Trote e totalitarismo

Gustav Metzger, Pintura em papelão, c.1961–2
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Por ANTONIO RIBEIRO DE ALMEIDA JR.*

Prefácio do livro recém-lançado de Felipe Scalisa de Oliveira sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP

O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um “currículo oculto”. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos.

A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial, pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade.

Durante muito tempo, o trote pareceu ser “brincadeira”, “comemoração”. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim.

Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades.

Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda.

Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura.

Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis implantadas em outros países para combater o trote. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes como tem ocorrido nos EUA.

No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar “violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo”. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional.

Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade.

Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana.

O livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal, de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa.

O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias.

Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte.

O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Felipe Scalisa Oliveira aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade.

A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Felipe Scalisa Oliveira descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade.

Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Felipe Scalisa Oliveira na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.

 Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários.

Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição.

É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho.

Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira.

*Antonio Ribeiro de Almeida Jr. é professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, autor, entre outros livros, de Anatomia do trote universitário (Hucitec). [https://amzn.to/3vxQXz2]

Referência


Felipe Scalisa de Oliveira. Trote e totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Editora Alameda, 2024, 432 págs. [https://amzn.to/4cRZiOW]


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