Por GUSTAVO TORRECILHA*
Comentário sobre o filme de Ruben Östlund, em exibição nos cinemas
O diretor sueco Ruben Östlund tem como marca registrada a capacidade de, em poucos segundos, transformar cenas engraçadas, construídas com muita sátira e crítica social, em momentos nervosos e tensos. Em Force Majeure, os diálogos cômicos resultantes da situação em que um pai abandona os filhos e a mulher para se proteger do que eles achavam ser uma avalanche revelam diversos outros problemas na relação da família, que alguns dias depois, ao ir esquiar, vê-se separada e perdida em decorrência da neblina.
Já em The Square, a performance de um artista que imita um animal selvagem em um jantar de gala e a discussão à beira de uma escada do personagem principal com uma criança que fora prejudicada por ele são algumas das cenas que refletem essa rápida mudança de tom nos filmes do diretor.
Triângulo da tristeza, o filme mais recente de Ruben Östlund sobre um cruzeiro de luxo, traz essa tensão e mudança de ânimo, de uma obra que vai quase que de uma comédia para um suspense, apenas ao final, após o navio naufragar depois de um ataque pirata e obrigar alguns de seus passageiros e tripulantes a tentarem sobreviver em uma ilha. Há, claro, as cenas do jantar com o capitão, quando o navio balança por causa de uma tempestade e causa enjoo nos passageiros bilionários, mas ver magnatas passando mal, por mais desconfortável que seja, pouco tem a capacidade de gerar tensão ou preocupação com o público, que prefere rir dos ultrarricos em uma situação como essa.
Afinal, o filme é construído de maneira a fomentar a rejeição do público aos bilionários que embarcam no cruzeiro. Diversas cenas fazem com que o público crie pouca simpatia com esses ultrarricos em seus momentos de dificuldades. Há os pedidos excêntricos e completamente sem noção que deixam os funcionários desconfortáveis para atendê-los, em decorrência de sua obrigação de servir os ricos e fazer o possível para deixá-los satisfeitos, constantemente enfatizada pela chefe da tripulação. A completa incapacidade dos bilionários quando chegam à ilha de acender a própria fogueira, pescar a própria comida e limpar os pescados também contribui para essa rejeição, ainda mais porque é justamente a camareira do navio, Abigail, a única capaz de realizar todos esses serviços.
O diretor aproveita também para inserir questões políticas nessas cenas em que satiriza os bilionários. Em uma das cenas mais engraçadas do filme, o capitão do navio, um americano que se autointitula marxista e ouve a Internacional bêbado em seu quarto, discute com as visões de mundo abjetas de um capitalista russo admirador de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Há também as discussões de negócios de um casal de magnatas a bordo, que trabalham, como o filme diz satiricamente, em prol da defesa de democracias do terceiro mundo, o que nada mais é do que um eufemismo para designar os donos de uma grande produtora de armas e granadas.
Já no contexto pós-naufrágio, algumas dessas relações sociais acabam mudando. O fato de ser a única capaz de realizar as atividades necessárias para a sobrevivência do grupo na ilha garante um status especial à antiga camareira Abigail. E ela faz uso de sua posição de liderança para reivindicar o direito de ter melhores condições de alimentação e abrigo, bem como para obter favores sexuais de Carl, jovem modelo que estava a bordo no navio em companhia de sua namorada, a digital influencer Yaya, que tinha recebido a viagem como presente em troca de promover o cruzeiro em suas redes sociais e que fica com ciúmes por ter perdido o namorado para uma camareira.
A presença do jovem casal no navio – que discute sobre quem deve pagar a conta em restaurantes e que parece estar junto mais para mostrar nas redes sociais do que por afeto propriamente dito – parece ser também uma maneira de Ruben Östlund de criticar a ostentação e as postagens de uma vida supostamente perfeita nas redes sociais, ainda que claramente artificial e distante da dos demais passageiros verdadeiramente bilionários. Mas ao mesmo tempo, gera simpatia na tensa cena final, quando o público se preocupa com Yaya, que, por mais superficial que seja, não é um dos ultrarricos inúteis satirizados pelo filme.
A outra protagonista da cena final, a ex-camareira Abigail, também suscita simpatia no público, mesmo quando ameaça Yaya após esta ter finalmente encontrado uma maneira de obter resgate, afinal sua motivação é apenas preservar a condição e o status de conforto que adquire pela primeira vez na vida dentre os sobreviventes na ilha. Ruben Östlund parece querer indicar aqui como elas estão mais próximas na hierarquia econômico-social do que a vida nas redes demonstra, mas mesmo assim é criado um clima de rivalidade entre as duas.
Apesar de deixar essa cena apenas para os últimos segundos do filme, o diretor faz o que é característico de sua obra ao entregar momentos cômicos que rapidamente viram momentos de tensão. Ao mesmo tempo, realiza uma sátira que critica a existência e a inutilidade dos ultrarricos, as ilusões causadas pelas redes sociais e até mesmo como uma certa classe média não consegue perceber a qual lado de fato pertence na divisão da sociedade.
*Gustavo Torrecilha é doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Referência
Triângulo da tristeza (Triangle of Sadness)
Alemanha, França, Reino Unido, Suécia, 2022, 150 minutos
Direção e roteiro: Ruben Östlund
Elenco: Charlbi Dean Kriek, Harris Dickinson, Woody Harrelson.
O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como