Um pacto suicida?

Imagem: Michelle Guimarães
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Por CHICO WHITAKER*

Bolsonaro já deveria ter caído face aos crimes que cometeu, porém ocorre o contrário e estão normalizando todo o inaceitável com a atenção geral voltada somente para o processo eleitoral

Nós brasileiros parecemos ter uma forte tendência a nos acostumarmos com o inaceitável, a normalizar o absurdo. Como por exemplo com a corrupção no mundo político, quase tão antiga como a nação. O Legislativo, especialmente, sempre foi um terreno propicio para a ação de aproveitadores e oportunistas, capazes de chantagear com seu poder, embora nele sempre também surjam cabeças brilhantes pensando no país.

Muitos tentam, dentro dele, mas infelizmente minorias, direcioná-lo para os fins para os quais os parlamentos existem, e não para o enriquecimento de seus membros – ainda que os “espertos” possam considera-los trouxas ou ingênuos. Mas sua eficácia parlamentar, que implica em dialogar com adversários políticos e com quem podem não ter nenhuma afinidade, exige que não sejam críticos a ponto de se isolarem.

Enquanto isso, do lado de fora, muitos sonham com a possibilidade de também entrar nesse mundo tentador, para garantir sua parte no botim. E a cada quatro anos enxames de candidatos nos cercam, para que os premiemos com nosso poder de eleitores. Mas não é fácil distinguir aqueles que, misturados no enxame, almejam efetivamente trabalhar pelo Bem Comum…

E a vida continua, porque a maioria das pessoas considera muito difícil mudar esse quadro, que parece já constituir uma cultura. “Assim é a política”, muitos dizem, quase conformados.

Com isso também muitos admitem, sem o repudio geral que merecem, práticas corruptas que foram surgindo. Como a de “funcionários fantasmas” nos gabinetes, para proteger parentes e amigos, ou a das “rachadinhas”, nos legislativos em todos os níveis, de que hoje muito se fala, mas que é um velho truque. Ele torna possível que um número de assessores bem pagos (que se torna sempre maior) transfira vergonhosamente, para os bolsos dos que usam tais sistemas, parte ou todo o dinheiro público que ganham. Muita gente já nem se incomoda muito com tais desvios éticos, tão corriqueiros se tornaram.

Também ficamos sabendo de artifícios inventados por hábeis articuladores, sem conseguirmos aboli-los como seria necessário, como o das “emendas parlamentares”. É um título pomposo, mas enganoso. São acréscimos ao orçamento dos governos. Embora haja quem consiga usar essas “emendas” para fins mais nobres, e quem as defenda porque permite o atendimento de reais necessidades que os parlamentares conhecem mais de perto, em sua maior parte visam garantir reeleições, ao destinar recursos públicos a obras, equipamentos e serviços nos redutos eleitorais dos parlamentares.

Assim como para lhes propiciar “sobras” e “comissões” que vão para os seus cofres. Lembremo-nos dos “anões do orçamento” e do “escândalo das ambulâncias”. Por outro lado, sua negociação também serve aos Executivos, como um dos principais instrumentos de que dispõem para a formação de maiorias que aprovem leis de seu interesse, que pode ser bem contrário ao da sociedade – como vem ocorrendo agora. Basta-lhes para isso administrar segundo esse fim a liberação dos valores assim consignados.

Por isso mesmo uma das linhas de ação da Frente de Resistência e Reconstrução Nacional, proposta no fim de janeiro, é entrar com vigor no processo eleitoral deste ano para o Legislativo – mais além da atenção muito maior que se dá, tradicionalmente, ao do Executivo. É fundamental diminuir o número de “picaretas” – “uns 300”, como alguém disse há muitos anos – que voltem ao Congresso para continuar desvirtuando sua importante função.

Mas se a corrupção privatiza dessa forma recursos necessários para atender a necessidades sociais urgentes, outros absurdos igualmente aceitos têm efeitos mais trágicos. Tal é caso do desmonte de todos os tipos de controle social que está levando à destruição da Amazonia e ao genocídio dos povos indígenas, ou a impunidade em casos de assassinato por algum tipo de fobia ou por puro racismo. E coroando tudo, as ações intencionalmente necrófilas do desgoverno frente à Covid 19, que causaram um elevadíssimo número de mortes evitáveis. Tudo isso acontecendo e se agravando debaixo de nossos narizes.

De fato, o crescimento em flecha do número de vítimas da pandemia assustava a todos, mas parece que também nos anestesiava, impedidos por ela mesma – e ainda o estamos – de sermos mais numerosos em manifestações de protesto. Enquanto o próprio Bolsonaro, pessoalmente, com os meios de comunicação de que um Presidente dispõe, induzia os desavisados – e seu governo ainda o faz – a buscar a cura com medicamentos inócuos e até com efeitos letais. Assim como confundia e até hoje confunde as pessoas sobre o modo de se proteger da doença e cria dúvidas sobre a eficácia das vacinas, chegando também a dificultar e atrasar sua compra para rápida aplicação geral e para cada faixa etária que entra na fila.

Mas se as instituições do Estado brasileiro deixaram que tudo isso fosse acontecendo, estamos agora todos nós, cidadãs, cidadãos e também organizações da sociedade civil, nos acostumando ao mais inaceitável dos inaceitáveis: a permanência no seu cargo, até as eleições deste ano, do principal responsável por tudo, como se vivêssemos tempos normais de alternância no poder, com a agravante dele já estar gozando de uma total impunidade por uma grande série de crimes comuns.

Estes já foram formalmente elencados em representações fundamentadas de organizações da sociedade civil e da CPI do Senado ao Procurador Geral da República (PGR), que é, segundo a Constituição, quem deve denunciá-lo ao STF. A abertura de um processo criminal, depois dessa denúncia, levaria ao afastamento imediato do Presidente de seu cargo.

Mas o PGR prefere, ele também, prevaricar – um dos muitos crimes cometidos por Bolsonaro – usando o poder que a própria Constituição lhe atribuiu para não fazer nenhuma denúncia e com isso blindar seu amigo. Uma Ministra do STF já teria mandado a ele um recado: sua função não é de observar, mas de agir. Mas mesmo assim o relatório da CPI do Senado acaba de completar 100 dias em suas gavetas. Pouco preocupado com sua própria história, possivelmente espera ser premiado com uma indicação para o STF: um antigo parlamentar não disse que é dando que se recebe? Essa frase evangélica perversamente interpretada para a política pode encobrir muitos tipos de corrupção…

Enquanto isso, outro tipo de acusação feita a Bolsonaro, de crimes de responsabilidade que exigiriam seu impeachment, já denunciados em quase 200 processos, dorme tranquila rumo à eternidade em outras gavetas, as do Presidente da Câmara. Este, também aliado fiel do acusado, por sua vez usa descaradamente instrumentos também inaceitáveis, como os recém inventados “orçamentos secretos”, para evitar que uma maioria de parlamentares aprove a abertura de um processo de impeachment.

Ora, a impunidade de que se beneficia o Presidente, por crimes comuns e de responsabilidade, só o autoriza e até o estimula a persistir em sua carreira criminosa.

E é para nos mobilizarmos e nos organizarmos para reagir a tudo isso que muitos indignados com o que está acontecendo redigiram a Carta Aberta à gente brasileira, com a proposta de Frente acima referida.

Ela se dirige a quem ainda espera que o Brasil consiga sair dessa cratera infernal em que se afunda cada vez mais, e repete algo que vem sendo dito por muitos: em vez de gritarmos somente “Fora Bolsonaro!” temos que gritar “Fora Bolsonaro já!”. Imediatamente, o mais depressa possível! Antes que seja tarde demais! Especialmente frente ao fato de já existir um instrumento que permitiria alcançar esse objetivo – o processo criminal do Presidente, atualmente bloqueado pelo Procurador Geral da República – e de podermos exigir do Senado que destitua esse PGR por prevaricação, possibilidade que parece ser ainda pouco conhecida.

Em vez disso, já se está normalizando todo o inaceitável com a atenção geral voltada somente para o processo eleitoral, como se fosse a única saída que nos restasse. Nem bem iniciado 2022 as lideranças políticas passaram a só se ocupar com a escolha de vices e formação de alianças e palanques eleitorais, enquanto os comentaristas das TVs nos divertem, como em programas de entretenimento, eles mesmos um pouco deslumbrados, com as espertezas – as raposas estão se farejando, alguém já o escreveu – dos membros do grande clube político. E enquanto nos jornais e listas de redes sociais os analistas espalham dezenas de artigos sobre os caminhos e descaminhos dos candidatos e das “terceiras vias”, poucos, obviamente, se preocupam com as milhares de candidaturas para os legislativos, que emergem como formigas famintas, e ainda menos com o que pode acontecer de agora até as eleições.

Eleições são evidentemente essenciais numa democracia. São o instrumento de que a sociedade dispõe para que sejam as cidadãs e os cidadãos que, num momento de renovação de esperanças, escolham quem deve governar e legislar. As campanhas que as precedem são também uma ocasião de ouro, ainda que pouco aproveitada, para a elevação do nível de consciência política da sociedade; assim como de sua capacidade de se auto proteger de manipulações, como as feitas atualmente através das redes sociais pelas agora famosas fake news, que impedem os eleitores de votar realmente bem informados.

Mas neste momento salta à nossa frente a necessidade absoluta de impedir a permanência de Bolsonaro no poder até o final de seu mandato: cada dia a mais que ali continue, mantendo-se sua impunidade e as mentiras em que se esmera, aumentará o número de suas vítimas e mais ainda será destruído, de tudo que conseguimos erguer desde o fim do regime militar.

Mas nos veremos frente também a outros riscos. As próprias eleições podem não acontecer se algo para isso já estiver sendo gestado, nas mentes doentias de Bolsonaro e de seu entorno, ao perceberem que ele pode ser vencido, apesar do apoio de seu bando e dos interesses de setores pouco sadios da sociedade.

Ou, mais tragicamente, sua necrofilia poderá leva-lo até mesmo ao absurdo de fomentar uma guerra civil – algo necessário segundo um dos seus filhos parlamentares do tipo “rachadinha”, como ele mesmo provavelmente o foi, que o influenciam – apoiada na enorme quantidade de armas cuja entrada no país facilitou e até estimulou. Para que aí então forças policiais e milicias, com a ajuda de desajustados e recalcados brutais, façam o que ele disse que a ditadura de que nos livramos deveria ter feito: eliminar fisicamente quem sonhe com outros regimes políticos e econômicos – pelos quais muita gente no mundo anseia, para terminar com a desigualdade e assegurar a paz social e as próprias condições de vida humana no planeta.

Será que, menos doloridamente que isso, essa figura escabrosa que nos desgoverna não prepara simplesmente um caos social e econômico para que as Forças Armadas sejam obrigadas a intervir, para primeiro impor a ordem e em seguida iniciar mais um ciclo autoritário de governo do país?

Até quando planos pessoais, planos salvadores, alianças a construir ou a visão única dos próprios umbigos continuarão a impedir que nossas lideranças políticas vejam esses riscos, para que não venham a se efetivar e para que nunca mais os enfrentemos?

Será que um pacto suicida está sendo preparado, em gabinetes protegidos do país, de que estão sabendo somente as lideranças políticas e organizações sociais que o estão firmando, e de que muito poucos desconfiam, normalizando de uma vez todo o inaceitável?

Afinal, quem tem medo do Fora Já?

*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

 

 

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