Por VITOR PIAZZAROLLO LOUREIRO*
O caráter intervencionista do Estado contemporâneo das décadas de 30 e 40, numa visão global, é explicado como decorrência lógica do desenvolvimento do capitalismo monopolista
Quando em 1º de setembro de 1939 houve a demonstração inicial da tática de guerra “blitzkrieg alemão” na Polônia, eclodiu na Europa o conflito que em pouco tempo representaria grande tensão para a ditadura de Getúlio Vargas, e colocaria o Brasil em posição de difícil manutenção. O esmagamento da França nos meses que se seguiram, com conquista em tempo recorde de Paris, bem como o alastramento do conflito para outros continentes, de maneira simultânea imobilizou a América Latina em observação “neutra”, e teve o condão de acelerar o ponteiro para a proeminente necessidade de tomada de decisão por parte do Estado Novo acerca de seu lado na guerra.
Homem controverso, mas de habilidades inequívocas, Getúlio valeu-se do confronto e da polarização entre as potências do norte como ferramenta para pavimentar um caminho de solução para o certame que na última década mobilizou o país: como industrializar o Brasil?[i]
O decorrer da década de 1930 foi um momento de efervescência dos debates travados dentro do governo brasileiro, pela primeira vez efetivamente alinhado com o desejo de industrializar e modernizar a nação. Diferentemente dos Estados Unidos, que a partir da sua libertação no final do século XVIII fez a escolha de se integrar imediatamente à Revolução Industrial, por meio de um modelo de desenvolvimento baseado na agricultura e na industrialização, o Brasil, cuja independência só viria 46 anos após a norte-americana, reafirmou o modelo de agricultura de exportação, com base na escravidão racial.
Com efeito, esse regime econômico prevaleceu por ser o que interessava, em maior parte, à elite latifundiária da época. Atravessou o Império, com a escravidão, e toda a Primeira República, em sua versão assalariada, mas não sem deixar consequências notáveis, sentidas, sobretudo, a longo prazo, especialmente nas diferenças de renda per capita entre os Estados Unidos e o Brasil[ii].
Mesmo em 1929 com os desdobramentos devastadores da crise econômica mundial sobre nossa balança, optou-se por manter o modelo agroexportador a qualquer custo, chegando ao ponto de ser estratégia corriqueira queimar safras inteiras de café para controle de preços. Foi nesse momento, porém, que o modelo industrial começou a emergir, timidamente, por meio das substituições às importações, através de mudanças graduais em preços relativos, elevações de tarifas para exportação, e controle do câmbio. O resultado foi que em 1932 o PIB brasileiro voltou a crescer, parte, sem dúvida, impulsionado pelo ensaio de indústria nacional.
Encerrada a Primeira República com a Revolução de 1930, ganhou força institucional, pela primeira vez, a vontade organizada de impulsionar a industrialização do país rumo ao progresso. Assim, foi neste contexto que a Segunda Guerra fez total diferença aos brasileiros.
No decorrer da década de 1930 o Brasil manteve boas relações com os países que logo formariam o Eixo, já administrados por regimes fascistas. Em 1936, Vargas firmou acordo para a compra de três submarinos italianos, a serem pagos com algodão e outros produtos brasileiros. No mesmo período, o Brasil importou equipamentos bélicos da Alemanha nazista. Em sentido semelhante, não era mistério nem que o governo Vargas possuía membros simpatizantes dos regimes direitistas europeus, nem que o próprio ditador brasileiro proferia discursos com referências positivas a “nações fortes e nacionalistas”. De todo modo, entre demonstrar simpatia e aproximação, e efetivamente se alinhar há uma distinção brutal.
Concomitantemente, a relação do Brasil com os Estados Unidos[iii] e Inglaterra era profunda no sentido da exportação de insumos primários de grande valia para aqueles países, especialmente no que diz respeito às matérias primas como a borracha, essencial para o maquinário de guerra. Dessa forma, com a eclosão do conflito armado e a construção do esforço de guerra dos Aliados – especialmente o inglês -, tornou-se central a rota de abastecimento Brasil-EUA-Europa. Ainda assim, Vargas buscou a neutralidade.
Veja-se. Se de um lado era evidente a incoerência da ditadura do Estado Novo apoiar belicamente as democracias aliadas; de outro carregava ainda maior incoerência uma aliança brasileira com o Eixo, haja vista o Brasil ser um país multiétnico e os ideais fascistas pregarem supremacia racial e extermínio de povos “inferiores”.
De todo modo, a neutralidade do Estado Novo incomodou ambos os lados do conflito.
Os aliados por enxergarem com receio a possibilidade de uma guinada do Brasil que os levaria a uma posição de desvantagem no Atlântico Sul; e os fascistas por compreenderem que a suposta neutralidade brasileira evidentemente favorecia um dos lados: o norte-americano e inglês. A pressão tornou-se urgente com o início do torpedeamento de navios mercantes brasileiros por submarinos do Eixo, com vistas a impedir o abastecimento dos Aliados.[iv]
Este foi o cenário que cravou o alinhamento do Brasil com o esforço de guerra dos Aliados, mas não sem algo em troca.
Vargas se aproveitou do momento para barganhar com os norte-americanos as condições para favorecer a industrialização nacional que superasse a mera “substituição de importações”. Nesse sentido, em contrapartida ao desejo ianque de estabelecer bases navais e aéreas no Nordeste brasileiro, o Estado Novo exigiu empréstimo para arrendamento de material bélico. Ainda, como contraproposta ao desejo do presidente Roosevelt de estudar a defesa da costa brasileira, foi negociada a concessão de empréstimo, entrega de materiais, armamentos e equipamentos, bem como o acompanhamento da construção da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN.
Em sintonia, em 1942, chegou ao Brasil a “Missão Cooke”, para trabalhar em conjunto com a Comissão de Mobilização Econômica instituída pelo governo, no objetivo de estudar e produzir um relatório com participação internacional sobre as condições de industrialização do Brasil. Foram analisados o mercado interno, a mão-de-obra, os recursos minerais e químicos, a capacidade de endividamento e as oportunidades de trabalho no Brasil. Como sugestão, foram indicadas medidas de desenvolvimento das indústrias, com o objetivo final de melhorar os padrões de vida do povo brasileiro.
Esse acontecimento e o relatório produzido representaram verdadeiro marco que incendiou o debate, ainda atual, a respeito da industrialização do Brasil. Neste bojo, ganhou também destaque a busca sobre qual deve ser o papel do Estado nesse processo.
É sobre isso que este ensaio passa a tratar.
O Estado Novo foi responsável por acelerar uma mudança substancial das condições históricas no momento em que o Brasil traçava o debate sobre a sua industrialização, qual seja: o aparecimento da figura do Estado intervencionista.
Diferentemente das condições colocadas para os países que primeiro iniciaram a Revolução Industrial, em que a iniciativa privada, sozinha, teve um papel extremamente relevante para fomentar a industrialização, o mundo em 1930-1940 era já outro. Após décadas de fortalecimento dos ideais do liberalismo político e do liberalismo econômico, as falhas graves deste último colocaram as democracias liberais num local de contradição que negou a capacidade de continuidade do liberalismo econômico e germinou a figura do Estado intervencionista.
Assim sendo, em complemento fundamental ao problema da industrialização brasileira ganhou destaque justamente a figura do Estado interventor. José Eduardo Campos de Oliveira Faria ensina, em sua tese de doutorado, que o caráter intervencionista do Estado contemporâneo das décadas de 30 e 40, numa visão global, é explicado como decorrência lógica do desenvolvimento do capitalismo monopolista, cujo evento de virada foi o crash de 1929 e a crise econômica sem precedentes que lhe foi subsequente.
A hipertrofia do Executivo, historicamente, foi a maneira encontrada pela qual se conciliaram diferentes tipos e níveis de conflito (entre capitalistas de um grupo e capitalistas de outro, e entre trabalhadores e capitalistas), em virtude da incapacidade cada vez mais latente de auto-regulação da economia liberal, que se tornou vulnerável às crises cíclicas e pressões de oligopólios. Dessa maneira, o Estado interventor foi responsável por abrir caminho para a burocratização e planejamento como forma de regulação, controle e direcionamento econômico. Em suma: pacificar os conflitos.
Diante de tal realidade, o Estado contemporâneo intervencionista foi uma dupla ferramenta com a finalidade de harmonizar os conflitos e dar continuidade ao próprio sistema, enquanto mecanismo destinado à manutenção e expansão ao capitalismo. Assim, a superação do liberalismo político era realidade já latente no momento em que os debates brasileiros a respeito do modelo de industrialização aconteciam, não significando de modo algum o desprezo pelo liberalismo econômico, mas, ao contrário, pressuposto de sua continuidade e, no nosso caso, insumo ao seu fortalecimento.
Nesse sentido, a controvérsia a respeito da industrialização do Brasil era, sobretudo, uma definição sobre qual deveria ser o papel do nosso Estado, como ele deveria se organizar e quais ferramentas estariam à sua disposição.
Sendo parte da atividade estatal selecionar possíveis focos de descontentamento social – seja para proteger-se, seja para proteger a economia -, convertendo demandas políticas em demandas econômicas, era de se pensar com razoabilidade a hipótese de existir o dever (especialmente após o relatório da Missão Cooke) do governo brasileiro de fomentar ativamente a industrialização, com o objetivo de elevar as condições de vida da população, e consequentemente evitar questões sociais mais graves. Sob essa ótica, correntes intelectuais relevantes tinham este como o objetivo do Estado brasileiro naquele momento.[v]
Neste ponto, ganha particular relevância a função do direito neste processo, enquanto viabilizador das políticas, seja por meio da validação jurisdicional, seja por meio de suas funções para atenuar a complexidade social e garantir a previsibilidade necessária aos cálculos econômicos inerentes a um movimento tão grandioso para o país, com vistas a buscar conciliar os múltiplos interesses antagônicos envolvidos.
A legislação de um Estado intervencionista serve para interferir nas estruturas sociais e regulá-las, dirigi-las e modificá-las. O ponto de atenção aqui é justamente o papel do direito nos países em que há um processo de modernização sócio-econômica em curso, marcado pela industrialização. Isso porque nesses países, sendo também o caso do Brasil durante o Estado Novo, existe uma crença de que apenas o Estado pode criar as condições para a efetivação de planos de desenvolvimento a longo prazo.
Foi possível observar, no movimento dos Estados que protagonizaram a industrialização tardia, uma aproximação latente entre o exercício do poder político e o arcabouço jurídico, no entanto, sem que um se confunda com o outro. Ganhou musculatura a ideia do Estado intervencionista por meio de sua relevância prática em outras experiências, nas quais essa figura atuou como controlador, estimulador, planejador e árbitro do processo de industrialização, não só enquanto financiador, mas também, diferentes vezes, como produtor. Para essa experiência, o direito surge como ferramenta maior.
Finalmente, com vistas a caminhar para o encerramento, por ora, da reflexão aqui colocada sobre a atuação do Estado Novo de Vargas em se valer da situação geopolítica dos anos 40 para inaugurar a guinada à industrialização nacional, importante pontuar o pensamento de Myrdal, economista adepto do socialismo democrático e defensor do estado interventor, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1974 ao lado do liberal Friedrich von Hayek, cujo pensamento o era diametralmente oposto.
A reputação de Myrdal que o levou a vitória do Prêmio Nobel decorreu em grande parte por seu conceito de “causação circular acumulativa”, que está na essência de sua teoria de desenvolvimento. Essa teoria, inovadora até então, descreve um processo pelo qual narra que: deixadas livres as forças do mercado, há a tendência inescapável de pessoas e regiões mais pobres tornarem-se mais pobres, enquanto pessoas e regiões mais ricas tornam-se mais ricas. Isso não exclui trocas pontuais, tampouco nega a possibilidade de mobilidade sócio-econômica, mas apenas descreve tendências.
Seu ponto de descoberta na enunciação da teoria é dotado de uma novidade, qual seja: é inútil buscar um fator exclusivo e determinante, como por exemplo o econômico, para justificar por completo uma questão social. Isso porque quando se estuda um problema social, é difícil perceber de fato o que seria um fator isolado, vez que tudo é causa de tudo, de uma maneira circular, mas também interdependente[vi]. Neste giro, esclarece que se deixada solta, a atividade econômica tende a se concentrar apenas em áreas favoráveis, pressionando desigualdades regionais, quando não entre países.
Assim sendo, embora à primeira vista possa parecer que a energia de atração de um centro econômico possa ser apenas “condições favoráveis”, a verdade, segundo Myrdal, ao contrário do que se poderia pensar, é que o poder de atração de um centro econômico se origina principalmente de algum fato histórico fortuito. Neste ponto, o Estado intervencionista é o agente capaz de romper com maior eficácia o círculo vicioso de empobrecimento de uma nação, bem como restabelecer desequilíbrios gerados, liderar o desenvolvimento, equilibrar regiões, inserir países subdesenvolvidos em planos nacionais e globais de desenvolvimento, cadeias globais de valor e tecnologia.
Nessa toada, a atuação do Estado Novo de Vargas para aproveitar o contexto histórico da eclosão da Segunda Guerra e barganhar a inserção do Brasil numa fase de industrialização mais desenvolvida está alinhada com a ideia de que o Estado deve intervir nas condições econômicas do país com o intuito de alterar as suas condições e possibilidades. Também caminha aderente ao intuito de melhorar a vida da população brasileira elevando o seu padrão de consumo e renda.
Utilizando-se da mira do torpedo e da barganha política, o governo de Getúlio brilhantemente fez com que a maior nação americana transferisse tecnologia até então inexistente no Brasil, mudando para sempre os rumos do país. Não escapa, porém, o Estado Novo de todas as críticas inerentes ao seu caráter antidemocrático na história brasileira, regime de governo com o qual nunca se poderá concordar livremente.
*Vitor Piazzarollo Loureiro é mestrando no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FD-USP.
Referências
DOS SANTOS, Wanderley Guilherme. Ordem burguesa e liberalismo político. Livraria Duas Cidades, 1978.
REIS VELLOSO, A controvérsia do planejamento na economia brasileira: apresentação. 3a edição, IPEA. 2010.
FARIA, José Eduardo. Direito, modernização e autoritarismo: mudança socioeconômica vs. liberalismo jurídico. 1981. Diss. Tese (Doutorado em Filosofia, Teoria e Sociologia do Direito)–Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1981.
JUNIOR, Ludolf Waldmann. “As políticas de reaparelhamento naval da Marinha do Brasil, 1904-1945.” Navigator 15.30 (2019).
Luhmann, Niklas. “A Constituição como aquisição evolutiva.” ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jorg. Il futuro della costituzione. Torino: Einaudi (1996).
Notas
[i] Após longo período de caminhada incerta sobre a solução para os severos problemas que a oligarquização da República Velha trazia ao desenvolvimento nacional, o Estado Novo foi a administração que primeiro se debruçou verdadeiramente diante das questões relacionadas à produção econômica nacional. Sua dúvida era: qual é a “vocação” do Brasil?
[ii] Levantamento que aparece no texto de apresentação de Reis Velloso em seu trabalho “A controvérsia do planejamento na economia brasileira” aponta que em 1919 a renda per capita norte-americana flutuava em valores entre seis e sete vezes maiores que a brasileira.
[iii] A aproximação brasileira com os países do Eixo preocupou em muito os Estados Unidos, que passou a estreitar seus laços com o Brasil, com o objetivo de garantir o alinhamento do maior país da América Latina, inclusive para não correr o risco de perder outros apoios na região.
[iv] Ao todo foram torpedeados 34 navios brasileiros, totalizando mais de mil vítimas. Este acontecimento foi essencial para virar a opinião pública brasileira contra o Eixo. Neste período, os sistemas ferroviário e rodoviário brasileiros não eram nem tão integrados, nem tão desenvolvidos, de modo que a maior parte dos deslocamentos distantes e relevantes eram feitos pelo mar, com a utilização de embarcações. Assim sendo, de maneira evidente criou-se um temor para os civis serem atacados por submarinos alemães ou italianos em uma viagem interestadual.
[v] Aqui se faz menção às discussões que ocorreram dentro do Ministério do Trabalho, Industria e Comercio entre 1944/45, sobre o planejamento e industrialização da economia brasileira, com especial destaque ao embate travado entre Roberto Simonsen, que propôs uma grande mobilização nacional a ocorrer por meio de uma planificação da economia, e Eugênio Gudin, que defendia que a prioridade do Brasil deveria ser a agricultura, com a ótica voltada para a produtividade.
[vi] Nota de curiosidade, este pensamento está em extrema consonância com a figura de “tipos ideais” utilizada por Max Weber em seus trabalhos.