Universidade, revolução e dólares

Maria Bonomi, O jardim, xilografia, 70x50 cm, 2019.
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Por MARCELO RIDENTI*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Vania Markarian

Universidad, Revolución y dólares é um livro que chama a atenção pela sensibilidade na análise dos embates institucionais e políticos – que foram também dramas humanos – envolvidos na construção da universidade uruguaia nos anos 1960. Então se colocava a discussão sobre o papel social da produção institucionalizada de conhecimento e seu financiamento. Ao tratar da Universidad de la República (UdelaR), a obra lança luz sobre um processo histórico mais amplo na América Latina, particularmente em sua relação com os Estados Unidos, em meio a debates sobre a autonomia intelectual diante de pressões de todas as ordens no contexto da Guerra Fria.

Vania Markarian faz uma espécie de acerto de contas com o passado recente de sua universidade e o legado de uma geração que tentou transformá-la. É um exemplo de balanço e reflexão que se impõem às novas gerações de investigadores formados após o fim de ditaduras na região. A autora valoriza seus antecessores, cujo trabalho foi quebrado com o advento brutal do autoritarismo que afastou da UdelaR cerca de metade dos docentes, perseguindo os principais protagonistas da história narrada.

As referências a eles chegam a ser tocantes em determinadas passagens. Entretanto, isso não afasta a autora do rigor analítico ao avaliar alcances e limites envolvidos, por exemplo, na chamada reforma Maggiolo. Ou nos debates centrais sobre apoio estrangeiro à investigação. Tema que vale a pena ser retomado para compreender a prática dos cientistas de nossos dias, em que a circulação internacional se torna indispensável para fazer carreira universitária e obter patrocínio.

O livro analisa dois casos específicos que servem também como síntese de um processo social mais amplo. A primeira parte trata do debate em torno do financiamento da Organização de Estados Americanos (OEA) a um programa de formação em ciências básicas na Facultad de Ingeniería y Agrimensura em 1965. Esse debate envolveu três conjuntos de forças: os adeptos da orientação  tradicional entre os professores de formar profissionais para atender à demanda do mercado de trabalho; um setor docente crítico dessa orientação, que buscava construir uma universidade voltada sobretudo à investigação científica e considerava a educação superior como necessária à mudança social; e um segmento estudantil fortemente anti-imperialista, influenciado pela revolução cubana, para o qual só uma investida revolucionária permitiria transformar as funções e estruturas acadêmicas. A associação entre os dois últimos grupos permitiu dar início à renovação da engenharia no Uruguai e posteriormente deu base para a reforma da UdelaR na gestão de Maggiolo, eleito reitor em 1966.

O debate tratado minuciosamente nessa parte do livro não gerou a recusa de financiamento da OEA, instituição associada na época às políticas dos Estados Unidos. Contudo, levou a questionar outros programas com patrocínio externo, colocando em primeiro plano a necessidade de não se dobrar a pautas acadêmicas estabelecidas fora da instituição, que precisaria zelar pela própria independência. Alguns dos principais envolvidos no debate viriam a ter importância na construção da Frente Ampla em 1971 para as eleições presidenciais no Uruguai, ao fim vencida por seu adversário Bordaberry.

A segunda parte do livro trata do seminário sobre “elites latino-americanas” promovido em Montevidéu em 1965 pelo Congresso pela Liberdade da Cultura (CLC), organização internacional de intelectuais ditos antitotalitários que se contrapunham a seus pares organizados no Conselho Mundial da Paz, financiado pela União Soviética. Supostamente autônomo, o CLC era secretamente patrocinado pela CIA, como o New York Times descobriu em 1966, publicando matérias logo reproduzidas no Uruguai pelo semanário Marcha.

Eram os anos que se seguiram à revolução cubana, com forte influência nas esquerdas de toda a América Latina, em plena vigência da Aliança para o Progresso, com a qual os Estados Unidos buscavam se aproximar de setores reformistas da região. Iniciativa que, entretanto, convivia com o uso habitual da força bruta, como o apoio ao golpe de 1964 no Brasil e a invasão da República Dominicana no ano seguinte, concomitante aos dois episódios analisados no livro.

O seminário internacional sobre as elites na América Latina pretendia combater a persistência de velhas tradições e estruturas para enfrentar os desafios da era moderna e as novas tecnologias. Envolveu a aproximação com sociólogos locais liderados por Aldo Solari, que estavam em busca de uma inédita profissionalização da sociologia, voltada à investigação empírica com métodos e técnicas controláveis, sob inspiração da disciplina desenvolvida nos Estados Unidos, em lugar da antiga sociologia de cátedra, tida como generalista e ensaística, sem padrão científico.

Solari foi o principal organizador do evento em parceria com o acadêmico norte-americano Seymour Lipset, ao lado também do responsável pela América Latina no CLC, o anarquista Louis Mercier Vega, veterano da Guerra Civil espanhola. Várias correntes estiveram representadas no seminário, além da predominante teoria da modernização. Ilustres cientistas sociais considerados de esquerda aceitaram o convite para participar, como o peruano Aníbal Quijano e os brasileiros Darcy Ribeiro – que se encontrava exilado no Uruguai – e Fernando Henrique Cardoso, que trabalhava em Santiago do Chile para escapar da repressão após golpe de 1964 em seu país. Todos irmanados na crença, apesar de suas divergências, de que a construção institucional da universidade e de um sistema integrado de ciência e tecnologia seriam decisivas ao desenvolvimento.

Baseada em investigação criteriosa e exaustiva de documentos referentes aos dois casos – reunidos sobretudo no Archivo General da UdelaR e no Arquivo do CLC na Biblioteca da Universidade de Chicago –, e recorrendo a ampla bibliografia, a autora mostra como as tensões entre politização e autonomia acadêmica foram constitutivas de processos de institucionalização disciplinar, em especial nas ciências sociais. Ela faz uso não só do debate público registrado em atas de reuniões, artigos e textos na imprensa, mas também da correspondência privada entre os envolvidos que permite desvendar os bastidores dos episódios, especialmente os referentes ao CLC.

Nós leitores vamos conhecendo os diversos personagens da história: o grupo de engenheiros reformistas como Massera e Laguardia, o reitor Maggiolo, Darcy Ribeiro e seu influente seminário na UdelaR sobre estruturas universitárias, e muitos outros, como os então jovens que viriam a ocupar cargos dirigentes na instituição após o fim da ditadura: Wschebor, decano da nova faculdade de Ciências em 1987, Rafael Guarda, Rodrigo Arocena e Roberto Markarian, reitores de 1998 a 2018. Na segunda parte, ganham vulto Solari e uma série de estrangeiros de peso envolvidos com o Seminário: Lipset, Gino Germani, Mercier, o editor anarquista Benito Milla, radicado em Montevidéu. E também seus principais críticos nas páginas de Marcha, Ángel Rama e Carlos Real de Azúa, entre tantos outros.

O que poderia ser a mera reconstituição de duas passagens tópicas ganha vida e interesse pela argumentação do texto, que usa os episódios para iluminar os acontecimentos da época em que autora é uma das maiores especialistas, os anos 1960. Ou seja, o livro tem contornos bastante abrangentes, que envolvem questões polêmicas em torno do financiamento estrangeiro à ciência e do lugar da universidade na vida pública. O mais fascinante é perceber como cada personagem ou grupo de atores souberam dar respostas criativas diante das constrições sociais, dos limites e pressões de diversas ordens a que estavam submetidos num determinado contexto. Os termos de Mercier Vega – ao justificar sua inesperada presença como anarquista num órgão como o CLC – bem poderiam servir como epígrafe do livro: “ninguém fará nosso jogo, se não o jogarmos nós mesmos”.[1]

*Marcelo Ridenti é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O segredo das senhoras americanas intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural, a sair pela ed. Unesp.

Publicado originalmente na revista Contemporánea, no. 14(1), 2021.

Referência


Vania Markarian. Universidad, Revolución y dólares: Dos estudios sobre la Guerra Fría cultural en el Uruguay de los sesenta. Montevidéu, Penguin Random House, 2020.

Nota


[1] No original: “nul ne fera notre jeu, si nous ne le menons pas nous-mêmes”. In: https://maitron.fr/spip.php?article192004 , notice MERCIER Louis par Jean-Louis Ponnavoy.

 

 

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