Por MÁRIO MAESTRI*
O ruim pode ficar sempre pior
“Obrigado Trump”, de 18 de janeiro 2021, artigo publicado pelo DCO e assinado por Eduardo Vasco, jornalista e militante do PCO, motivou tempestade de críticas liquidatórias, portanto, sem apelação. Juntaram-se à ladainha, como Torquemadas com o açoite na mão, setores da esquerda dita marxista. A operação de cancelamento iniciou com xingamento da revista virtual Fórum, de 20 de janeiro. O conteúdo do artigo de Eduardo Vasco e as motivações de seu lixamento virtual merecem avaliação despida de prejuízos político-ideológicos, nos quais o jornalista e o jornal serem do PCO são fatores secundários. Pouco importa, assim sendo, na avaliação objetiva do artigo, se desgostamos daquela organização, de todas as suas análises ou de apenas algumas, como, entre elas, as propostas sobre o futebol do PCO, que me causam brotoejas.
Como tudo na vida, o artigo pode ser objeto de reparos. Vejamos, primeiro, os de forma ou estilo. Um meu velho e brilhante companheiro de militância marxista-revolucionária impugnou, com razão, a sugestão inicial do artigo de que “só nós não somos pequenos-burgueses”. Como diziam os ex-companheiros chilenos: “No nos saquemos la suerte entre gitanos”. Como o PCO, todas as organizações brasileiras que se propõem revolucionárias são formadas majoritariamente por quadros de extração pequeno-burguesa ou burguesas. E todos os seus militantes se propõem enxergar a sociedade “através do ponto de vista da classe operária, dos explorados e oprimidos do mundo todo”. Se o fazem, é uma outra discussão. Portanto, um pouco de “modéstia e de água benta não faz mal a ninguém!”
O título “Obrigado Trump” talvez não tenha sido a melhor escolha, sobretudo para um jornal partidário. Possivelmente não poucos eventuais leitores, mesmo desarmados, o tomaram ao pé da letra, sem aferrar a ironia. Compreenderam que o jornalista, o jornal e o PCO estariam defendendo e agradecendo a Donald Trump. E os com vontade de liquidar o texto antes de lê-lo, mesmo compreendendo a ironia, deixaram de lado em forma oportunista o sobre-título ou a metade inicial do mesmo que é, completo: “O rei está nu: Obrigado, Trump.” Portanto, o artigo agradece a Trump por deixar o rei nu. O “rei”, no caso, é o imperialismo e o grande capital.
Em títulos de artigos, é perigosa a duplicidade de sentido, para despertar a atenção dos leitores. Quando da morte do ex-ditador chileno, publiquei em um grande jornal sulino artigo intitulado “Pinochet não foi um monstro”. Nele, lembrava que Pinochet fora apenas um general chileno anti-comunista, entre tantos outros, a quem coube, pelos azares da sorte, desempenhar o papel de verdugo do povo chileno. O que fez, reconheçamos, com enorme aplicação. Eu propunha que, se não fosse ele, teria sido outro. Explicava que o general macabro apenas representava o imperialismo e as classes dominantes chilenas, os grandes responsáveis pelo massacre e pelas misérias do golpe e da ditadura, que estavam sendo esquecidos. Por meses, recebi mensagens propondo que Pinochet era, sim, um energúmeno, um bandido, um facínora, que se espantavam que eu defendesse aquele monstro. (1)
Há quatro anos, precisamente quando da eleição de Donald Trump, escrevi breve nota com intitulação e texto irônicos — “Por que amo Donald Trump?” Nele, procurava explicar o sentido de sua vitória, apoiada pela classe trabalhadora estadunidense, sobretudo branca, mas também secundariamente negra. E as razões pelas quais sua eleição era, apesar de tudo, menos dramática do que teria sido a vitória de Hillary Clinton, a Dama das Mãos Ensanguentadas, que se preparava para atacar com força o Estado sírio. Naquele momento, a Síria gozava do apoio do Irã e da Rússia, para enfrentar a coalisão internacional organizada contra ela pelo imperialismo. Era o cenário perfeito para um desastre não apenas regional. (2) Fui atacado —e sigo sendo— por militantes de esquerda que propuseram que eu realmente amava Donald Trump! Militantes entre os quais não poucos apoiavam a agressão à Síria e eram admiradores, nem sempre envergonhados, de Hillary Clinton, do Partido Democrático e de suas políticas identitárias.
Apesar dele
Duas ou três vezes, o artigo “O rei está nu. Obrigado Trump” propõe consequências benéficas marginais da ação de Donald Trump, desde o ponto de vista do mundo do trabalho, que leitura ligeira poderia compreender como queridas e procuradas pelo Topetudo. “(…) Trump mexeu com o pilar de dominação do imperialismo.” “Trump abriu os olhos de milhões de pessoas ao redor do mundo.” “Conseguiu fazer (Trump) com que, através dos ataques que recebeu da imprensa imperialista, milhões de pessoas ao redor do mundo odiassem os EUA.” “Trump acabou por desnudar o imperialismo.” Ainda que o conteúdo do artigo não deixe dúvidas, teria sido interessante agregar, sempre, explicação do tipo: Trump fez isso “contra sua vontade”, “apesar de suas intenções”, etc. Explicação que diminuiria mas não impediria os ataques violentos ao artigo.
Como proposto, os ataques incondicionais não se devem a uma incompreensão, mas à dissidência política com o artigo que os críticos muitas vezes preferem não explicitar. Partem, portanto, para o achincalhamento. Sobre o conteúdo, minha dissensão de fundo seria apenas uma, a proposta de que: “Finalmente, conseguiram tirá-lo do poder pela força da fraude eleitoral (…).” Sequer Trump conseguiu provar que houve fraude eleitoral no sentido estrito do termo. Como o artigo propõe, sua derrota deveu-se sobretudo ao portentoso bloco do grande capital imperialista que se constituiu contra ele. Santa Aliança do imperialismo hegemônico que não se vexou em usar todos os tipos de recursos. Um micro-exemplo é a censura infame ao jornalista Glenn Greenwald, pelo Intercept Brasil, quando enfurecia a campanha eleitoral estadunidense.
Censura indecente
A direção do Intercept Brasil proibiu sem apelação que o jornalista Glenn Greenwald, pra lá de pouco simpático a Trump, publicasse artigo referindo-se ao que todos sabiam, mas que a campanha democrata se esforçava para manter nas sombras: as negociatas do filho de J. Biden na Ucrânia e as ações obscuras do seu pai, então vice-presidente, quando e após o golpe naquele país. Golpe promovido pela administração Obama contra a vontade da União Européia. A censura levou ao rompimento de Glenn Greenwald, em 29 de outubro de 2020, com aquele órgão da imprensa que ajudara a fundar. Não houve movimento significativo de apoio a Glenn Greenwald e em favor da liberdade de expressão, no Brasil e muito menos no exterior, já que a denúncia era desfavorável a Biden e, em consequência, favorável a Donald Trump, o Grande Ogro a ser abatido
Parece-me também extremada a proposta do artigo de que a “esquerda, completamente integrada ao regime burguês, perdeu qualquer credibilidade”. Uma ênfase retórica certamente devida mais aos desejos de Eduardo Vasco do que à realidade. De um ponto de vista estritamente pessoal, não creio que proceda a definição de Trump e de seu programa como fascistas, como propõem a oposição colaboracionista e organizações da esquerda brasileira.(3) Parece-me já ter ficado claro também a improcedência de igual definição para Jair Bolsonaro e para seu movimento e suas milícias, tão anunciadas, mas natimortas. Defini-los, o Grande e o Pequeno Ogro, de ultra-direitistas, parece-me mais correto. Creio que seja imprecisão conceitual e, portanto, política, propor como fascista tudo que é anti-operário, anti-democrático, anti-popular, anti-ciência, anti-gay, anti-negro, etc. Registro o uso incorreto no artigo de “americano” onde, de rigor, deveria-se grafar “estadunidense”. Mas já estamos indo às minudências e registrando visões particulares minhas sobre questões não atinentes ao coração do presente debate.
Em uma lista na qual participo, um querido camarada, também com ironia, propôs que não era culpa de Eduardo Vasco se um dos críticos exaltados não tenha “entendido o texto”. O criticista, que milita nas filas do marxismo-revolucionária, definiu, sem freio crítico, o artigo como “um elogio à fração fascistoide do imperialismo”. Como muitos pareceram não compreender o que foi escrito, houve tentativas de explicar didaticamente o que Eduardo Vasco quisera dizer. Porém, repito. A impugnação do artigo “O rei está nu. Obrigado Trump” não se deve à incompreensão ou a uma leitura rápida. Nasce da dissociação radical com o seu conteúdo que, pessoalmente, imputo como excelente. Portanto, impõe-se compreender a origem política da criticaria.
Biden como Salvador da Lavoura
A oposição colaboracionista brasileira e não poucos militantes que se definem como marxistas festejaram, incondicionalmente, com fogos de artifícios, ou com algumas —e mesmo com muitas reticências— o sucesso eleitoral de Joe Biden, de Kamala Harris e do Partido Democrático sobre Donald Trump. A grande maioria dos neo-democratas brasileiros esquece ou salta por cima do fato de que os vencedores são operadores pró-capitalistas e pró-imperialistas por excelência. Os mais contidos nas celebrações registram a qualidade conservadora de Biden, de Kamala e do Partido Democrata e acendem uma velinha para que eles cumpram as poucas promessas progressistas sussurradas durante a campanha. (4) E praticamente todos afirmam que prefeririam que o vencedor fosse Bernie Sanders mas que se tratou da vitória possível da democracia sobre a barbárie. Portanto, só há que se festejar, já que a política seria a arte do possível e não do desejável — afirma-se.
Não poucos verbalizam —e muitos mais pensam—, indignados, como é possível comparar um com o outro, a besta-fera republicana com o polido e educado político democrata, um verdadeiro gentleman! Donald Trump é o bruto misógino que ataca lésbicas, latinos, muçulmanos, negros, gays. É negacionista raiz quanto à emergência climática, aos benefícios da vacinação, ao protecionismo da fauna e da natureza. Ataca o direito ao aborto, os imigrantes, o Medicare de Obama. A vitória sobre o republicano energúmeno seria produto da coalisão de jovens, negros, latinos e mulheres, segundo se propõe.
E, ainda mais, Kamala Harris é a primeira mulher a ocupar a vice-presidência e tem ascendência africana e indiana. Praticamente um grande passo para a humanidade! No novo governo, há cuidadoso respeito à diversidade de sexo, de gênero, de raça. Anunciou-se mulher trans como alta funcionária, boas relações com a Europa, a volta à OMS e ao Acordo de Paris, o fim do muro de Trump, o uso obrigatório de máscara protetora em alguma situações. Os transgêneros voltaram a poder integrar as forças armadas estadunidenses e matar em nome da paz. Podemos querer mais!?
A origem da euforia dos neo-democratas brasileiros é também prática. Afirmam que a conquista da presidência por Biden-Harris, nos USA, prognosticaria a derrota, em fins de 2022, no Brasil, de Jair Bolsonaro — ou de qualquer outro ogrinho substituto que for apresentado como candidato da extrema-direita, no estilo do Luciano Hulk, do Eduardo Leite, do Sergio Moro, do Ratinho, do Datena. Mas seremos vitoriosos apenas se respeitarmos a rota do tesouro traçado pelos amigos estadunidenses, construindo não a candidatura que gostaríamos, com um Bernie Sanders tupiniquim, mas a chapa presidencial possível, com algum Biden-Harris verde-amarelo. O ideal seria apresentar uma personalidade prestigiada como candidato, escolhido entre os golpistas “anti-fascista”, já no primeiro turno.
Porém, como muitos querem e necessitam manter as aparências, como puros e duros, o fundamental é o eleitorado oposicionista convergir contra o bolsonarismo no segundo turno, como boiada disciplinada ao caminho do matadouro. Ao igual que se espera que ocorra em relação a Baleia Rossi, na próxima eleição para presidente da Câmara. Primeiro, os vestais de sempre votam na Erundina, a vovó transformista. E, após jogar para a platéia, deixam-se como Jonas, ser engolidos, como sempre, pela enorme e reconfortante boca da politicagem. Trata-se, portanto, de continuar a política que se avança desde o golpe de 2016, consolidada nas eleições municipais apenas concluídas. Efetivamente, em novembro de 2020, em nome de frente anti-Bolsonaro, os partidos da oposição faz-de-conta e seus puxadinhos radicais votaram no segundo turno em candidatos conservadores e golpistas — em São Paulo, em Covas; no Rio de Janeiro, em Paes; em Fortaleza, Sarto, etc. Ou candidatos que terminaram cortejando miseravelmente a burguesia — Boulos, em São Paulo, Manuela, em Porto Alegre, etc.
Fique em Casa
Bastaria, assim, a partir de hoje, seguir consolidando a política do menor mal, do “fique em casa”, do “saía da rua”, da “Frente Popular”, ou da encenação sobre impichar Bolsonaro, mesmo entregando o governo ao Mourão, pra lá de golpista. E, assim, alcançaríamos a consagração eleitoral do nosso Joe Biden, ainda que seja no segundo turno. E não são poucos os dispostos, na direita golpista dita civilizada, a desempenhar o glorioso papel do candidato democrata brasileiro: o Dória, o Ciro, o Rodrigo Maia e por aí vai. Com o sucesso da operação, a oposição colaboracionista espera reconquistar sua antiga posição, mesmo minorada, ao prestar serviço maior ao grande capital e ao imperialismo: a institucionalização completa do golpismo e a legitimação dos terríveis ataques aos trabalhadores, à população, à nação ocorridos desde 2016. Ataque prosseguem a trote-galope livre, sem real oposição e resistência.
É compreensível, consequentemente, a indignação com artigos estraga-festas ao estilo “O rei está nu. Obrigado, Trump”, que propõem ser os vitoriosos, Biden, Harris e o Partido Democrata, representantes de setor hegemônico do imperialismo e do grande capital, e, assim, possivelmente ainda piores do que o já morfético e macabro Donald Trump. Propostas que desacreditam o colaboracionismo desenfreado com o golpismo, com o grande capital, com o imperialismo. Colaboracionismo santificado, no Brasil, em nome do combate ao Ogro Pequeno e as suas numerosas legiões fascistas que, no frigir dos ovos, de tão numerosas que são, sequer conseguem recolher as assinaturas necessárias para formar o tal partido bolsonarista!
Mais ainda. Como propõe Eduardo Vasco, a vitória democrata consagra o sucesso eleitoral das políticas identitárias, em tudo copiadas do figurino democrata-estadunidense, hoje hegemônicas na oposição eleitoreira brasileira, tradicional e nova. Políticas identitárias responsáveis pela derrota de Hillary Clinton, há quatro anos, diante de Donald Trump. Em efeito, foi nas administrações Bill Clinton (1993-2001) que o Partido Democrático abraçou sem pejo a “globalização” para encher as burras do grande capital financeiro e globalizado —liberalização e desregulamentação financeiras, deslocalização industrial, etc. Nesse processo, promoveu-se o envio ao exterior, com destaque para a China, de milhares de fábricas estadunidenses. Em 2001, o ingresso do “Império do Meio” na OMC, propiciado por Clinton, teria custado aos USA 2,4 milhões de postos de trabalho. Postos que Trump prometeu trazer de volta ao país, recebendo por isso uma enxurrada de votos de trabalhadores, em 2016 e 2020!
Os Novos Democratas
Com a reorientação globalista, o Partido Democrata transformou-se na expressão do grande capital estadunidense e internacional, dando as costas ao seu eleitorado tradicional, os trabalhadores manufatureiros, não apenas brancos, com destaque para os do antigo “Cinturão da Manufatura” transformado em “Cinturão da Ferrugem”, com a desindustrialização ianque. E essas massas de trabalhadores, desempregados, mal-empregados, desmoralizados e abandonados migraram em forma maciça em direção do populismo conservador de direita, elegendo Donald Trump, contra ventos e marés, em 2016. O mesmo caminho foi seguido pelos partidos europeus ditos de esquerda, no estilo PT brasileiro, como o PS francês, o PD italiano (ex-PCI), etc., que abraçaram o social-liberalismo. O que determinou o transladar da classe trabalhadora tradicional dos partidos comunistas e socialistas para os movimentos populistas de direita, como o “Front National”, de Marine Le Pen, na França, a “Lega”, de Mateo Salvini, na Itália, hoje os maiores partidos operários daqueles países. Em Portugal, consolida-se atualmente um novíssimo movimento populista de extrema-direita —“Chega”—, com forte apoio nos setores mais explorados da população, com consenso eleitoral possivelmente superior ao “Bloco de Esquerda” e ao Partido Comunista Português, já plenamente institucionalizados.
No Brasil, é fato consolidado o domínio do identitarismo em enorme parte da esquerda que se afirma ou já se afirmou marxista e o consequente abandono da classe trabalhadora nas mãos de movimentos evangélicos caça-níqueis e do populismo de extrema-direita. As eleições municipais de novembro passado consagraram a liquidação do mundo do trabalho como referência política central, substituído pelas reivindicações civis referentes ao sexo, ao gênero, à raça, próprias das classes médias, sem contradições essenciais com a ordem capitalista. Tudo segundo a orientação geral da ala “direitos civis” do Partido Democrata dos USA.
Com militantes indiscutivelmente valiosíssimos, o PSOL é o partido que avança a orientação identitária em forma mais orgânica e anuncia pretenso sucesso da iniciativa. Privilegia institucionalmente as candidaturas e as lideranças identitárias, por um lado, e vota verdadeiro descaso, por outro, para com eventuais candidatos classistas. Em novembro, esse partido festejou a eleição de alguns vereadores gays, lésbicas, trans, índios e sobretudo negros, enquanto a direita obtinha vitória eleitoral estrondosa através do Brasil. (5) Não poucas organizações que se propõem da esquerda marxista abraçam o mesmo programa identitário, agregando aos seus coletivos as designações de “feministas classistas”, “movimento negro classista”, etc., sem diferenças substanciais em relação à ação e ao programa do identitarismo conservador e pequeno-burguês.
Fenômeno Internacional
A hegemonia identitária é um fenômeno com raízes e difusão internacionais, apenas mais exacerbado no Brasil. Com a vitória mundial da contra-revolução, com salto de qualidade na dissolução da URSS, em 1991, o mundo do trabalho conheceu derrota histórica, quanto à política, à ideologia, à organização, etc. Entretanto, o maior golpe sofrido pelo mundo do trabalho quando desta hecatombe histórica foi o descrédito dos próprios trabalhadores, já fortemente fragilizados, em seu programa como único meio de solução de contradições sociais agudizadas a um paradoxismo tal que já ameaçam o próprio futuro da humanidade.
Entretanto, enquanto o programa operário empantanava-se, boiavam e se consolidavam as propostas — e, em boa parte, as ilusões— das classes médias de resolverem seus problemas e aflições acomodando-se ao grande capital e o imperialismo. Um e outro vistos já pelos segmentos médios como eternos. Tudo no estilo “Um outro mundo é possível”, “Sem medo de ser feliz”, “Estamos todos no mesmo barco”, etc. O enfraquecimento político e social das classes trabalhadoras, dramático no Brasil devido à fragilidade entre nós do mundo do trabalho, impulsionou igualmente identidade-submissão profunda para com a democracia e a ordem burguesa, por parte de importantes facções anteriormente de esquerda.
Nas últimas décadas, campanhas de arrasamento, massacre, jugulação e submissão de Estados e nações pelo imperialismo estadunidense no Afeganistão, Iugoslávia, Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia, Cuba e Venezuela, etc., conquistaram o apoio explícito ou implícito de partidos e organizações no passado de esquerda e, até mesmo, se reivindicando do marxismo-revolucionário. Apoio justificado pela campanha liderada pelo imperialismo em defesa de propostas ordens democráticas e jamais vistas revoluções populares e, sobretudo, contra terríveis ditadores e assassinos de seus povos —Slobodan Milošević, Saddam Hussein, Bashar al-Assad, Muhammad Gheddafi, Víktor Fédorovych Yanukóvytch, e por aí vai. (6)
O Rosto Delicado da Maldade
A representação do bom imperialismo estadunidense tem sido feita pelo Partido Democrático. É ele que prima pela apresentação dos mais fotogênicos e amáveis presidentes: Robert Kennedy, Jimmy Carter, Bill Clinton e, a grande estrela, o black Barak Obama, com sua esposa simplesmente maravilhosa. Um prestígio que aumentou quando o Partido Democrata, defensor apaixonado da democracia mundial, abraçou as políticas identitárias de sexo, de gênero, de raça, etc., como proposto. Certamente que temos que agradecer a Trump por ter sido, aos olhos do mundo, por quatro anos, até hoje, a representação mais objetiva, real e perfeita, do grande capital ianque. Com ele, o imperialismo mostrou-se como é realmente: brutal, feio, malvado. E, melhor ainda, mostrou os dentes sem jamais servir-se de guerras novas para morder fundo! Face feia que certamente desagradou aos neo-democratas brasileiros que se angustiam com qualquer fragilização político-ideológica do seu atual grande paradigma, o imperialismo estadunidense hegemônico.
Para essa esquerda aninhada ao grande capital, pouco importa que os democratas tenham explodido duas bombas atômicas sobre alvos civis, em 1945; agredido Cuba, em 1961; favorecido o golpe no Brasil, em 1964; apoiado o massacre de meio milhões de indonésios, em 1965; radicalizado a guerra do Vietnã. Quem lembra das ações imperialistas de Bill Clinton na Bósnia-Herzegovina, no Iraque, o bombardeio criminal contra a Sérvia, no exterior, ou ter mandado multidões de negros e pobres para as prisões, nos USA? Ninguém recorda as agressões imperialistas de Barak Obama, o mais queridinho dos democratas, no Iraque, na Somália e a redução da Líbia a Estado fantasma, operação exigida por Hillary Clinton, sionista e belicista por excelência. Para não falar na promoção dos golpes em Honduras, no Paraguai, no Brasil, no Equador, etc., concluídos alguns na administração Trump. E, sobretudo, a grande operação de Obama, na Ucrânia, terminada em 2014, na qual, como vimos, tomou parte J. Biden e seu 01, o filhote pra lá de corrupto .
Aos neo-democratas da esquerda brasileira não interessa que a eleição de Hillary Clinton, em 2016, significasse ataque quase imediato ao Estado nacional sírio, envolvendo certamente o Irã, com forte agravamento da pressão imperialista sobre a Rússia, sobre a Coréia do Norte e a Venezuela, com eventuais choques militares regionais de desenvolvimentos imprevisíveis. E segue pouco lhes importando que a vitória de Donald Trump tenha permitido, malgré lui, quatro anos de sursis, mesmo relativo, para aqueles países consolidarem a defesa de sua autonomia. Pouco importa, tudo isso, para os neo-democratas brasileiros, já que muitos vêem com bons olhos o fim da Rússia, da Síria, da Coreia do Norte, da Venezuela, da China como Estados independentes, já que governados por personagem excomungadas pelo imperialismo, devido as suas insubordinação, como Putin, Bashar al-Assad, Kim Jong-un, Maduro, Xi Jinping. Todos eles meras escusas para a intervenções imperialistas, ao igual que Dilma Rousseff, amiguinha do grande capital.
Facções Hegemônicas e Secundárias
Mesmo que os republicanos tenham feito o mesmo e em algumas situações talvez pior, o problema com o artigo “O Rei Está Nu: Obrigado Trump” é simples. Os neo-democratas brasileiros não aceitam a proposta de que Donald Trump, eleito com o apoio de facção marginal do grande capital, fez, sim, grandes estragos, mas certamente menos do que um presidente saído do coração do imperialismo hegemônico. Como faria sua concorrente, em 2016, Hillary Clinton, a bem-amada do capital financeiro e do sionismo e grande vedete mundial do identitarismo, caso tivesse vencido. Ou como fará agora certamente Biden e Harris, o primeiro, promotor e apoiador de crimes contra a população estadunidense e mundial e, a segunda, designada como vice de um presidente velho precisamente devido aos seus ataques à população pobre e negra quando era promotora. Ou seja, uma mulher de confiança.
Escapa à maioria dos analistas que, se não fosse o desastre epidemiológico, em grande parte devido ao negativismo de Donald Trump, ele teria sido possivelmente eleito por enorme maioria de votos, considerando-se a recuperação relativa da economia estadunidense e o recuo, igualmente relativo, das taxas de desemprego nos últimos quatro anos. A maré de votos que ele recebeu expressa o enorme deslocamento do voto popular em direção do nacional-populismo de direita, no contexto de uma crise estrutural da economia e da sociedade estadunidenses, como proposto no artigo “O Rei Está Nu: Obrigado Trump”. E a crise vai seguir, forte.
Para elegerem-se, Biden e Harris tiveram que abandonar suas posições conservadoras tradicionais e fazer promessas para com as mulheres, com os negros, com os estudantes, com os imigrantes, com os trabalhadores. As trapalhadas de Donald Trump nas suas últimas semanas de governo talvez permitam que o grande capital hegemônico estadunidense o destrua politicamente, total ou parcialmente. O que será um enorme alívio para os democratas e permitirá que Biden-Harris reneguem, nos fatos, as promessas que mais comumente apenas balbuciaram, sem maiores problemas, como já fizera por Barak Obama. Não são os fanáticos e ultra-direitistas, mas a enorme população trabalhadora que votou em Donald Trump, que preocupa o grande capital e o Partido Democrata.
Censura do Bem, Censura do Mal
Donald Trump governou acossado pelo Deep State ianque, governo estrutural submerso do grande capital hegemônico estadunidense, que não o deixou executar boa parte de seu programa. Como a aproximação com a Rússia de Putin, que teria facilitado a Trump sua batalha contra a China. Ação que Pequim agradece comovida ao Deep State, por ter obrigado os russos a se voltarem cada vez mais para o Oriente. Com o Partido Democrata no poder, é precisamente a facção hegemônica do imperialismo que volta ao governo, de rédeas soltas, já propondo, nos seus primeiros dias de governo, ferir a torto e a direito.
Em 19 de janeiro de 2021, Antony J. Blinken, intervencionista, anti-comunista, pro-sionista, especulador e armamentista, designado como secretário de Estado por Biden, propôs diante do Comitê de Relações Exteriores do Senado, que referendou sua indicação: “Podemos revitalizar nossas principais alianças – forçar multiplicadores de nossa influência ao redor do mundo. Juntos, estamos muito melhor posicionados para combater as ameaças de Rússia, Irã, Coreia do Norte (…).” Já secretário de Estado, na sua primeira entrevista, Antony J. Blinken deixou claro que a promessa eleitoral de retornar ao acordo nuclear com o Irã era mentirinha. O primeiro colóquio de Biden com Putin primou pela agressividade, desrespeito e má educação. Ou seja, jogava sobretudo para a platéia interna. Através da porteira do mundo já marcham as tropas do grande imperialismo preparando-se para recuperar sua hegemonia pela força bruta. Agora, é sentar e esperar.
E agora temos um imperialismo hegemônico santificado por ter derrotado eleitoralmente o Chupa-cabras estadunidense. O que permitiu a auto-outorga, pelos proprietários monopólicos da mídia mundial e estadunidense, do direito de censurarem e literalmente cancelarem Donald Trump. Um pré-anuncio do estado de sítio que se pretende impor sobre os USA e o mundo. Censura aplaudida feericamente pelos neo-democratas brasileiros, também despreocupados com o fato de que o capital privado possa silenciar quem quiserem, ao bel-prazer. Censura que se estendeu, aberta e imediatamente, à Venezuela e ao Irã, e será praticada, sem restrições, contra qualquer movimento oposicionista substancial ao capital, nos Estados Unidos, no Brasil, no mundo. Em palavras simples, se eles silenciaram Trump, capitalista dos quatro costados, apesar dos seus 74,2 milhões de votos, imaginem o que vão fazer com nós, pobres esquerdistas!
Donald Trump significava um ataque às necessidade efetivas da cidadania USA e mundial, não raro confuso, irracional e contraditório na sua verbalização e midiatização, entretanto, inexorável em seus efeitos deletérios. Biden-Harris representa, ao contrário, com aparência racional, democrática, civil e identitária, um ataque aos mesmos direitos, certamente com uma eficiência e um caráter performativo qualitativamente superior. E com desdobramentos difíceis de prever. Biden já se cercou de altos funcionários multi-identitários, todos eles direitistas, intervencionistas, supremacistas estadunidenses e, não poucos, responsáveis por atentados criminosos internacionais no passado— Anthony Blinken, Lloyd Austin, Victoria Nuland, etc. Certamente vão fazer o que Trump não raro apenas sugeriu.(7)
Não se tratava de optar, lá, nos USA, ou aqui, no Brasil, entre o menor mal, já que os dois afundam a população na crise profunda, uns com maior, outros com menor velocidade. Trata-se de levantar, no Brasil, nos USA e no mundo, o programa do mundo do trabalho, como a única alternativa possível ao deslizar geral na barbárie que estamos vivendo. Uma proposta fácil? Não, dificílima, que talvez jamais se materialize. Mas podemos começar a trilhá-la ao analisarmos os fatos na sua complexidade objetiva, e não os enquadra às pequenezas das ilusões colaboracionistas. Sobretudo devemos deixar de achar que, aplaudindo ajoelhados os poderosos, eles terão maior complacência ao marchar sobre nós.
Atualizado e revisto em 30/01/2020
P.S. Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni.
*Mário Maestri foi professor de história na UFRJ e na PUC-RS. Autor, entre outros livros, com Florence Carboni d A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes (Expressão Popular).
Notas
(1) MAESTRI, Mário. “Pinochet não foi um monstro”. consciencia.net, 12.12.2006.https://revistaconsciencia.com/pinochet-nao-foi-um-monstro/
(2)Id.ib.Por que amo Donald Trump? 31-01-2017. https://frasistaneofito.blogspot.com/2017/01/?m=1
(3) Id.ib. Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530-2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil
(4) Cf. O informativo artigo de; SILVA, Alexandre Lessa da. A ideologia e a política de Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos. O PARTISANO, 22 de janeiro de 2021. https://opartisano.org/politica/a-ideologia-e-a-politica-de-joe-biden-presidente-eleito-dos-estados-unidos/
(5) MAESTRI, Mario. O Identitarismo Negro Está Comendo a Esquerda por uma Perna. Contrapoder, 31 de outubro de 2020. https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestri/post/um-candidato-negro-do-capital-na-trincheira-da-esquerda
(6) MAESTRI, Mário. A honra reconquistada de Slobodan Milosevic (Brasil de Fato, 2005). https://www.academia.edu/27242961/Brasil_de_Fato_2005_A_honra_conquistada_de_Slobodan_Milosevic; id. O fim da Era Saddan. Correio de Cidadania,2006, (I), https://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed535/int2.htm; id. A Honra Reconquistada de Muammar al-Kadafi. A Honra Reconquistada de Muammar al-Gaddafi. Correio da Cidadanis, 21 de outubro de 2011.https://correiocidadania.com.br/internacional/31-mundo/6447-25-10-2011-a-honra-reconquistada-de-muammar-al-kadafi; id. Solidariedade Incondicional com a República Democrática da Coréia22.12.2019, pravda.ru, https://port.pravda.ru/mundo/22-12-2019/49717-rpd_coreia-0/.
(7) BORON, Atilio A. Joe Biden na Casa Branca – nenhuma ilusão. A terra é Redonda. 22/01/2021. https://aterraeredonda.com.br/joe-biden-na-casa-branca-nenhuma-ilusao/