Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Na religião do capital, a única blasfêmia é anunciar que a economia real vai bem enquanto os juros sagrados ameaçam cair
1.
Despertou revolta dentre os colegas da Faria Lima e todos se manifestaram contra a declaração de “a política monetária está funcionando”, dada pelo economista-chefe do BTG Pactual e ex-secretário do Tesouro, durante o governo golpista. Foi estampada na primeira página do jornal oficioso de O Mercado!
“Estamos, em um cenário surpreendente, com o menor nível de desemprego da história e expectativas de inflação para 2025, 2026 e 2027 não esperadas por ninguém há três meses. Está se consolidando o cenário para o Banco Central do Brasil começar a cortar juros no primeiro trimestre do próximo ano”, disse. Segundo ele, “se tivermos mais duas leituras positivas de inflação, vai entrar na mesa a possibilidade de antecipar esse corte para o fim do ano corrente”.
Os parças agora querem o queimar na avenida! A cena é digna de uma ópera bufa do rentismo. O coitado, sempre tão fiel à cartilha fiscalista, de repente, cometeu o pecado mortal: sugeriu a política monetária do governo petista está funcionando de maneira coordenada com a política fiscal e, pior, insinuou os juros poderem cair antes do combinado.
Resultado? Uma rebelião furiosa entre os sacerdotes da Faria Lima, como se alguém tivesse mexido no cálice sagrado do CDI.
Na avenida simbólica dos Fundos de Investimento, o coro é uníssono: “Blasfêmia! Sacrilégio!”. Para eles, a simples ideia de cortar juros é como anunciar a expropriação da propriedade privada.
O “pleno emprego histórico”, elogiado pelo ex-secretário do Tesouro no governo temeroso é, na visão desses colegas, um problema moral. Afinal, trabalhadores com salário em alta e confiança demais no pleno emprego se tornam atrevidos, exigem direitos, e isso ameaça o dogma central: o rentista feliz.
Não importa se as expectativas de inflação para 2025, 2026 e 2027 estão melhorando. Para o coração da Faria Lima, notícia econômica só é boa se não servir de argumento para baixar juros. Se o pão ficar mais barato e o desemprego cair, isso é visto como “ruído estatístico”. Mas se o dólar espirrar, aí sim a inflação importada é motivo para convocar uma cruzada monetária com juros disparatados diante do Fed, e fazer os farialimers felizes.
2.
O pecado do ex-secretário do Tesouro foi lembrar em público sobre a possibilidade de os juros de 15% aa caírem. A taxa de juro mensal equivalente é de aproximadamente 1,17%, um juro composto capaz de propiciar acumulação financeira.
Isso traz tranquilidade inclusive para os pobres coitados detentores apenas do patamar mínimo para estar entre os 161.726 detentores de contas exclusivas de 69 mil grupos econômicos familiares. Com R$ 2,421trilhões no agregado, dá a bagatela média de praticamente R$ 15 milhões per capita, ou seja, se todo esse valor fosse aplicado em 100% CDI, daria o suporte de rendimentos de juros mensais de R$ 175.152,68, certamente, muito inferior à “renda do trabalho” dessa laboriosa gente.
Para se ter uma ideia, segundo Sérgio Gobetti e outros (2025), “no topo da pirâmide – entre os 0,01% mais ricos – a renda captada pela PNAD é quase doze vezes inferior à apurada a partir dos dados do IRPF. Enquanto a PNAD estima renda média mensal de pouco mais de R$ 200 mil em 2023 para esse grupo, as declarações dessas mesmas pessoas revelam rendimentos médios mensais de R$ 2,5 milhões”.
Por conta dessa penúria, foi como se um padre da consagrada Santíssima Trindade do Tripé Macroeconômico tivesse dado uma piscadela para o demônio da heterodoxia. Seus ex-colegas já afiam as foices e martelos, acendem tochas e esquentam o óleo ao ponto de fervura: querem queimá-lo vivo, na avenida, não por discordarem dos fundamentos, mas por ele ter ousado sugerir os lucros financeiros não precisarem crescer para sempre à custa da economia real.
No fundo, o ex-temeroso só disse o óbvio: a política econômica do demônio petista está funcionando! Mas, na liturgia da Faria Lima, verdade é só aquilo capaz de manter o juro alto e o povo quieto. E qualquer desvio dessa missa – mesmo vindo de um ex-secretário do Tesouro do louvado governo golpista com a aprovação oportunista das reformas neoliberais de “flexibilização” (sic) – merece fogueira!
3.
Daí, em uma “Via crucis do rentista traíra”, o imprudente falante da verdade, refletida nos números estatísticos, foi obrigado a carregar a cruz do corte de juros. Enquanto desfilava era vaiado pelos colegas ao longo da Faria Lima.
Estação I (BTG Pactual) – O pecado da verdade
O economista-chefe do BTG e ex-secretário do Tesouro, pela ousadia de afirmar em público “a política monetária está funcionando”, cometeu um pecado monumental. Os colegas da Faria Lima reagiram como inquisidores: murmuraram entre si, prepararam tochas e manchetes de jornal e o escorraçaram de lá.
Estação II (Itaú BBA) – O julgamento editorial
Nas salas envidraçadas da Avenida Faria Lima, cada planilha se tornou um martelo e uma foice para punir o “cumunista infiltrado”. Analistas e colunistas da Grande Imprensa Neoliberal discutiram: “Como ele ousou sugerir corte de juros?!” A verdade científica pouco importa, aqui não é um campus universitário! O dogma do superávit e do juro alto deve prevalecer acima de qualquer realidade econômica!
Estação III (Bradesco BBI) – A carga do corte de juros
O imprudente ergue então a cruz simbólica do corte de juros, cada quilo carregado com expectativas de inflação favoráveis e pleno emprego histórico. O peso é brutal, porque tocar nesse tema é tocar no sagrado: o rendimento seguro do rentista.
Estação IV (Goldman Sachs) – O espancamento midiático
Tochas são acesas, ou melhor, tweets, colunas e editoriais criam alvoroço. Os farialimers se inflamam. “Que ele seja queimado em plena avenida!”, gritam os sacerdotes do tripé em uníssono. A cruz dele é atacada com argumentos circulares: “Baixar juros é populismo!”, “Austeridade fiscal em risco!”, “Confiança de O Mercado abalada!”.
Estação V (JPMorgan Chase)– O auxílio da heterodoxia
Não há recurso com apelo à heterodoxia, ela só existe para ser citada como advertência. O trânsfuga caminha sozinho, enquanto o coro da Faria Lima repete: “Que sirva de lição: aqui não se critica o juro alto nem se anuncia pleno emprego!”.
Estação VI (Credit Suisse) – A chegada à cruz do conselho monetário
Finalmente, o sem papas na língua, capaz de expressar o pensado de forma direta, mesmo se isso não for agradável para os outros colegas, chega à mesa de sacrifício do Copom simbólico. Ali, suspira. A cruz do corte de juros ainda pesa, mas ele acha ter escutado um sussurro da economia real: “Há espaço sim para baixar juros e celebrar o pleno emprego”.
Estação VII (UBS) – Ressurreição monetária
Se o Banco Central do Brasil ousar antecipar o corte, a ressurreição do cristo será discreta: sussurrada entre economistas, ignorada pelos editorialistas, e imediatamente convertida em manchete alarmista: “Risco de inflação brevemente!”.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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