou na Cahiers du Cinéma e transladou-se rápido para revistas como Screen, Jump Cut e outras, uniu-se a uma critica mais geral dos meios de massa realizada pela Escola de Frankfurt. Para esta abordagem, os gêneros são simplesmente as estruturas onde funciona a retórica de Hollywood. A abordagem ideológica presta muita mais atenção aos aspectos discursivos nos filmes, e se concentra nas questões da representação e da identificação que foram deixadas de lado pelo enfoque ritual.
“Simplificando um pouco, podemos dizer que cada gênero é caracterizado por um tipo especifico de mentira, uma inverdade cujo major logro é a habilidade de se disfarçar como verdade. Aonde o enfoque ritual vê Hollywood como respondendo à pressão da sociedade e aos desejos da audiência, o enfoque ideológico afirma que Hollywood toma vantagem da energia do espectador e seu investimento físico para levar a audiência até suas próprias posições.” [xxxi]
Estas duas abordagens irreconciliáveis desenvolvidas na década de 70 nos oferecem os arsenais teóricos mais fundamentados para estudar os filmes de gênero. Devemos achar um aspecto comum a ambas as abordagens que nos permita analisar o filme de Hollywood numa perspectiva cultural ampla, objetivo de nosso projeto inicial de tese ꟷ influenciado pela abordagem ritual.
A abordagem ideológica percebe os gêneros como mentiras específicas que reforçam a ideologia conservadora da indústria cinematográfica e das classes dominantes. Os gêneros formam parte de um grande discurso conservador de Hollywood. Outra perspectiva considera o filme de gênero como um ritual mítico contemporâneo. A tentativa de síntese destas aparentemente posições opostas pode estabelecer as bases para ver os gêneros não como formas isoladas, mas como sistemas relacionados que exibem similares características. Dessa forma, poderíamos estudar a base conceptual que une cada gênero com o conceito de gênero em geral.
Gêneros e Ciclos
Numa perspectiva teórica mais contemporânea, os gêneros não são percebidos como formas isoladas, homogêneas e continuas (visão ahistórica), mas subsistemas que sofrem transformações periódicas. Os planos de curto prazo de Hollywood, com o objetivo de obter lucro, levam a indústria a capitalizar tendências e a estruturar os filmes de acordo com a atmosfera cultural. Se a inovação tem sucesso, a indústria repete a fórmula; por isso a importância dos ciclos. Os ciclos representam tentativas de curto prazo de retrabalhar um sucesso, e a chave para a produção cíclica, da mesma forma que a genérica, é o jogo entre repetição e diferença.
Gêneros como processos
Nos estudos sobre gênero dos anos 90, como os de Steve Neale, os gêneros são compreendidos como processos[xxxii]. Estes processos podem estar dominados por repetição, mas estão marcados por diferença, variação e mudança. A natureza processual dos gêneros se manifesta como interação entre três níveis: o nível das expectativas, o nível do corpus genérico, e o nível das regras o formas que governam ambos[xxxiii].
Cada novo gênero é uma soma a um corpus genérico existente e implica uma seleção do repertório de elementos genéricos disponíveis em qualquer ponto do tempo. Por essa razão, é tão difícil listar exaustivamente os elementos de cada gênero, o defini-los de uma maneira que não seja tautológica.
No livro El Cine Negro, Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina consideram os gêneros como um espaço aberto e não fechado, habitado por tensões que levam a reconhecer que as fronteiras entre eles quase nunca são tão definidas como gostaria que fossem uma parte da crítica[xxxiv]. Os autores lembram que Bordwell, Staiger e Thompson[xxxv] chegaram à conclusão de que na era clássica de Hollywood quase todos os filmes foram híbridos, na medida em que tendiam a combinar um tipo de plôt genérico com outros. Segundo Steve Neale, é possível que muitos gêneros aparentemente puros surgissem da combinação de elementos genéricos prévios. Por isso, a importância de historizar as definições e o corpus genéricos.
Em resumo: o estudo dos gêneros partiu de um arsenal teórico criado na teoria da literatura e teve na primeira instância, uma visão ahistórica e fixa de gêneros ꟷ sua forma e relação com a audiência. Nas últimas duas décadas, a teoria de cinema percebe os gêneros como processos, não como formas fixas e pré-estabelecidas. Os gêneros se formam e mudam a partir da inter-relação entre cineastas, audiência, crítica e a indústria.
*Mauro Baptista é cineasta diretor de teatro, escritor e ator. Atualmente é professor de Direção e Roteiro do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).
Publicado originalmente na revista Cinemais no. 14, nov-dez 1998.
Notas
[i] Steve Neale “Questions of Genre”, Screen 31, número 1 (Spring 1990).
[ii] Rick Altman “A Semantic / Syntactic Approach to Film Genre”, em Barry Grant Keith (editor) Film Genre Reader II. University of Texas Press, Austin, 1995, página 27.
[iii] Rick Altman, obra citada página 27.
[iv] Rick Altman, obra citada página 28.
[v] Rick Altman, obra citada página 28.
[vi] Andrew Tudor, “Genre”, em Bill Nichols (editor) Movies and Methods. University of California Press, Berkeley ꟷ Los Angeles ꟷ London, 1976, p.119.
[vii] Andrew Tudor, obra citada, página 120.
[viii] Andrew Tudor, obra citada, página 121.
[ix] Andrew Tudor, obra citada, página 122.
[x] René Welleck e Austin Warren, Theory of Literature, New York, Harcourt, Brace and World, 1956, página 260; citado por Edward Buscombe, “The Idea of Genre in the American Cinema”, em Keith Grant, páginas 12 e 13.
[xi] Edward Buscombe, obra citada, página 11.
[xii] Edward Buscombe, obra citada, página 12.
[xiii] Barry Keith Grant “Introduction”, obra citada, página XV.
[xiv] Peter Wollen “The Auteur Theory”, em Signs and Meanings in the Cinema, Bloomington, Indiana University Press, 1972.
[xv] Gérard Genette, Figures III, Le Seuil, Paris, 1972.
[xvi] Barry Keith Grant, obra citada página XV.
[xvii] John G. Cawelty, The Six Gun Mistique. Bowling Green University Popular Press, Bowling Green-Ohio, 1970.
[xviii] John G. Cawelty, Adventures, Mystery and Romance: Formula Stories as Art and Popular Culture. University of Chicago Press, 1976.
[xix] Thomas Schatz, “The Structural Influence”, em Barry Keith Grant, obra citada, página 91.
[xx] Thomas Schatz, obra citada, página 91.
[xxi] Thomas Schatz, obra citada, página 93.
[xxii] Sobchack,Tomas Sobchack, “Genre Film: a Classical Experience”, em Barry Keith Grant, obra citada, página 102.
[xxiii] Thomas Sobchack, em Barry Keith Grant, obra citada, página 108.
[xxiv] John G. Cawelty, The Six Gun Mistique, 1970, página 30.
[xxv] Northrop Frye, Anatomia da Crítica, Cultrix, São Paulo, sd, p. 138.
[xxvi] Thomas Schatz, obra citada, página 95.
[xxvii] Thomas Sobchack, em Barry Keith Grant, obra citada, página 109.
[xxviii] Thomas Schatz, obra citada, página 97.
[xxix] Morin, Edgard. As estrelas de cinema. Livros Horizonte, Lisboa, 1980.
[xxx] Rick Altman, obra citada, página 29.
[xxxi] Rick Altman, obra citada, página 29.
[xxxii] Steve Neale, obra citada, página 170.
[xxxiii] Steve Neale, obra citada, página 170.
[xxxiv] Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, El cine negro. Paidós, Barcelona-Buenos Aires- México, 1996.
[xxxv] David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson, The Classical Hollywood Cinema. Film Style & Mode of Production to 1960. Columbia University Press, New York, 1985.
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