Por RICARDO IANNACE*
“A paixão faz das pedras inertes um drama” (Le Corbusier).
1.
A escritura do imóvel assevera a data:
1964.
Amplo.
Do apartamento, pouco se debitou a originalidade.
O verniz cascolac nos tacos da sala espraia-se por corredores e quartos. Nos dormitórios laterais e no cômodo do fundo, conjugado à área de serviços, destacam-se as venezianas em verde oliva com fechaduras e dobradiças restauradas. Todas as janelas, sem exceção, emolduram a praia do Leme.
Como sequer teremos uma diarista, no máximo a profissional que colabore semanalmente na faxina, o minúsculo aposento de empregada terá a função exclusiva de abrigar a máquina de costura herdada de minha sogra, a tábua e o ferro de passar roupas, os livros que não couberem nas estantes alocadas no hall de entrada e no living, afora outros poucos objetos.
O corretor disse reiteradamente que a ex-proprietária, falecida há seis meses, atuou como artista plástica e vivia com expressivo conforto (além de contar com a companhia e os serviços de uma antiga criada, era assistida por duas enfermeiras). No documento de venda, acima da identificação do logradouro, aparece-lhe o nome: Gloria Hernandez. Solteira. Nascida em 1932 no estado do Rio de Janeiro.
Tanto minha esposa quanto meu filho consideraram que deveríamos pintar o apartamento de branco; concordei: branco neve. Mas fiz esta ressalva: o quartinho, amarelo gema. Imaginei a intensidade da cor quando o sol do meio-dia se alastrasse pela área, fabricando sombras diagonais, de maneira que, ao passar por lá, apreciaria recortes de luz casuais,
ouro e cinza-chumbo divisando o assoalho, e
se fixando, na alvenaria,
quadrados
retângulos
ou formas imprecisas.
As paredes, por certo, jamais foram lixadas; tampouco receberam massa corrida. A textura é áspera, rugosa. Em uma delas, sob o reboco grosso e caiado, divisam-se manchas negras: contornos mimetizando silhuetas indefinidas, análogas às pinturas rupestres. Incomodado, fixei ali uma lousa de 1 20 de largura e 90 de altura.
Some-se a tal excentricidade a geometria ímpar do cômodo, arquitetonicamente caótica, impondo-se como medida tortuosa na estruturação de um quadrilátero. “Não ser inteiramente regular nos seus ângulos dava-lhe uma impressão de fragilidade de base como se o quarto minarete não estivesse incrustado no apartamento nem no edifício.”[i] Fiat lux.
2.
O rapaz da portaria falava muita coisa. Apostava que minha família logo se adaptaria à cidade e ao edifício… o imóvel tem 60 anos, inevitavelmente pede uma reforminha ou outra, contudo é espaçoso demais. A violência carioca não é tudo isso que se ouve em São Paulo, e, se uma hora interessasse a instalação de um ofurô na cobertura, indicaria a empresa de um amigo seu. Enquanto isso, a filha – uma menina de 7 ou 8 anos – permanecia sentada na cadeira baixa de madeira que improvisei nesse quarto de empregada. Para sua comodidade, deixei no chão as duas caixas de papelão com livros.
O moço (chama-se Daniel) relatou que vez ou outra subia ao apartamento para realizar algum serviço – ora a troca da resistência de um chuveiro ou o ajuste de uma torneira gotejante, ora o conserto de uma tomada ou de um interruptor. E em seus intervalos (faz bico como uber) também conduzia a velha moradora e as acompanhantes a consultórios médicos; raramente, a um restaurante e a uma casa espírita em Copacabana.
Durante a conversa, pedi licença para adicioná-lo nos meus contatos de celular. Dirigi os olhos para a menina e brinquei, afirmando que o pai dela estaria literalmente perdido, não o deixaria em paz, porque mal consigo trocar uma lâmpada ou bater um prego.
Perguntei se prefeririam água ou Coca-Cola. Não quiseram nada. Nem bala a menina aceitou. Elogiei sua beleza e seu cabelo rastafári, cujas tranças com fios sintéticos, vermelhos, eram deslumbrantes. À medida que angariava uma proximidade, a ponto de lhe ter arrancado o nome e um sorriso, eu apontava para seu pai o canto da parede onde pretendia que ficassem as três prateleiras.
3.
Pedi ajuda para levar ao quarto uma valise de mão que roubava o espaço da máquina de lavar. Comentei com Daniel que eu pulverizaria cotrim debaixo do tanque. Sábado havia me deparado com enorme barata “arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas.”[ii] Encarei-a. Seus “olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado”.[iii]. Ela emergiu do ralo e vazou pela fresta da vidraça.
Ergueu sozinho a maleta e deixou-a no centro do aposento. Assegurou que devido ao calor há muitas baratas no prédio. Sugeriu um veneno caseiro: açúcar com bicarbonato de sódio… Que eu o espalhasse sobretudo nos cantos da cozinha.
Quando me dei conta, a criança havia retirado os livros das caixas. Os títulos de ficção ficariam ali, mas as obras teóricas e críticas eu poria na estante do corredor, próxima à sala de jantar. Quarto de despejo estava na caixa (edição da extinta Francisco Alves de 1960). A filha de Daniel achou graça do nome O dorso do tigre, de Benedito Nunes. Pôs-se, na sequência, a deslizar o dedo pelo desenho de capa da primeira edição de Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, de 1995 pela Ática – o retrato, datado de 1947, em bico de pena, tem a autoria de Alfredo Ceschiatti.
Com naturalidade, nossa atenção se desvia à grande bolsa de couro que acabava de adentrar o quarto. Era personalizada – trazia o decalque das consoantes G. H.. Por alguma razão, a valise permaneceu na residência mesmo depois do falecimento da mulher.
Abri. De pronto, topei uma pasta de plástico com recortes de jornal de época (de relance, a foto do ex-presidente Castello Branco) e cartões-postais…
saco de argila
pacote com gesso
(tudo com validade ultrapassada)
pincéis tintas estecas lâminas de pinho de riga
maço de velas brancas
tubo com cola ressecada.
4.
Ouvi a campainha. Era o zelador; não quis entrar. Emprestava-me sua máquina furadeira e acessórios. Voltei ao aposento com a ferramenta e, para minha surpresa, Daniel e a menina tracejavam a lousa – pai e filha compenetrados. Ela reproduzia em tamanho generoso o desenho de Ceschiatti (o contorno estilizado do rosto de Lispector); Daniel duplicava o Erecteion, um dos monumentos em ruínas que constituem a Acrópole de Atenas. Copiava, com esmero, a iconografia do cartão-postal na pasta à mostra dentro da valise.
Lado a lado no quadro negro
o rosto da escritora em giz branco e
a carreira de seis pilastras femininas
com entablamento na cabeça:
as cariátides.
Elogiei-os. O rapaz assegurou que parafusaria as prateleiras após o almoço; retornaria sem a filha – à tarde, ficaria com a mãe. Prometeu não fazer sujeira, que eu não ficasse preocupado, ele varreria a área e devolveria a furadeira ao zelador.
Antes de abandonarmos o cubículo, brinquei, reclamando suas assinaturas nos desenhos. E mais que depressa ela escreveu, na parte inferior da lousa, com letra bastão
J A N A Í N A.
Quando passei a chave na porta da sala e avancei pelo corredor, lembrei que prometi a um aluno o Palimpsestes, de Gérard Genette. Aliás, em um dos ensaios de Figuras, o crítico registrou com sapiência: “A literatura é realmente aquele campo plástico, aquele espaço curvo onde as relações mais inesperadas e os encontros mais paradoxais são, em cada instante, possíveis”.[iv]
Através da janela, contemplei o céu anil.
*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de A leitora Clarice Lispector (Edusp).
Notas
[i] Clarice Lispector, A paixão segundo G. H., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 38.
[ii] Idem, p. 56.
[iii] Idem, ibidem, p. 56.
[iv] Gérard Genette, “A utopia literária”, Figuras, Tradução Ivonne Floripes Mantoanelli, São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 129.
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