Vidas à deriva

Lasar Segall, Navio de Emigrantes, óleo sobre tela, 230.00 cm x 275.00 cm, Acervo Museu Lasar Segall - IPHAN/MinC (São Paulo, SP), 1939 | 1941.
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Por JOÃO PAULO AYUB FONSECA*

O sentido mais profundo de sacralização do excluído instigam ainda hoje uma leva cada vez maior de emigrantes a sair em busca de um destino seguro, não violento

A imagem de um adolescente marroquino de 16 anos aos prantos com o corpo amarrado a garrafas vazias na beira da praia correu o mundo nas últimas semanas. Em 19 de maio, o garoto Aschraf Sabir repetiu o gesto de milhares de outros jovens de seu país ao tentar atravessar a nado a fronteira entre o Marrocos e a Espanha no norte da África. Ele conseguiu alcançar a praia de Ceuta, cidade autônoma que constitui um enclave espanhol ao norte do continente africano, mas logo foi recebido pelos militares que o aguardavam sair das águas do mediterrâneo para devolvê-lo ao país de origem. Numa das imagens em vídeo que registra a chegada de Aschraf, percebe-se que o apelo endereçado aos guardas espanhois carrega a força expressiva da dor e dos sonhos de todo emigrante: “Entenda-nos, pelo amor de Deus!”

O desamparo de Aschraf ganha corpo nas palavras que anunciam seu pedido desesperado. A cena protagonizada pelo adolescente marroquino, entre tantas outras registradas nas últimas décadas em várias regiões do mundo, atesta a contemporaneidade das obras de arte que tentaram exprimir a condição humana do emigrante. É este o caso particular de Lasar Segall, pintor, escultor e gravurista nascido em 1889 em Vilna, atual capital da República da Lituânia. Segall viveu junto a seus familiares a experiência do desterro no território dominado pelo Império Russo na passagem do século XIX para o XX. Sob o regime dos czares, as famílias judias atravessaram a fome e a violência desmedida dos pogroms no leste europeu. O movimento migratório fez parte de toda a vida de Segall: antes de seguir para o Brasil no entre guerras, onde foi acolhido pelos modernistas de São Paulo, entre eles Mário de Andrade, ele viveu e estudou em algumas das grandes cidades europeias em períodos sombrios de conflitos e perseguição política. Os traumas acumulados na pele do artista marcaram sua trajetória e se tornaram a grande matéria de suas composições.

A obra de Lasar Segall recebeu de alguns de seus contemporâneos interpretações e leituras preciosas, reveladoras de uma posição singular ocupada pelo artista no trabalho que consistiu em desvelar o espírito da época em que viveu. Uma coleção de comentários e artigos escritos por também pintores, escritores e poetas desdobra o universo de sentidos que transborda das formas, cores e volumes de seus desenhos e quadros. Entre inúmeros catálogos de exposições, interpretações e comentários, refiro-me aqui, em especial, à coletânea Lasar Segall: antologia de textos nacionais sobre a obra e o artista. (Funarte, 1982). O poeta Carlos Drummond de Andrade e o sociólogo francês Roger Bastide foram alguns dos que deixaram um testemunho da arte de Segall.

A composição de Lasar Segall intitulada Navio de Emigrantes (1939-1941) completa 80 anos de sua realização em 2021. Certamente uma das obras primas do artista, a pintura recebeu e ainda hoje recebe uma atenção especial. A embarcação que protege das ondas do mar uma multidão desarvorada contém no interior de um contorno precário não apenas a dor e o sofrimento de sujeitos desprovidos de um lugar, uma pátria; no barco de Segall navegam também os segredos e os sonhos que desvelam a condição de toda a humanidade.

Nesse sentido, sabiamente definiu Drummond: “Os quadros sociais de Segall se dirigem a todos, não atendem a uma necessidade particular.” Roger Bastide, na mesma linha interpretativa de Drummond, enxerga no sutil movimento desolado das curvas do navio o acabamento de uma forma igualmente portadora de sentido universal: “Não é o objeto pintado que exprime, mas sim o modo pelo qual é pintado. Mas, justamente porque se exprime por formas, o pintor transcende o momentâneo, para dar a seus quadros um valor universal e permanente. Não são mais judeus massacrados, não são mais europeus à procura de um outro habitat, é a nossa humanidade, somos nós mesmos que somos postos a nu na tela.”

Como nas dobras de um sonho, a força expressiva da pintura de Segall repercute no poder que ela tem de dizer ao mesmo tempo o indizível e o que não deve ser dito. A manifestação desta atmosfera onírica está fortemente presente na tela: os olhares mergulhados em sonhos dos emigrantes no interior da embarcação dão um sentido positivo a uma certa cartografia do abismo, do não-lugar, de uma realidade que, mesmo sendo plausível, o olho desperto não é capaz de enxergar. Navio de Emigrantes evoca a trágica e desesperada viagem dos migrantes judeus, que fugindo da guerra e das perseguições nazistas na Alemanha se amontoavam como mercadorias, em grandes navios, rumo a países desconhecidos. O navio retratado por Segall é um registro genuíno de marginais lançados ao abismo de sua própria sorte. A trama da história, maquinaria incansável, dia e noite reescreve e renova a qualidade da massa de indivíduos marginalizados.

Entre os anos de 1939 e 1941, num contexto histórico-político marcado pela reafirmação do poder dos Estados Nacionais e de movimentos ideológicos de caráter nacionalista, as margens foram povoadas de indivíduos expatriados. Famílias inteiras se viram acossadas por dispositivos identitários fundados num processo perverso de autopurificação. Nesse sentido, o universo artístico habitado pelo pintor – a perseguição nazista durante a primeira metade do século XX – revela um estranho espaço de morte e purificação. Lançados tantas vezes em mar aberto, o desatino de emigrantes perseguidos pelo gesto sombrio da exclusão delineia o caminho de uma eterna travessia.

Muitas vezes se esquece que o quadro de Segall não contempla todo o processo de migração: partida, travessia e chegada. Não se trata de uma obra capaz de vislumbrar um processo político de negociação de identidades. Não há qualquer vestígio desse tipo de negociação no quadro de Segall. Vê-se, ao contrário, uma coleção de indivíduos à mercê de um movimento inconclusivo, condenados à deriva. Os emigrantes de Segall parecem obrigados a habitar, cristalizados, a ponte do exílio.

De um modo que ressalta a tristeza profunda de seus traços, não foi dada aos tripulantes do barco a luz de um porto minimamente seguro onde desembarcar. Até mesmo os náufragos da Balsa da Medusa (1818-1819), de Géricault, puderam vislumbrar, entre os destroços amontoados de si mesmos, uma possibilidade de chegada. Os emigrantes de Segall carregam o instante do desembarque apenas nos sonhos de um novo mundo. Assim como acontecia com os loucos e estrangeiros transportados de cidade em cidade pelos rios de uma Europa Medieval, os sulcos das águas do oceano de ondas verde-acinzentadas de Segall se desfazem e apagam qualquer rastro possível, qualquer vestígio concreto da existência humana.

Nesse sentido, vale a pena relembrar a observação de Bastide sobre a disposição plástica das traves sob o convés do navio onde se distribuem indivíduos isolados e famílias inteiras, fragmentos de uma desolada atmosfera de solidão:

Na série de águas-fortes dos imigrantes, Segall, frequentemente, utilizou linhas ascendentes, ligeiramente obliquas, e outras sinuosas, como reflexos da esperança tímida do exilado. Mas no Navio de Emigrantes o pintor volta à elipse, ou pelo menos encerra o drama do imigrante em uma meia elipse feita pela parte de trás do barco. O navio impõe, desse modo, sua forma às mulheres e aos homens que sonham sobre a ponte do exílio. E como as diferenças éticas ou de temperamento dispersam a massa em famílias, casais e mesmo indivíduos, como, por outro lado, o sonho é um importante instrumento de isolamento, de fragmentação, pois que cada um, por meio dele, vai até os mais profundos segredos do seu ser, até ao incomunicável, Segall não se contenta com cercar os imigrantes por essa meia elipse; a fim de que a elipse não se quebre sob o impulso de todos esses desejos, dessas nostalgias contraditórias, ele reata as curvas do navio, lançando toda uma série de traves que retém a pavesada e que, por uma feliz majoração de simbolismo, desenham sobre a massa humana uma multidão de cruzes.

Ao resgatar a face oprimida e a dor dos excluídos, o artista expõe o sentido e a lógica que subjaz a exclusão. É preciso saber perguntar à obra o que a dinâmica de suas cores e traços quer dizer. O gesto de compreensão corresponde, segundo Merleau-Ponty em O visível e o invisível (Perspectiva, 2000), a uma espécie de abertura para o outro, para o ausente, ou ainda, para o invisível, “esta contrapartida secreta do visível”.

As faces tristes desveladas em pormenor por Segall no interior de sua embarcação – um amontoado de gente compondo uma “quase” comunidade de sujeitos de uma massa fragmentada – representam algumas das vítimas das “partilhas” contemporâneas. De um modo radical, elas acusam o caráter sagrado de toda ficção identitária. O filósofo checo-brasileiro e também migrante judeu Vilém Flusser, em sua “autobiografia filosófica” intitulada Bodenlos (AnnaBlume, 2007), percebeu de forma aguda a tensão instaurada pela presença do emigrante e sua irredutível diferença: “Para o residente, o emigrante é ainda mais estrangeiro, menos familiar que o migrante lá fora, porque ele desnuda o sagrado, para os domiciliados, como uma coisa banal. Ele é feio e digno de ódio, porque identifica a beleza pátria com uma belezinha kitsch.”

O sentido mais profundo de sacralização do excluído – um processo que consiste ao mesmo tempo na separação do estrangeiro e purificação do nativo – mantém-se no registro dos conflitos e violências que instigaram e instigam ainda hoje uma leva cada vez maior de emigrantes a sair em busca de um destino seguro, não violento. Dias depois da tentativa malograda de ingressar em território espanhol, Aschraf revelou em entrevista ao jornal El pais o sonho que o anima na difícil travessia: ir para a Europa, estudar, trabalhar e poder ajudar o resto da família no Marrocos. O adolescente foi ouvido num dos bairros mais pobres da cidade de Casablanca, já na casa de sua segunda mãe adotiva. Então com 16 anos – a idade atual de Aschraf –, sua mãe biológica o entregou para adoção quando ele ainda era um bebê, apenas três dias após seu nascimento. Rabía, a primeira mãe adotiva do garoto morreu quando Aschraf tinha 11 anos de idade.

No Marrocos os filhos de mães solteiras carregam por toda a vida o estigma de terem nascido “fora da lei”. Enquanto as mães são consideradas como prostitutas e muitas vezes rejeitadas pela própria família, seus filhos são nomeados em dialeto local wlad lehram (“filhos do pecado”). Trata-se de uma condição social de subcidadania, pois os filhos não possuem os direitos relativos à filiação paterna, como o sobrenome do pai, herança ou pensão.

O apelo de Aschraf endereçado aos guardas espanhóis – “Entenda-nos, pelo amor de Deus!” – permanece como um eco sem fim das incontáveis vidas perdidas nas trágicas histórias de emigração. Assim como os tripulantes do Navio de Segall, o garoto marroquino já nasceu lançado ao mar por uma sociedade incapaz de incluir entre seus filhos aqueles que estranham e problematizam suas sagradas instituições. Nascido de uma recusa, é ainda a recusa de um outro lugar que se repete na vida de Aschraf. Seu pedido desesperado por entendimento e compreensão é a mais radical denúncia daquilo que nos transformamos a partir do trabalho cotidiano e repetido dos gestos de exclusão.

*João Paulo Ayub Fonseca, psicanalista, é doutor em ciências sociais pela Unicamp. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios).

Referências


ANDRADE, Carlos Drummond. Segall e o navio. In: Lasar Segall: antologia de textos nacionais sobre a obra e o artista. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982.

BASTIDE, Roger. O oval e a linha reta – a propósito de algumas pinturas de Lasar Segall. In: Lasar Segall : antologia de textos nacionais sobre a obra e o artista. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. SP: Perspectiva, 2000.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Para uma filosofia do exílio: A. Rosenfeld e V. Flusser sobre as vantagens de não se ter uma pátria”. Revista Eletrônica do NIEJ/UFRJ – Ano I – nº 3 – 2010.

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