Uma festa discreta

Imagem: Julia Volk
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Frei Betto é um homem de muitos tempos e muitos lugares

Carlos Alberto Libânio Christo, o dominicano Frei Betto, é um autor de letras diversas e números altos. Escreveu 74 livros. Tem 64 obras publicadas no exterior. Apenas um de seus títulos, Fidel e a Religião, lançado no Brasil em 1985 pela editora Brasiliense, foi publicado em outros 28 países.

Além de autor, ele é também educador popular. Ajudou a formar milhares de ativistas no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, e em outras organizações sociais. O semblante que o Brasil tem hoje leva sinais da sua caligrafia e sua pedagogia. Há mais de meio século, Betto, como ele prefere ser chamado, é personagem de primeiro plano da história nacional.

Com sua jaqueta jeans à guisa de batina, mobiliza gente de tipos e matizes variados. Gente contente. Um sinal disso são as homenagens que disputam sua agenda à medida que se aproxima o dia 25 de agosto, quando ele vai completar 80 anos de idade. Em sindicatos, embaixadas, comunidades católicas e nas áreas comuns, ditas “sociais”, de prédios de apartamentos, recebe aplausos em grande quantidade e presentes em quantidade menor. Seus seguidores sinceros são mais numerosos que os dedos de uma mão – ou de milhares de mãos. Seus admiradores declarados lotam salões de casas abastadas e animam as rodas de quem não tem onde morar.

As festividades não aparecem nos jornais nem fazem alarde. Avançam como uma onda calma e pipocam em toda parte – até em salas de cinema. O documentário A cabeça pensa onde os pés pisam – Frei Betto e a educação popular, o primeiro da trilogia dirigida por Evanize Sydow e Américo Freire, a cargo da produtora Mirar Lejos, foi exibido em pré-estreias comemorativas. A mesma produtora já começou a rodar o longa-metragem “Betto”, com o ator Enrique Díaz no papel principal. O lançamento está previsto para 2025.

No domingo passado, outro documentário, O humanismo de Frei Betto, dirigido por Roberto Mader, foi exibido em avant-première pelo canal do ICL no YouTube. Leonardo Boff, um dos entrevistados, diz que seu velho companheiro sabe unir militância e religião. Os dois religiosos veem na figura de Jesus Cristo um preso político que foi torturado e assassinado por defender uma revolução – a revolução de mudar a maneira de viver por meio do amor ao próximo.

No mesmo filme, Frei Betto afirma que, no Novo Testamento, há apenas uma definição de Deus: “Deus é amor”. É tanta afeição mística que, de acordo com Boff, às vezes o frade “sente ciúme de Deus” por achar que o Superior não lhe dá a atenção devida.

A fibra moral desse escritor e pregador é maior do que supõe a nossa vã laicidade. Ele de vez em quando se avista com um presidente da República, a quem não adula. Sem mudar de roupa, vai amparar por horas, por dias, por semanas, os pais de um jovem que morreu tragicamente. Entre uma coisa e outra, conversa com os desvalidos, os esquecidos, os invisíveis. Sem barulho, sem ruído, sem precisar ser notado. Em silêncio.

Coerente, muito embora controverso, Frei Betto defende o governo de Cuba. Não espere que ele desista dessa causa, à qual se sente irmanado. E se você for um crítico e disser que em Havana vige uma ditadura, ele o acolherá com o mesmo respeito caloroso e – para usar aqui uma palavra que ele inventou – com a mesma “fraternura”.

Fora isso, cultiva a boa mesa. Guarda de cor as receitas da mãe, dona Stella. Escreve sobre culinária – Comer como um frade, por exemplo –, sabe cozinhar e não faz feio. Não deixa ninguém cortar o queijo mineiro como se fosse pizza. Nessa matéria, sua ortodoxia é inflexível: as fatias devem ser retiradas sempre de fora a fora, e o queijo vai diminuindo da direita para a esquerda, como se fosse pão.

Frei Betto é capaz de levar uma caixa de charutos Cohiba para o jovem editor que acabou de virar pai, mas você jamais vai vê-lo ostentando grifes. Seus vinhos têm preço mediano. Com a mesma disciplina litúrgica que lidera um grupo de oração, comanda a “Academia de Litros”, em que confrades e confreiras se reúnem para comer o que engorda, beber o que embriaga e prosear sobre assuntos que levam uma pitada de veneno.

Assim é. Quem o vê dando risada e fazendo piadas ferinas não tem ideia dos sofrimentos por que passou. Batismo de Sangue, de 1983, um de seus livros definitivos, conta a história dos frades dominicanos que entraram nas fileiras da ALN de Carlos Marighela para dar apoio logístico, sem nunca pegar em armas, e terminaram encarcerados.

Frei Tito se matou no exílio. Não suportou conviver com o que a tortura quebrou dentro dele. Betto sobreviveu. Suportou. As cicatrizes que ficaram não se põem à mostra. Batismo de Sangue ganhou o Jabuti e foi adaptado para o cinema em 2006, pelo diretor Helvécio Ratton.

Esse homem de muitos tempos e muitos lugares, que foi jornalista na revista Realidade, trabalhou no Teatro Oficina junto com Zé Celso, morou na cadeia, na favela e no convento, sempre mineiramente quieto, merece todas as celebrações, silenciosas ou não. Parabéns, meu amigo. Feliz aniversário.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • O pedido de impeachment de Alexandre Moraesstf supremo brasília niemayer 15/09/2024 Por MARCELO AITH: Os processos de ruptura democrática se iniciam, invariavelmente, com o enfraquecimento do Poder Judiciário, como ocorreu na Hungria com o primeiro-ministro ditador Viktor Orbán
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES