Por BRUNO MACHADO*
Não há nenhuma restrição teórica ou prática a existência de duas esquerdas na política: uma progressista e outra conservadora nos costumes
As eleições de 2018 e 2022 demonstraram como algumas pautas morais e culturais se sobrepõem às pautas políticas e econômicas durante certos períodos. É certo que a defesa do armamento civil e o negacionismo científico são impopulares, conforme pesquisas de opinião demonstraram nesses últimos anos. Entretanto, o punitivismo na segurança pública e a defesa da heteronormatividade, intitulada como defesa da família, não só são muito populares como impulsionaram uma candidatura abertamente contrária a direitos sociais, privatista e elitista, temas que são muito impopulares no Brasil.
A extrema direita apela a pautas morais porque sabe que perde na opinião popular nas pautas políticas e econômicas. Se houvesse uma esquerda conservadora nos costumes, dividindo o espaço no debate público com uma esquerda progressista, possivelmente a direita seria enfraquecida com suas pautas individualistas e privatistas.
O punitivismo do “bandido bom é bandido morto” certamente é um risco à sociedade e a civilização. Já que a truculência policial nunca resultou em queda das taxas de crimes, sejam contra o patrimônio ou contra a vida. Além disso, como o efeito colateral da truculência policial é a morte acidental de inocentes, essa política de segurança pública causa mais mortes de inocentes do que sua não aplicação. Entretanto, quando, por exemplo, Lula em vídeo relativiza jovens que roubam celulares, ofende diretamente o trabalhador que tem seu celular comprado ao custo de muitas horas de trabalho roubado por um ladrão que busca ganhar a vida de forma fácil.
É correto e fundamental compreender o crime como o resultado de um ambiente social de desigualdade e discriminação, mas isso não torna correta a análise de que a opção pelo crime não passa por uma escolha pessoal. Quando a esquerda debate segurança pública vitimizando o algoz do cotidano do trabalhador, deveria esperar o descontentando do mesmo. A punição legal e o rechaço moral de criminosos precisa estar no discurso da esquerda se essa quer se manter próxima das dores da classe trabalhadora.
A defesa da heteronormatividade representada na frase “Deus fez o homem e a mulher” muito repetida por evangélicos e católicos no Brasil sem dúvidas causa efeitos negativos na cultura homofóbica e transfóbica no país. Cultura essa que está diretamente ligada a rejeição de filhos por pais, a casos de depressão, suicídio e violência motivada por questões de gênero e orientação sexual. Assim como certamente a cultura machista está associada diretamente a violência doméstica e ao feminicídio.
Ter tal consciência, não significa necessariamente defender pautas de combate a heteronormatividade que são abertamente ofensivas a opinião popular e que afastam o trabalhador dos partidos de esquerda, como é o caso do debate sobre o tratamento médico de transição de gênero em crianças. Tal opção política não é fácil e tem consequências reais na vida de muita gente oprimida tanto pelo punitivismo quanto pela heteronormatividade, entretanto, a perda de votos para a extrema direita também tem consequências na educação pública, na saúde pública, nos direitos sociais, na fome, etc.
As contradições surgem e sempre surgirão, cabe a sociedade, e especificamente a esquerda, debatê-las e encontrar o melhor caminho para vitórias no embate capital x trabalho e também em todas as formas de opressão na sociedade brasileira, sem deixar de levar em conta as circunstâncias materiais e culturais que a realidade impõe.
Se faz necessário ressaltar que é evidente que a esquerda historicamente construída, pautada na ciência e no humanismo sempre será a esquerda progressista, combativa em relação a todas as formas de opressão. Entretanto, o conservadorismo das massas populares é uma realidade a ser administrada e o materialismo que embasa a esquerda precisa levar tal fato em consideração. Não há nenhuma restrição teórica ou prática a existência de duas esquerdas na política: uma progressista e outra conservadora nos costumes.
A campanha de Ciro Gomes nessas eleições de 2022 deu sinais que podem apontar para um movimento de Ciro Gomes que buscará fazer parte dessa esquerda tolerante com o punitivismo e a heteronormatividade, que busca aliar pautas pró-classe trabalhadora com a perigosa moral popular.
Levando tudo isso em consideração, se efetivamente crescer no Brasil uma esquerda conservadora nos costumes, as diversas pesquisas de opinião feitas no Brasil demonstram um potencial de grande adesão ideológica desse movimento político com a classe trabalhadora. O que poderia significar também um enfraquecimento da extrema direita e do neofascismo, que só teria como diferencial suas pautas altamente minoritárias na opinião pública como a defesa de privatizações, a redução de direitos trabalhistas e a não taxação da elite econômica.
*Bruno Machado é engenheiro.
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