Por ANA PENIDO, SUZELEY KALIL & NILTON TUBINO*
O Ministério da Defesa está longe de ser um órgão civil de formulação da política de defesa e do exercício da autoridade civil sobre seus operadores
Apresentamos aqui os primeiros resultados de uma análise sobre a atual composição do Ministério da Defesa no Brasil (MD). Criado em 1999, como uma indicação de que os civis eleitos são os responsáveis por “guardar os guardiões” [1], o Ministério da Defesa sofreu muitas resistências, notadamente o medo de perda de poder por parte do segmento militar, desentendimentos e competições internas às três forças e carência de mão de obra civil [2].
O Ministério da Defesa objetivava descontruir a ideia “defesa é algo naturalmente militar”, que confunde política de defesa com política militar. Destacam-se como iniciativas positivas que se seguiram à sua criação, mesmo com suas limitações, a publicação da Estratégia Nacional de Defesa, da Política Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa (e suas posteriores revisões). Quanto à composição dos recursos humanos, jamais se criou uma carreira civil para o Ministério da Defesa, muito embora o trabalho tenha se tornado mais especializado. Mesmo nos governos petistas, a regra foi de acomodação diante de eventuais conflitos com interesses militares [3].
Dessa maneira, indica-se que o Ministério da Defesa nunca foi efetivamente “civilianizado”, ou seja, não ocorreu a substituição de militares por civis nos postos-chave de decisão [4]. A nomeação de civis para o cargo de ministro da defesa, prática interrompida por Michel Temer, é apenas um aspecto da questão. Entendemos que o principal motivo para isso foi a correlação de forças civis x militares, pois as Forças Armadas (FFAA) se mantiveram com muito capital político e alto prestígio popular em comparação com outras organizações, como os partidos, além de bem organizadas para defender seus interesses. Na prática, mesmo quando o ministro foi civil, ele era percebido enquanto um representante das FFAA junto ao governo, e não como a voz da autoridade civil diante das FFAA. A burocracia do Ministério da Defesa não logrou sequer consolidar a comunicação entre as Forças singulares, como a escolha dos projetos estratégicos evidencia.
O governo Bolsonaro está em larga medida controlado pelo Partido Militar (Penido, Kalil, 2021). A hipótese aqui levantada é de que, no caso do Ministério da Defesa, a militarização seria ainda mais profunda. Neste texto, investiga-se apenas um dos aspectos dessa (re)militarização, o mais evidente: o perfil dos servidores do Ministério da Defesa. Para isso, foram levantados um conjunto de dados a respeito das suas cinco unidades administrativas – Administração Central, Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro), Escola Superior de Defesa (Brasília) [5], Hospital das Forças Armadas, e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) –, bem como das seis empresas/autarquias vinculadas ao MD, a saber: Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron, Marinha), Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel, Exército), Amazônia Azul Tecnologias de Defesa (Amazul, Marinha), Serviços de Navegação Aérea NAV (Aeronáutica), Caixa de Construção de Casas para o Pessoal da Marinha (CCCPM), Caixa de Financiamento Imobiliário da Aeronáutica (CFIAE). Embora o Instituto Pandiá Calógeras conste como parte da estrutura organizacional do MD (Dec. 9.570/2018, cap. II, al. f), ele sequer foi mencionado no ofício de resposta do Gabinete Ministerial. A totalidade dos dados apresentados tem origem no ofício 26423/ASPAR/GM-MD (Ministro Walter Braga Neto), emitido em 30/09/2021, fruto do requerimento de informação 996/2021, elaborado pelo Deputado Federal Patrus Ananias (PT/MG).
Os questionamentos feitos ao Ministério estão enumerados a seguir. As considerações ao final deste texto abordam as seguintes questões: Qual o número total de servidores do Ministério da Defesa? Desse total, quais são funcionários do próprio Ministério da Defesa? Quantos são os funcionários concursados que hoje exercem a carreira no Ministério da Defesa e qual a sua origem? Quantos desses funcionários são contratados? Qual a modalidade de contratação e a temporalidade do contrato? Quanto à composição civil-militar, as questões foram: Quantos servidores são militares? Quantos são da ativa e da reserva? De que Força proveem e quais as suas patentes? Existem membros de outras forças de segurança? Com relação aos civis, quantos são e qual a sua origem profissional? Quantos cargos comissionados de Direção e Assessoramento Superior o Ministério possui? Como foram distribuídos entre os civis e militares? Por fim, quais as empresas e autarquias vinculadas ao Ministério da Defesa? Quantos militares estão nessas empresas, são da ativa ou da reserva, qual a Força singular de origem e qual sua patente?
Uma vez que o tempo da política é distinto do tempo acadêmico, apresentamos aqui algumas primeiras considerações, sem prejuízo de revisões posteriores.
(a) Há clara predominância, inclusive em número de funcionários, de militares relativamente aos civis no Ministério da Defesa; (b) há predominância de militares da ativa no Ministério da Defesa, sendo 18% a média de militares da reserva contratados; (c) quando se analisa a composição ativa x reserva nas empresas vinculadas ao Ministério da Defesa, esse número muda completamente, se estabelecendo ao redor de 50%; (d) o maior número de funcionários civis do MD está no Hospital das Forças Armadas (HFFAA); (e) o menor número de civis (4% dos alocados no Ministério da Defesa) está na ESG de Brasília, justamente a unidade recentemente rebatizada de Escola Superior de Defesa, o que contrasta com suas coirmãs latino-americanas. A unidade também se destaca pelo perfil de terceirizados a ela vinculados: militares da reserva; (f) apenas 3,3% da Administração Central são de quadro próprio do MD, o que significa o aparelhamento pelos militares, que mantêm o controle sobre a formulação de políticas na área e sobre o orçamento; (g) a resistência da Marinha e da Aeronáutica com a criação do MD mostra-se justificada, pois o órgão foi dominado pelo Exército, que ocupa 53% dos postos no Ministério da Defesa. No caso das empresas vinculadas, predomina a Marinha; (h) há um número expressivo de suboficiais e praças lotados no MD, cujas tarefas, tudo indica, podem ser realizadas por civis. A hipótese aventada é que se quer manter no Ministério da Defesa um corpo de funcionários subordinado à disciplina militar; (i) proporcionalmente por patente, destacam-se os coronéis na amostra analisada. Os generais estão concentrados na administração central, com 5%, justamente nos estratos em que a política se decide. Essas patentes sobressaem ainda mais nas empresas vinculadas ao MD, nas quais 24% são oficiais generais ou oficiais superiores; (j) apenas quatro servidores de outras forças de segurança estão lotados no Ministério da Defesa: três da polícia federal e um da polícia rodoviária federal, todos alocados na Censipam.
Em suma, o Ministério da Defesa está longe de ser um órgão civil de formulação da política de defesa e do exercício da autoridade civil sobre seus operadores, as FFAA. O cenário, que já era ruim, piorou. Os próximos governos encontrarão um terreno extremamente difícil.
*Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP).
*Suzeley Kalil é professora de Relações Internacionais na Unesp.
*Nilton Tubino é assessor do deputado federal Patrus Ananias (PT-MG).
Publicado originalmente no portal Tricontinental.
Notas
[1] FUCCILLE, L. A.; WINAND, E. C. A. (2018). “Ministério da Defesa”. In Saint-Pierre, H. L.; Vitelli, M. G. (org.). Dicionário de segurança e defesa (eBook). SP, Ed. Unesp Digital.
[2] FUCCILLE, L. A. (2006). “Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil”. Tese de Doutorado IFCH (Orientador: Eliézer Rizzo de Oliveira). Campinas (SP), Unicamp, digit.
[3] CORTINHAS, J.; VITELLI, M. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7(2): 187-216, jul/dez.
[4] BAÑÓN, Rafael OLMEDA, José. A. (1985). La Instituición Militar em El Estado Contemporáneo, Madrid, Alianza Editorial.
[5] O Núcleo da Escola Superior de Guerra em Brasília passou a se chamar Escola Superior de Defesa por determinação do Decreto 10.806/2021. No entanto, no ofício de resposta, consta: “Escola Superior de Guerra (Campus Brasília)”